É possível mudar as estruturas racistas no continente sem ensinar a História do povo haitiano?
Camila Koenigstein*
Jean Jackson*
Ao longo da história a produção intelectual negra latino-americana sofreu todo tipo de rejeição, uma espécie de epistemicídio que fechou as portas da academia. Uma academia que ainda privilegia méritos pessoais; e que, embora produza e desenvolva estudos sobre as estruturas desiguais que construíram o domínio epistêmico, sempre o faz sob o olhar eurocêntrico. Analisar e desevolver pesquisas sobre o nosso continente a partir dos escritos sociológicos e históricos de autores negros, é um questão secundária, deixando essa produção esquecida, ou no máximo, como objeto de pesquisa e citações textuais, mas raramente vistos como sujeitos que produziram saber.
Assim, os brancos todavia ocupam maioritariamente o espaço académico, fato que se faz sentir tanto nos poucos professores negros, como nas bibliografias que privilegiam autores europeus.
Não é só estar dentro da universidade, queremos que o conhecimento mude, que as pessoas conheçam os autores negros, que leiam autores negros e não apenas negros investigando o que a universidade sempre investigou. Acho que a Universidade reflete uma das facetas mais sombrias do racismo, apagando nossas trajetórias e nosso conhecimento”. (Queiroz. 2015).
Nesse sentido, fazer um estudo acadêmico sob os escritos desses autores é fundamental para pensar no rompimento do conhecimento hegemônico estabelecido e vislumbrar um olhar para a América feito por aqueles que sofreram o impacto da colonização, uma vez que, o domínio da linguagem gera poder. Nas palavras de Mogobe Ramose: “Quem tem autoridade para definir, tem o poder de dar relevância, identidade, classificação e sentido ao objeto definido”. (Ramose. 2011. p. 4)
O silêncio sobre o Haiti
Na América Latina se ensinam basicamente duas revoluções, a norte-americana e a francesa, deixando todos os movimentos insurgentes e revolucionários feitos pelos negros na América no esquecimento.
A Revolução “Americana” de julho de 1776 é descrita como um movimento contra a “tirania” em favor dos “direitos civis e políticos”,visão extremamente monolítica que oculta os meandros do processo. Raramente mencionam que uma das causas é a Proclamação Real de 1763 que limitava a expansão dos colonos sobre os territórios indígenas e a posição da Inglaterra em relação a abolição da escravidão.
O primeiro “americano” pai fundador da nação, Benjamin Franklin disse em sua autobiografia: “Se foi o desígnio da Providência erradicar aqueles selvagens e abrir espaço para os cultivadores da terra, não parece improvável que o rum tenha sido o meio indicado. Já aniquilou todas as tribos que antes habitavam o litoral […] colonos se apresentavam aos índios carregando em uma mão um contrato para a compra de suas terras, na outra uma garrafa de rum, uma Bíblia debaixo do braço e um rifle nas costas.
O massacre dos povos originários ocorreu de diversas formas, o uso do álcool foi uma estratégia amplamente utilizada, tornando os indígenas dependentes do rum para conseguir mais facilmente a compra “legal” das poucas terras que ainda restavam.
Em A People’s History of the United States (1980), Howard Zinn sustenta que a principal motivação dos colonos europeus na América do Norte para se tornarem independentes da monarquia inglesa não foi o ideário democrático mas sim o afã da expansão sobre os territórios indígenas. Explica que depois de 1763, com o triunfo da Inglaterra sobre a França na Guerra dos Sete Anos, e com os franceses expulsos da América do Norte, à ambiciosa elite social e política das colónias restavam só dois rivais: os ingleses e os indígenas. Os ingleses, para acalmar os indígenas, tinham declarado que as terras a oeste dos montes Apalaches estavam fora do alcance dos colonos europeus (Proclamação de 1763). De maneira que a expansão da elite colonial sobre as terras indígenas só poderia ser conseguida se as Treze Colónias se tornassem independentes da Inglaterra.
