Movimento que associa figuras públicas a falsas acusações de abuso infantil espalha-se por diversos países. No Brasil, principais alvos são artistas da Globo, o youtuber Felipe Neto, políticos de esquerda e ministros do STF. Nos EUA, FBI já considera o QAnon uma ameaça real para atos de terrorismo doméstico
Marie Declercq, TAB
Nos últimos tempos, redes sociais e sites brasileiros incorporaram uma narrativa fantasiosa de peso às teorias da conspiração habituais. O QAnon (se pronuncia kiu-anôn), movimento surgido nas redes que está por trás de diversos protestos nos EUA contra o uso de máscara, espalha-se por diversos países.
Aglutinando toda sorte de conspiração (Nova Ordem Mundial, Illuminati, lavagem cerebral por antenas de 5G e até teorias místicas), ele tem sido citado por usuários da internet para imputar falsas acusações de pornografia e abuso infantil a celebridades, políticos e influenciadores digitais.
No Brasil, o QAnon se adapta à narrativa local e seus disseminadores nomeiam “culpados” para as mazelas do país: artistas como Xuxa, Luciano Huck e atores da Rede Globo, o youtuber Felipe Neto, políticos do PSOL, ministros do STF e Nicolás Maduro, entre outros, são citados como criminosos ou abusadores.
Nos EUA, o potencial de radicalização é tão preocupante que o FBI considera o QAnon uma ameaça real para atos de terrorismo doméstico. O grupo também já pauta o debate público no Canadá e na Alemanha.
O QAnon surgiu após o Pizzagate, uma teoria da conspiração difundida durante as eleições presidenciais dos EUA em 2016, que acusava patrocinadores da campanha de Hillary Clinton de estarem envolvidos em abuso e tráfico sexual de crianças. A fachada para o esquema era uma pizzaria, cujo dono era doador de campanha da democrata. Os boatos surgiram após e-mails do gerente de campanha de Clinton vazarem e serem falsamente acusados de conter informações criptografas.
O boato foi tão forte que, no mesmo ano, um homem armado apareceu na pizzaria com um rifle e chegou a atirar duas vezes dentro da loja. Segundo a polícia, o atirador alegou que foi investigar o que estava acontecendo no local.
A vitória de Donald Trump acabou adormecendo o Pizzagate nas redes sociais, até que, em 2017, um membro anônimo do 4chan (um dos maiores fóruns da alt-right, termo que se refere à uma fração da extrema-direita) chamado “Q” recuperou a boataria do ano anterior e fez uma série de postagens enigmáticas, dizendo ter informações confidenciais sobre a luta do governo Trump contra um esquema envolvendo satanismo, cabala, tráfico sexual de crianças, políticos democratas, antenas 5G e China. Falava ainda da existência de um “deep state” (Estado Profundo) que atua por baixo dos panos em nível internacional. Eis a origem de QAnon (de “Q” e “anônimo”).
“Operação Storm”
O QAnon se ajustou bem à realidade brasileira porque falar de pedofilia para atacar a credibilidade de um inimigo político é corriqueiro. A adaptação começou no começo da pandemia, quando perfis no Twitter passaram a citar uma tal “Operação Storm”, evento de larga escala, inventado em fóruns da extrema-direita, que propaga a intenção de “desmascarar” o que dizem ser uma elite pedófila que controla o mundo. A operação seria um evento diretamente ligado ao QAnon.
Não existem provas da suposta operação. A única coisa que há são memes, correntes de WhatsApp e vídeos no YouTube que falam em prender ministros do STF, políticos do PSOL, Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre e opositores do governo federal.
Um dos maiores difusores do QAnon é o perfil Dom Das Threads, alimentado por um internauta anônimo que se autodenomina Dom Esdras. O usuário, que se diz católico, aparece muito em um grupo pago de WhatsApp alimentado por um conspiracionista chamado Fábio Patriota.
O perfil “Dom Das Threads” passou a falar de QAnon e Operação Storm em março de 2020. Em uma sequência de tuítes (acima), dá detalhes da teoria da conspiração. Ao longo dos meses seguintes, o tuiteiro evocava a “Operação Storm” de forma aleatória sempre que possível, mencionando operações reais deflagradas pela Polícia Federal contra pornografia infantil — relativamente frequentes no país na última década.
Esdras tem 70 mil seguidores no Twitter e um grupo no Telegram, onde reposta conteúdo para mais de 20 mil seguidores. Seu perfil também usou como gancho a ação sigilosa do governo que mirou professores e policiais antifascistas presidida pela Seopi (Secretaria de Operações Integradas), responsável, em anos anteriores, por investigar crime organizado e pedofilia. Após uma campanha levantada pelo site The Intercept, Esdras perdeu sua página no Apoia-se para receber doações.
Além da Operação Storm, alguns termos usados nas redes sociais por seguidores da conspiração também estão relacionados com o QAnon, como o acrônimo WWG1WGA (Where We Go One We Go All — “aonde vai um de nós, vamos todos”, em tradução livre), slogan do QAnon, e as hashtags #QAnonBrasil, #QAnonWorldwide, #Pedowood (em referência à Hollywood, entre outras).
Entre os seguidores do QAnon, há diversos tuítes expressando admiração por Donald Trump, Jair Bolsonaro e até a ministra Damares Alves é citada como um personagem importante no Brasil que estaria combatendo a pedofilia. No perfil oficial no Twitter, a ministra disse não conhecer a teoria da conspiração.
Táticas conspiratórias são eficazes ao se valerem do pânico moral para desqualificar qualquer inimigo político. “É uma estratégia muito bem modulada para te colocar em uma posição absurda, em dizer que não apoia assassinato ou abuso sexual de crianças”, explica Orlando Calheiros, antropólogo e pesquisador da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). “A única defesa nesse caso é a checagem de fatos, que não terá a mesma visualização da notícia falsa.”
Calheiros afirma que unir pautas sensíveis é uma forma de aglutinar grupos que outrora não se comunicavam politicamente. “A pedofilia mobiliza muita gente, de liberais a fundamentalistas. Foi essa pauta que uniu a bancada da bala e a bancada da Bíblia, antes ligada ao PT.”
David Nemer, pesquisador, etnógrafo e especialista em antropologia da informática frisa a efetividade de uma notícia falsa em se instalar no leitor e no inconsciente coletivo, mesmo com a checagem de fatos. “A questão é que isso fica armazenado e, depois de um tempo, se fizerem alguma associação com o tema, a informação ressurge como verdade.”