Em memórias publicadas nesta terça, Obama faz observações nada gentis a Lula e Putin. O livro abrange a infância e o início da carreira política, passando por sua vitória em 2008, os dissabores no governo, sua relação com líderes internacionais e termina com detalhes da operação que levou à morte de Osama bin Laden
A entrevista de Barack Obama na televisão brasileira deixa claro que o Brasil terá nos próximos anos o desafio de recuperar uma desgastada imagem nas questões ambientais e medidas controversas na pandemia.
Falando nesta segunda-feira no programa “Conversa com Bial”, o ex-presidente americano disse que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro e o americano Donald Trump se assemelham em declarações controversas de negação da pandemia e citou os questionamentos à gestão ambiental do Brasil. “Olhando para a pandemia, Donald Trump, assim como o Brasil, não deram ênfase para a ciência, e houve consequências para ele [Trump]”.
Obama falou ainda sobre sua relação com Luiz Inácio Lula da Silva e reconheceu avanços no Brasil na gestão do ex-presidente. Mas também fez comentários negativos e lembrou as denúncias de corrupção envolvendo Lula, dizendo que não sabia dos fatos anteriormente.
Um dia após a entrevista na TV brasileira, o livro ‘Uma terra prometida’ foi lançado nesta terça-feira no Brasil pela Companhia das Letras. A obra abrange a infância e o início da sua carreira política, com as eleições ao senado estadual e nacional, passando por sua vitória em 2008 e os dissabores no governo, em que teve suas iniciativas constantemente bloqueadas pelo Congresso dominado por republicanos a partir de 2010.
Crítica a Lula e Putin
Apesar de ter elogiado Lula no programa ‘Conversa com Bial’, no livro há observações pouco gentis ao ex-presidente brasileiro. Em uma cúpula do G20 em abril de 2009, em Londres, Obama chegou a dizer que Lula era “o cara” e “o político mais popular da Terra”.
No livro, o democrata começa dizendo que Lula havia causado “boa impressão” em reunião no Salão Oval da Casa Branca naquele ano, e descreve o petista como “ex-líder sindical grisalho e cativante” que “tinha iniciado uma série de reformas pragmáticas que fizeram as taxas de crescimento do Brasil dispararem, ampliando sua classe média e assegurando moradia e educação para milhões de cidadãos mais pobres”.
Mas conclui apontando para relatos sobre corrupção no governo e falta de escrúpulos de Lula. “Constava também que tinha os escrúpulos de um chefão do Tammany Hall, e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões”, diz. Tammany Hall era uma organização política nova-iorquina da virada do século 18 para 19 associada a corrupção e abuso do poder.
Obama deixa claro quem era seu líder dos Brics favorito: Manmohan Singh, então primeiro-ministro da Índia, “sábio, compassivo e escrupulosamente honesto”. Já o russo Vladimir Putin recebe adjetivos bem semelhantes aos dedicados a Lula: é descrito como aqueles chefões do Tammany Hall, que “consideravam os apadrinhamentos, as propinas, as extorsões, as fraudes e os ocasionais atos de violência ferramentas legítimas do ofício”.
A chanceler Angela Merkel é uma “mistura de capacidade de organização, sagacidade estratégica e paciência inabalável”. O ex-presidente francês Nicholas Sarkozy era “puro arroubo emocional e grandiloquência retórica”, usava palmilhas especiais para ficar mais alto, e conversava com “o peito estufado como o de um galo garnisé”.
Bush e a transição
Poucos dias após a eleição de Barack Obama em 2008, o presidente George W. Bush ligou para cumprimentar o democrata pela vitória histórica. Fosse “pelo respeito que ele tinha pela instituição” ou por “decência pura e simples”, Bush fez de tudo para ajudar Obama na transição, e as filhas do republicano chegaram a reorganizar sua agenda para levar as filhas de Obama em um tour pelas “partes divertidas” da Casa Branca.
Quando Obama descreve a civilidade com que Bush o ajudou na transição, é inevitável não pensar nas atitudes do atual mandatário americano, Donald Trump, que se recusa a admitir a derrota na eleição e atrapalha a transferência de poder para o presidente-eleito Joe Biden.