O processo de colonização e evangelização de homens e mulheres sequestrados de seus países de origem na África foi brutal. Para atender às demandas do sistema escravista os colonos impossibilitaram qualquer vínculo desses indivíduos com sua ancestralidade.
O poder do protestantismo diante da violência do catolicismo ibérico foi bastante reduzido, mas, embora tenha acontecido o mais grotesco e desumano, como a impossibilidade de qualquer permanência com a cultura religiosa africana, pouco se discute a brutalidade do colonialismo norte-americano, principalmente quando pensamos na ausência de estudos e difusão de trabalhos sobre o massacre dos povos indígenas, o que gera certa ausência nos debates sobre o colonialismo.
É preciso lembrar também que os afro-americanos conquistaram o direito de ser humano após um (1) século em 1863 e o direito de voto após dois (2) séculos daquela “revolução política” em 1965. A violência sofrida com as leis Jim Crow estabelecidas entre 1877-1964 e a barbárie outrora cometida pela Ku klux Klan e agora por grupos de supremacia branca, como o Proud Boy mostram as permanências do sistema colonial. Ou seja, nem mesmo com todos os fatos descritos há um debate aprofundado sobre o que foi a revolução estadunidense e como propor um novo ensino nas escolas e universidades do continente que modifiquem a visão limitada que ainda predomina nos espaços de poder/saber.
O mesmo ocorre com a Revolução Francesa de 26 de agosto de 1789, descrita como uma revolução exemplar em termos de “Direitos Humanos”, “Revolta Popular” e “Liberdade e Igualdade”, nunca especificaram que as leis surgidas após o período, como o Código Civil Francês (1804) que negava às mulheres os mesmos direitos que os homens e as famosas leis do Código Negro (Code noir) ainda vigoravam em todas as suas colônias, inclusive em Santo Domingo, que considerava os africanos e seus descendentes como bens móveis sem direitos legais. A grande questão é: Houve realmente uma revolução ou batalha no mundo pelos direitos humanos, contra a discriminação, a segregação e o racismo? Que tal a batalha de Vertiéres que a maioria das pessoas desconhece?
A Batalha de Vertières
Somente em fevereiro de 2019 a palavra vertières pôde entrar no dicionário da Academia Francesa, graças à luta intelectual do acadêmico haitiano-canadense Dany Laferrière. O atraso aconteceu precisamente porque aquela palavra se referia ao espaço geoestratégico onde o exército denominado “indígena” – segundo alguns historiadores – que levava esse nome em homenagem aos povos originários e suas rebeliões – derrotou o exército napoleônico e proclamou a libertação dos escravos. A agrupação protegeu a todos os estrangeiros que pisaram no solo da ilha de Santo Domingo (atual Haiti) fugidos da escravidão, dos maus-tratos ou da perseguição política dos colonizadores.
A Batalha de Vertières, pouco nomeada e reconhecida, foi a última grande batalha da Revolução Haitiana, que gerou uma mudança nas estruturas sociais, quebrando os paradigmas impostos pelo homem europeu. A insurreição, distintamente da Revolução Francesa, buscou de fato, igualdade, liberdade e fraternidade, independentemente da cor da pele, sexo, classe social e educação.
É por isso que hoje, em solo haitiano, mesmo que seja uma população geneticamente diversa (especialmente africanos, nativos, poloneses, ingleses, alemães, judeus, libaneses, árabes) estão unidos sob uma única língua, o creole haitiano, sob uma visão de mundo e cultura única, a cultura haitiana.
Mas quais são os fatos importantes sobre direitos humanos que precisam ser destacados sobre esse exército e essa batalha?
