Educação

O que é a pedagogia Paulo Freire e por que ela incomoda os conservadores?

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Paulo Reglus Neves Freire (Imagem: CNTE)

Luiza Pollo, TAB

Paulo Freire primeiro lê o mundo para depois ler a palavra“, diz a professora Targélia de Souza Albuquerque. Integrante da Cátedra Paulo Freire na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e sócia-formadora do Centro Paulo Freire, Albuquerque defende que não podemos falar apenas em um “método”, mas sim em uma “pedagogia Paulo Freire”. Isso porque os ensinamentos e o legado do educador vão bem além de uma fórmula de alfabetização — e podem servir de reflexão até mesmo durante a pandemia.

O debate em torno do tema é perene, mas ganha os holofotes de tempos em tempos. Seja quando o governo federal coloca o projeto da Escola Sem Partido em pauta, seja no Carnaval do sambódromo do Anhembi, onde a Águia de Ouro desfilou sob um samba-enredo que citava o patrono da educação brasileira. No próximo ano, devemos ouvir falar ainda mais dele, já que em setembro de 2021 será comemorado seu centenário. Mas em que, exatamente, consiste essa pedagogia e por que ela é alvo de disputa?

Quem foi Paulo Freire?

Nascido em 19 de setembro de 1921 no Recife (PE), estudou Direito na universidade que hoje conhecemos como UFPE e, no entanto, nunca exerceu a profissão. Freire se dedicou à pedagogia e à filosofia desde cedo, e no fim da década de 1940 já era diretor do setor de educação e cultura do Sesi (Serviço Social da Indústria), além de dirigir o Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social no Estado de Pernambuco. Trabalhava com analfabetos em situação de pobreza, realidade que conhecia desde criança, quando se mudou com sua família para Jaboatão dos Guararapes, ao sul de Recife, com a crise do café de 1929.

Ele, que tinha tido uma infância de classe média até então, vai entender o que é fome, o que é pobreza, qual a dificuldade que uma criança tem ao chegar à escola sem ser alimentada, não ter as condições necessárias“, relata Albuquerque. Somando experiência de vida a estudo e trabalho com pessoas de baixa renda que não sabiam ler nem escrever, Freire desenvolve um método de alfabetização que leva em conta a vivência e o contexto do aluno.

O método

Em 1963, Paulo Freire colocou em prática sua primeira grande experiência no ensino da língua portuguesa a partir de uma nova metodologia. Em 45 dias, ensinou 300 alunos a ler e escrever na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte. O método consiste nas seguintes etapas, que pressupõem sempre uma troca entre professor(a) e aluno — “ensina-se com, e não para”, ressalta Albuquerque:

1. Investigação: entender o universo vocabular do aluno;
2. Tematização: compreensão dos significados sociais dos temas e palavras;
3. Problematização: provocação para que o aluno esteja em constante questionamento e crítica do mundo.

O educador ou a educadora começa o contato com os alunos de maneira informal, para entender seu universo e ensinar a língua escrita a partir de um vocabulário já conhecido. Inicialmente, são selecionadas por volta de 20 palavras que servem como base para o ensino das sílabas e, posteriormente, o enriquecimento do vocabulário. Um exemplo clássico é o da palavra, tijolo. Pelo método, o aluno aprenderia a dividi-la em sílabas da seguinte maneira: ta te ti to tu – ja je ji jo ju – la le li lo lu. Ao ver as sílabas escritas, um aluno teria identificado sozinho uma nova combinação: ta te ti to tu – ja je ji jo ju – la le li lo lu. Tu já lê. Quem conta essa história é Alípio Casali, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), onde trabalhou ao lado de Paulo Freire até a morte do educador, em 1997.

Aspecto social

Fator essencial da pedagogia de Paulo Freire é a associação desse aprendizado técnico a discussões sobre o significado social das palavras apresentadas. “A palavra liberdade, dependendo das mãos de quem a tem, é utilizada num sentido ou em outro“, exemplifica a professora da UFPE. Casali ressalta que o método em si era voltado apenas para adultos, pessoas que já tinham experiência de vida e, portanto, poderiam fazer essas reflexões sobre suas condições.

O processo de alfabetização tem que realizar a função política, de apropriação da própria vida, história e experiência. Agora, a pessoa vai dispor do manejo da linguagem para compreender seu próprio mundo dali para trás, a sua situação presente e projetar um futuro no qual ele seja livre“, descreve Casali.