Extrema-direita e Biden como vice
Obama discorre sobre a ascensão da política tóxica atualmente em vigor com o fortalecimento do movimento Tea Party, que acabaria sequestrando o partido republicano. Um de seus maiores símbolos foi Sarah Palin, a ex-governadora do Alasca escolhida para vice do republicano John McCain em 2008. “Através de Palin, os espíritos sinistros que havia tempos espreitavam das margens do moderno Partido Republicano — teorias conspiratórias e antipatia por pessoas negras e de pele escura— pareciam conseguir avançar para o centro do palco”, relembra Obama
E aborda o processo de escolha de Biden para a vaga de vice em sua chapa. Obama precisava de alguém mais velho e experiente, para amenizar a desconfiança que despertava a candidatura presidencial de um senador com apenas dois anos de mandato. “O mais importante, porém, era o que os meus instintos me diziam —que Joe era decente, honesto e leal. Eu acreditava que ele se importava com as pessoas comuns e que, numa situação difícil, seria alguém confiável. E eu estava certo.”
Durante o governo, diversas vezes, Biden deu opiniões sinceras e divergentes da equipe de Obama, como no episódio em que se opôs à pressão dos militares para enviar mais tropas ao Afeganistão.
Pânico ao primeiro presidente negro
Obama revela que o populismo de direita que envenenou o cenário político americano, calcado em xenofobia, racismo e nacionalismo, começou a tomar conta do partido republicano já naquela época.
Obama afirma que era como se a simples presença do primeiro presidente negro na Casa Branca tivesse desencadeado um pânico, uma sensação de que a ordem natural das coisas havia sido subvertida. Candidatos republicanos adotaram o ressentimento como tema central, assim como a Fox News e os bilionários irmãos Koch, patrocinadores de causas conservadoras. Segundo Obama, o mote era: “O governo estava tomando dinheiro, empregos, vagas em faculdades e status social de gente trabalhadora e merecedora como nós e entregando a eles —os que não compartilham de nossos valores, que não trabalhavam tanto quanto nós…”.
Trump entendeu cedo que poderia se aproveitar desse ressentimento para se alavancar na política americana. Ele passou a espalhar a teoria da conspiração birther, de que Obama não teria nascido nos EUA, mas sim no Quênia, e, portanto, não poderia ser presidente dos EUA. O que começou como uma piada que Obama não levava a sério ganhou tração. Pesquisas mostravam que 40% dos americanos estavam convencidos de que Obama não havia nascido nos EUA. “Aos milhões de americanos que se sentiam ameaçados por um negro na Casa Branca, ele [Trump] prometeu um elixir para sua ansiedade de fundo racial”, diz Obama.
Abaixo, leia trechos das memórias de Obama:
Em termos econômicos, os cinco países que formavam o Brics —Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul— tinham pouca coisa em comum, e só mais tarde se formalizaram de fato como bloco. (A África do Sul só ingressaria formalmente em 2010.) Mas, mesmo no G20 de Londres, o espírito por trás dessa associação estava claro. Eram todos países grandes e conscientes de sua importância que, de uma forma ou de outra, tinham emergido de longos períodos de torpor. Já não se contentavam em ser relegados à margem da história, ou em ver seu status reduzido ao de potências regionais. Se irritavam com o papel desproporcional do Ocidente na gestão da economia global. E, na crise, viam uma oportunidade de começar a virar a mesa.
Em tese, pelo menos, eu simpatizava com seu ponto de vista. Juntos, os Brics representavam pouco mais de 40% da população do planeta, mas cerca de um quarto do PIB mundial e apenas uma fração de sua riqueza. Decisões tomadas em diretorias de empresas em Nova York, Londres ou Paris costumavam ter mais impacto sobre suas economias do que as escolhas políticas feitas por seus próprios governos. Sua influência dentro do Banco Mundial e do FMI continuava limitada, apesar das notáveis transformações ocorridas na China, na Índia e no Brasil. Se os Estados Unidos quisessem preservar o sistema global que durante tanto tempo nos servira, fazia sentido dar mais voz a essas potências emergentes no modus operandi —ressaltando, ao mesmo tempo, que precisavam assumir maior responsabilidade pelos custos de sua manutenção.
E apesar disso, percorrendo a mesa com os olhos no segundo dia da cúpula, não pude deixar de me perguntar o que um papel maior para os BRICS na governança global poderia significar. O presidente brasileiro, por exemplo, Luiz Inácio Lula da Silva, tinha visitado o Salão Oval em março, causando boa impressão. Ex-líder sindical grisalho e cativante, com uma passagem pela prisão por protestar contra o governo militar, e eleito em 2002, tinha iniciado uma série de reformas pragmáticas que fizeram as taxas de crescimento do Brasil dispararem, ampliando sua classe média e assegurando moradia e educação para milhões de cidadãos mais pobres. Constava também que tinha os escrúpulos de um chefão do Tammany Hall, e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões.