Inclusão sexual, étnico-racial e princípios humanitários no continente
No exército indígena as mulheres eram numericamente superiores aos homens. Jacques Houdaille disse que havia três mulheres negras para cada homem. Durante a batalha todos participaram, muitos com alto posto no exército, deve-se notar que Cecile Fatiman foi a iniciadora da batalha da revolução haitiana, Romaine Rivière (o Profeta) foi um dos líderes insurgentes, mas se percebia com o gênero feminino, se vestia apenas com roupas de mulher no campo de batalha. Catherine Flon era quem costurava a bandeira do exército. Marie-Jeanne Lamartiniére era uma mulher, mas se vestia com roupas de homem e se reconhecia como soldado, Sanite Belair era tenente. A esposa de J.J. Dessalines, Général de la Armada, Marie-Claire Heureuse Félicité Bonheur, era enfermeira do exército, durante a batalha de Vertières, e cuidou dos soldados “indígenas” e soldados franceses feridos no campo de batalha.
No entanto, a visão difundida foi de um verdadeiro “massacre” de brancos, mas é preciso destacar que o exército indígena não era composto apenas de negros, havia também brancos. Em junho de 1802, cerca de 2.270 soldados poloneses chegaram a Cap-Français (agora Cap Haitien), a capital colonial de Santo Domingo, enquanto em setembro 2.500 mais chegaram a Port-Républicain (hoje Port-au-Prince). Os poloneses, assim como alguns alemães e suíços acabaram constituindo uma fração insignificante da força expedicionária francesa enviada para reprimir a rebelião. Enganados e abandonados por Napoleão, em 18 de novembro de 1803, decidiram lutar ao lado do exército “indígena”.
Após a guerra, alguns poloneses pediram para voltar à Europa para encontrar suas famílias, o próprio Dessalines organizou a operação, que foi totalmente financiada pelo Estado haitiano.
O general polonês Ludwik Mateusz Dembowski escreveu ao general do exército francês Rochambo: “Tive a oportunidade de conhecer o líder dos insurgentes, Dessalines […] Apesar da grande selvageria que geralmente demonstram, eles me acolheram, e apesar do desconhecimento que supõem que exista, raciocinam para com justiça ”.
Embora durante a guerra, o lema do general Dessalines fosse “cortar as cabeças dos soldados brancos e queimar todas as casas”, ordenou a todos que não machucassem as enfermeiras, médicos e curas. Da mesma forma, a colônia era uma espécie de empresa e as famílias dos colonizadores estavam em seus países de origem, protegidos, no entanto, os habitantes perderam seus familiares frente a violência do exército napoleônico. Em 19 de novembro de 1803, os oficiais do exército francês declararam a derrotada, J.J. Dessalines concedeu a eles três (3) dias para que regressassem à França.
James.M.Kewan, traficante de homens e mulheres, foi perguntar a Alejandro Pétion sobre os negros e negras que eram de sua “propriedade”, Alejandro respondeu: “Colonizador, os homens que você procura agora são livres e são cidadãos da República do Haiti. Eles não são mais sua propriedade. Quanto a você, dou-lhe 24 horas para deixar o solo haitiano ”.
Após a batalha de Vertières, Jean Jacques Dessalines, organizou em maio de 1806, planos para libertar a Martinica, Guadalupe. Anos depois, o presidente Alejandro Pétion, ex-general do exército indígena, também recebeu Simón Bolívar entre 1815 e 1816, forneceu-lhe munições e mais de 300 oficiais do exército para libertar a Gran Colômbia (Colômbia, Equador, Panamá , Venezuela incluindo Guayana Esequiba e algumas pequenas porções do Brasil, Peru e Nicarágua), bem como recebeu e ofereceu a Francisco de Miranda a Espada Libertadora do Haiti para continuar lutando pela libertação pela emancipação americana. Alexandre Pétion concedeu asilo político ao argentino Manuel Dorrego em 1814. Francisco Xavier e Morfi também pediu auxílio e o General Pétion ofereceu apoio e permitiu a utilização de um navio haitiano que o levou ao México para lutar pela independência. Em abril de 1817, o então presidente recebeu uma carta do político argentino Juan Martín de Pueyrredón sobre a consolidação da independência da Argentina, ou seja, diversos movimentos de libertação do jugo colonialista surgiram após a Revolução Haitiana, mas a negação de sua importância e as cruéis consequências são apenas a confirmação do racismo que não está presente apenas no continente americano, mas no mundo.
