Música

John Lennon traduziu angústias masculinas que dizem tanto ao século XXI

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John Lennon, que faria 80 anos nesta sexta, aos poucos repensou sua atitude abusiva de homem inglês de sua época. A partir do romance com Yoko, o feminino passou a ter centralidade em sua obra. Ele não apenas defendeu Yoko diante dos outros beatles e dividiu discos com ela, mas expressou seus erros nessa relação e na que teve com a ex-mulher

John Lennon e Yoko Ono

Silvio Essinger, O Globo

John Lennon não foi o melhor músico e — alguns vão objetar, mas subjetividades são sempre subjetividades — tampouco o mais bonito dos Beatles. Talvez até fosse o mais inteligente, o mais experimental, embora os fãs de Paul, de George e mesmo de Ringo sempre tenham lá seus argumentos.

O que não dá para negar é que, nesta sexta-feira do seu aniversário de 80 anos de idade, Lennon sobrevive na memória coletiva como o melhor espelho para o homem desconstruído de 2020 — aquele que foi levado a reavaliar preconceitos, traumas, questões de poder, religião e a própria masculinidade. Com uma vantagem: dessa inquietação, o inglês fez canções que são patrimônio da humanidade.

“E afinal, o que é rock’n’roll? Os óculos do John ou o olhar do Paul?” A troça, feita por Humberto Gessinger e seus Engenheiros do Hawaii na canção “O papa é pop”, põe na mesa a eterna rivalidade, camuflada no interior da parceria Lennon-McCartney, que serve de combustível até hoje para intermináveis conversas de bar (ou melhor, de Zoom, dados os tempos pandêmicos).

John era o beatle sarcástico, cerebral, revoltado, que não se esquivava das polêmicas — um irresponsável capaz de dizer que os Beatles eram mais populares que Jesus Cristo. E Paul, o compositor do sentimento aflorado, que fazia as grandes canções de amor dos Beatles e que entendia como ninguém os anseios do seu público.

No entanto, nos 50 anos passados desde o fim dos Beatles, o público mudou, bem como as sensibilidades. As grandes canções de amor, é verdade, resistem, assim como Paul, que antes da pandemia continuava bem ativo nos maiores palcos do mundo. Mas o “zeitgeist” nervoso do pop de 2020 tem muito mais a ver com John, um artista que não se acanhou em transformar a terapia em arte, abrindo a alma diante do que a vida trazia para ele, fossem separações, crenças, mágoas, posições políticas, o mal-estar com si mesmo ou o pesadelo após o fim da lua-de-mel com as drogas.

“A única razão pela qual faço música e sou uma estrela é que aqui posso dar vazão às minhas repressões”, disse certa vez.

Sexo, raiva e ativismo

Ainda com os Beatles, Lennon pediu socorro ante o turbilhão de fama que o engolira (“Help!”) e falou de depressão (“You’ve got to hide your love away”), de infidelidade (“Norwegian wood (this bird has flown)”) e do incontrolável desejo sexual (“I want you (she’s so heavy)”). Em carreira solo, expôs sua raiva em relação a McCartney (“How do you sleep?”), mandou o povo ocupar as ruas (“Power to the people”) e, inspirado pela teoria do grito primal do psiquiatra Arthur Janov, exorcizou a perda da mãe, quando criança, em “Mother” — a intensa faixa de abertura de seu primeiro álbum pós-Beatles.

Aos poucos, Lennon repensou sua atitude abusiva de homem inglês de sua época (“Eu costumava ser cruel com minha mulher, e fisicamente — com qualquer mulher”, admitiu) e, a partir do romance com Yoko Ono, o feminino passou a ter centralidade em sua obra. Ele não apenas defendeu Yoko diante dos outros beatles e dividiu discos com ela, mas de forma absolutamente franca falou de seus erros nessa relação (em “Jealous guy”) e na que teve com a ex-mulher, Cynthia.

Depois de um tempo conturbado de separação de Yoko e muita farra (o “lost weekend”), em 1975 John tomou a decisão de interromper a carreira para, junto da mulher, cuidar do filho Sean — o que não conseguira fazer com Julian, filho que teve com Cynthia no começo do sucesso dos Beatles. E, pouco antes de ser assassinado na porta de casa, em 8 de dezembro de 1980, deixou a canção “Woman”, para Yoko.

Quando propunha um mundo sem religiões, em “Imagine”, John Lennon já considerava Deus “um conceito pelo qual medimos a nossa dor” (na letra da canção “God”). Era a expressão madura de um artista que, anos antes, quando os Beatles foram à Índia, ousara questionar o guru Maharishi Yogi e que conseguiu transformar indagações sobre a existência em um hit de rádio (“Whatever gets you thru the night”, em 1974). Com a postura que tem muito a ver com o niilismo dos tempos atuais, Lennon já dizia nos 70: “Não consigo te acordar, você pode se acordar. Não posso te curar, você pode se curar”

Um dos poucos artistas do rock de sua época cujo ativismo político foi consistente — do bed-in com Yoko (contra a Guerra do Vietnã) e o apoio aos Panteras Negras às críticas sociais de “Working class hero” —, Lennon pagou o preço. Se hoje as pessoas reclamam da vigilância eletrônica sobre suas opiniões, há que se lembrar que, nos anos 70, o beatle duramente foi investigado pelo FBI por suas posições antimilitaristas e esquerdistas. E esteve, durante anos, sob a ameaça de ser deportado dos EUA — como tantos imigrantes por lá hoje.

Pode-se tentar imaginar o que John Lennon estaria fazendo e pensando aos 80 anos. Talvez admirasse os jovens progressistas de 2020, talvez apreciasse as redes sociais — ou tivesse muitas críticas a tudo. Mas pode ser ainda que repetisse o conselho do Lennon fictício, velhinho e anônimo, do filme “Yesterday” (2019), passado numa realidade paralela em que ele e Paul nem chegaram a montar os Beatles: “Diga a verdade a todo mundo que você conhece.”

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