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Durante os dois dias seguintes, mesmo enquanto os navios de guerra dos Estados Unidos e do Reino Unido começaram a lançar mísseis Tomahawk para destruir as defesas aéreas líbias, seguimos minha programação praticamente à risca. Me encontrei com um grupo de CEOs americanos e brasileiros a fim de examinar possíveis meios de aprimorar nossas relações comerciais, participei de um coquetel com altos funcionários do governo e tirei fotos com o pessoal da embaixada e suas famílias. No Rio de Janeiro, falei para 2.000 líderes políticos, da sociedade civil e do mundo dos negócios sobre os desafios e oportunidades que nossos países partilhavam como as duas maiores democracias do hemisfério. Mas o tempo todo eu recebia de Tom notícias sobre a Líbia, imaginando o que estava se passando a mais de 8.000 quilômetros de distância: o silvo dos mísseis cortando o ar; as explosões em cascata, os destroços e a fumaça; os rostos dos fiéis apoiadores de Gaddafi ao olharem para o céu e calcularem suas chances de sobrevivência.
Minha atenção estava dividida, mas eu compreendia também que a presença no Brasil era importante, em especial para os brasileiros de ascendência africana, que representavam pouco mais da metade da população do país e, como os negros nos Estados Unidos, sofriam o mesmo tipo de pobreza e de racismo profundamente enraizado —ainda que com frequência negado. Michelle, as meninas e eu visitamos uma grande favela na Zona Oeste do Rio, onde paramos num centro comunitário para a juventude a fim de assistir à apresentação de um grupo de capoeira e eu dei alguns chutes numa bola de futebol com alguns garotos locais. Quando saímos, centenas de pessoas se acotovelavam do lado de fora do centro e, embora minha equipe do Serviço Secreto houvesse vetado um passeio pela vizinhança, eu os convenci a me deixar atravessar o portão e cumprimentar a multidão. De pé no meio de uma rua estreita, acenei para os rostos negros, pardos e bronzeados; os residentes, muitos deles crianças, se amontoavam nos telhados e nas pequenas varandas, ou se apertavam contra as barricadas da polícia. Valerie, que viajava conosco e testemunhou toda a cena, sorriu quando entrei e disse: “Aposto que mudamos a vida de algumas dessas crianças para sempre”.
Eu me perguntava se aquilo era verdade. Era isso o que eu dizia a mim mesmo ao iniciar minha jornada política, e usei como parte da justificativa que dei a Michelle para concorrer à presidência —que a eleição e a liderança de um presidente negro faria mudar a autoimagem e a visão de mundo de crianças e jovens de todos os lugares. E, no entanto, eu sabia que o eventual impacto que minha rápida presença pudesse exercer sobre aquelas crianças nas favelas, por mais que isso pudesse fazer com que algumas erguessem um pouco mais a cabeça e tivessem sonhos mais ousados, em nada compensaria a pobreza asfixiante que enfrentavam todos os dias —as escolas ruins, o ar poluído, a água contaminada e a desordem absoluta que muitas delas precisavam encarar apenas para sobreviver. Para mim, o impacto que eu exercera até então na vida das crianças pobres e de suas famílias havia sido insignificante —mesmo em meu próprio país. Todo o meu tempo tinha sido absorvido somente pela tentativa de evitar uma piora na condição dos pobres, tanto nos Estados Unidos como no exterior, me certificando de que uma recessão global não abalasse drasticamente sua condição ou eliminasse o acesso precário ao mercado de trabalho que tinham obtido; tentando impedir uma mudança climática que poderia conduzir a inundações ou tempestades mortais; ou, no caso da Líbia, procurando evitar que um exército comandado por um louco metralhasse as pessoas nas ruas. Isso era alguma coisa, pensei —desde que eu não começasse a enganar a mim mesmo achando que fosse algo mais que uma fração do necessário.