Estimular a pergunta, a reflexão crítica sobre a própria pergunta, o que se pretende com esta ou com aquela pergunta em lugar da passividade, face às explicações discursivas do professor, espécies de respostas a perguntas que não foram feitas. (…) O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto falam ou enquanto ouvem. O que importa é que professor e aluno se assumam epistemologicamente curiosos. – Paulo Freire, “Pedagogia da autonomia” (1996)

Legado

A metodologia em si é apenas um dos aspectos da pedagogia Paulo Freire, ressalta Casali. Ao longo do tempo, estudos em neurociência e linguística foram capazes de desenvolver novos métodos de alfabetização, superando assim a silabação aplicada por Freire. “Tecnicamente falando, essa metodologia de alfabetização está superada, embora ainda funcione. Se alguém aplicar, vai funcionar. Mas há outros recursos mais avançados”, diz o professor da PUC. Isso não significa que a pedagogia de Freire esteja superada. A questão central do trabalho do educador não era criar um novo recurso instrumental de acesso à leitura e à escrita. Mais do que isso, era relacionar esse processo com a conscientização, explica Casali. Portanto, independentemente do método, as ideias de Paulo Freire seguem sendo aplicadas na educação, mesmo que sua metodologia não faça parte dos currículos.

Política

Por englobar o contexto social e provocar questionamentos, a pedagogia de Freire é inerentemente política. “A educação é um ato político e a política é um ato educativo“, avalia a pesquisadora da UFPE, sobre o trabalho do educador. “Qual é a educação que a escola vai desenvolver, vai se comprometer? É uma educação que castra, conteudista, verbalista, que burocratiza mentes, que domestifica crianças e adolescentes? Ou uma educação relacional, que garante que o jovem se reconheça como sujeito participando da sua história, do seu mundo?” O viés anti conservador faz com que a crítica a Freire venha principalmente de grupos mais à direita. “Há uma disputa política muito pesada para desqualificá-lo. A questão da validade da metodologia é muito usada nesse sentido, para anulá-lo no vigor político que sua proposta tem“, avalia Casali.

Programa Nacional de Alfabetização (PNA)

Em janeiro de 1964, o então ministério da Educação e Cultura instituiu um programa para “coordenar os movimentos de educação de base e/ou alfabetização de adultos e adolescentes que vinham-se multiplicando em todo o país a partir de 1961”, relata o CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), da FGV (Fundação Getulio Vargas). A ideia era alfabetizar inicialmente quase 2 milhões de adultos, correspondendo a quase 9% da população analfabeta da época, quando isso ainda era um impeditivo para votar. Em março, Paulo Freire foi nomeado para coordenar o projeto, já que havia criado o método de alfabetização usado no programa. No mês seguinte, o PNA foi extinto pela ditadura militar. Freire foi preso por 70 dias e, depois, ficou exilado até 1980.

Internacional

Nos anos de exílio, Freire ficou conhecido pelo mundo, tornando-se inclusive professor da Universidade de Harvard. Uma de suas obras mais conhecidas, “Pedagogia do Oprimido”, foi finalizada no Chile em 1968, publicada nos Estados Unidos em 1970 e, no Brasil, apenas em 1974. Segundo um estudo de 2016, o livro é a terceira obra acadêmica mais citada em trabalhos de ciências humanas no mundo. Entre outras menções internacionais, ele tem ao menos 35 títulos de Doutor Honoris Causa em universidades pelo mundo. Da Finlândia à África do Sul, há quem diga que Paulo Freire é mais reconhecido lá fora do que no Brasil. Aqui, ele é considerado Patrono da Educação Brasileira desde 2012, quando foi sancionada a Lei nº 12.612. Após o exílio, foi professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e da PUC-SP, além de se filiar ao PT e atuar no partido e na prefeitura de São Paulo até o início da década de 1990.

Paulo Freire na pandemia

Com aulas online e condições sociais deterioradas, o que diria Paulo Freire da educação durante a pandemia do novo coronavírus? Educadores já têm debatido isso, tanto aqui quanto internacionalmente. “A pandemia está escancarando vários problemas, assim como várias possibilidades de solução”, avalia Casali. “No escancaramento da pobreza e da desigualdade, a pandemia recoloca o contexto de Paulo Freire. Esse é o lugar de onde ele se tornou presente.” O uso das tecnologias na educação também era um ponto abordado pelo educador, que as defendia, mas sempre levantava a questão do acesso a elas e da lógica de mercado. Se elas estiverem aí para democratizar o acesso à educação, são bem-vindas. No entanto, pela visão dele, não poderiam estar a serviço de aumentar uma demanda mercadológica de consumo. “Paulo Freire vive”, diz Casali. “Ele é mais do que centenário. Paulo Freire é imortal. A gente olha para as figuras que ficam na história, e Paulo Freire vai ficar.”

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