O grande desconhecimento sobre essa batalha que buscou efetivar os ideais levantados pela Revolução Francesa, que incluíram a igualdade de todos, bem como o nível de inclusão sexual, de gênero e étnico-racial, verdadeiros princípios humanitários, estiveram presente em todo o processo – e que anos depois eles próprios chamaram de “leis da guerra” – deve-se principalmente à histórica campanha de violadores de direitos e de intelectuais mercenários, como Jean Louis Dubocra (1805) que foi contratado por Napoleão Bonaparte para apagar os feitos de Jean Jacques Dessalines e dos insurgentes, bem como a importância da nação haitiana no continente após a independência.
Em suma, os descendentes dos proprietários de escravos continuam a esconder a Revolução por vergonha ou vingança, por meio de jornalistas mercenários, políticos e intelectuais. Por essa razão ”colonizam” as pesquisas científicas sustentando o eurocentrismo. Ocupam posições nos espaços políticos, midiáticos e acadêmicos, e perpetuam o imaginário sobre a cultura e principalmente a religião predominante no Haiti: o vodu.
Em todo caso, é indiscutível que uma revolução deveria ser a favor da expansão dos direitos humanos e gerar mudanças estruturais que envolvem o corpo social como um todo.
A Revolução Francesa e a Revolução Estadunidense são exemplos claros de que não foram “revoluções”, mas um movimento em defesa de uma pequena elite e de uma burguesia insatisfeita que usou o povo como bucha de canhão. Portanto, os empobrecidos, as mulheres, os afro-descendentes e a massa ficaram no esquecimento, procurando sobreviver dentro de um sistema “novo” mas igualmente opressor.
Haiti depois de Vertières
O grande intelectual Aimé Césaire, disse: “O Haiti foi a nação em que a negritude se levantou pela primeira vez”, mas a maioria não sabe que tal fato teve seu preço, para reconhecer o Haiti como nação livre a França estabeleceu uma multa, gerando uma dívida que foi paga até 1947.
A quantia de 150 milhões de francos (o equivalente hoje a 22 bilhões de dólares), serviu para que o país fosse aceito diplomaticamente e devolvesse aos senhores o dinheiro pela perda de terras e escravos. Deve-se notar que não era um acordo, mas uma ordem do rei de Carlos X sob a ameaça de invadir novamente a nação.
A França até hoje se recusa a devolver o dinheiro ao Haiti, o que ajuda a manter a pobreza que começou após a libertação do país. Apesar do contexto desolador, o Haiti mostrou que existe um caminho gerado através da resistência, e que embora não seja fácil, uma vez que o colonialismo é modernizado e a escravidão é internalizada em governos e cidadãos racistas em todo o mundo existe resistência. A questão que fica é: O racismo acabará sem reconhecer a importância do Haiti e sua luta por um modelo igualitário de sociedade? Quando a Revolução Haitiana terá mais relevância nas escolas, ensinando os verdadeiros princípios humanistas? Quando será entendido que o Haiti é a representação dos negros massacrados diariamente por reivindicarem seu direito de existir? Quando o mundo exigirá a devolução do dinheiro roubado pelos europeus?
O Haiti é a força dos negros na América, um país que segue lutando constantemente contra a violência imposta por outras nações, ainda que marcado por uma gama de opressões, porém, sua história nunca será apagada, mesmo que mentes orientadas pelas luzes da “razão” tentem.
Bibliografia
https://www.esquerda.net/artigo/4-de-julho-dia-da-independencia-dos-eua-historia-oculta/33291
https://www.esquerda.net/artigo/4-de-julho-dia-da-independencia-dos-eua-historia-oculta/33291
*Camila Koenigstein é graduada em História, pela Pontifícia Universidade Católica – SP, e pós-graduada em Sociopsicologia, pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina e Caribe, pela Universidade de Buenos Aires (UBA).
*Jean Jackson. Integrante del programa de investigación y Extensión sobre Afrodescendiente y Estudios Afrodiasporicós, Estudiante Avanzado en Política (UNSAM-IDAES-UNIAFRO).