Na curta viagem de volta para o hotel no Marine One, o helicóptero sobrevoou a magnífica cadeia de montanhas cobertas de florestas que circundam o litoral. A icônica estátua do Cristo Redentor, com seus trinta metros de altura, surgiu de repente no topo do pico em forma de cone chamado Corcovado. Tínhamos planejado visitar o local naquela noite. Me inclinando para mais perto de Sasha e Malia, apontei para o monumento, uma figura distante, vestindo um manto e com os braços abertos, branco contra o céu azul.
“Vejam… é lá que vamos hoje à noite.”
As duas meninas ouviam música em seus iPods enquanto folheavam algumas das revistas de Michelle, seus olhos examinando imagens reluzentes de celebridades de rostos acetinados que eu não reconhecia. Depois que acenei com as mãos para chamar a atenção delas, as duas tiraram os fones do ouvido, viraram a cabeça ao mesmo tempo em direção à janela e a sacudiram sem dizer uma palavra, fazendo uma breve pausa como se desejassem me agradar antes de colocarem de volta os fones. Michelle, que parecia estar cochilando enquanto ouvia música em seu próprio iPod, não fez nenhum comentário.
Mais tarde, quando jantávamos no restaurante ao ar livre de nosso hotel, fomos informados de que um denso nevoeiro descera sobre o Corcovado e que talvez tivéssemos de cancelar a ida ao Cristo Redentor. Malia e Sasha não pareceram ter ficado muito decepcionadas. Observei as duas enquanto pediam ao garçom o menu das sobremesas, um pouco aborrecido pela falta de entusiasmo. Dedicando uma parte maior do meu tempo para monitorar os acontecimentos na Líbia, eu estava vendo a família ainda menos nessa viagem do que quando estávamos em casa, e isso aumentava minha sensação — já bem frequente nos últimos tempos — de que minhas filhas vinham crescendo mais rápido do que eu esperava. Malia estava prestes a se tornar uma adolescente — os dentes reluzindo com o aparelho, os cabelos presos descuidadamente num rabo de cavalo, o corpo que da noite para o dia havia se tornado tão comprido e esguio quanto o da mãe, como se tivesse passado por uma roda de tortura invisível. Aos nove anos, Sasha pelo menos ainda mantinha a aparência de uma criança, com seu sorriso doce e bochechas com covinhas, porém eu notara uma mudança de postura em relação a mim. Estava menos inclinada a me deixar fazer cócegas nela do que antes, parecendo impaciente e um pouco envergonhada quando eu tentava lhe dar a mão em público.
Eu continuava a me maravilhar com a estabilidade de ambas, com o modo como tinham se adaptado tão bem às estranhas e extraordinárias circunstâncias em que cresciam, fazendo sem esforço a transição entre audiências com o papa e visitas ao shopping. Em termos gerais, não gostavam de receber tratamento especial ou atenção exagerada, desejando simplesmente ser como as outras garotas na escola. (Quando, no primeiro dia do quarto ano, um colega tentou tirar uma foto de Sasha, ela arrancou a câmera de suas mãos e avisou que era melhor não tentar outra vez.) Na verdade, elas preferiam ficar na casa das amigas, em parte porque lá eram menos vigiadas em relação às guloseimas que comiam e ao tempo de televisão a que assistiam, mas sobretudo porque era mais fácil fingir que tinham uma vida normal, mesmo com uma equipe do Serviço Secreto estacionada no outro lado da rua. E não havia problema nenhum nisso, exceto pelo fato de que a vida delas nunca era menos normal do que quando se encontravam em minha companhia. Para mim, era impossível evitar o temor de que estivesse desperdiçando o tempo precioso de conviver com elas antes que voassem para fora do ninho…
“Tudo certo”, disse Marvin, se aproximando de nossa mesa. “A neblina se dissipou.”
Nós quatro então nos acomodamos na parte de trás do veículo e pouco depois subíamos por uma estrada sinuosa e escura, ladeada de árvores, até que nosso comboio de repente parou diante de uma praça ampla e bem iluminada. Uma figura enorme e brilhante parecia acenar para nós em meio à névoa. Enquanto galgávamos uma série de degraus, com os pescoços esticados para trás na tentativa de apreciar a vista, senti a mão de Sasha agarrar meu braço. Malia passou o braço em volta da minha cintura.
“Temos que rezar ou alguma coisa assim?”, perguntou Sasha.
“Por que não?”, respondi. Então nos juntamos, as cabeças curvadas em silêncio, e eu soube que ao menos uma de minhas preces naquela noite havia sido atendida.
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