A decisão de acabar com o racismo depende de um posicionamento político
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Na gênese de qualquer verdade universal existe sempre um crime e o racismo é inadvertidamente uma dessas verdades. E se a desigualdade não é natural, pela operação da ideologia ela já se naturalizou. O racismo, bem, é um dos elementos atuais mais importantes de desigualdade.
Se aprende a ser racista. Mas não se aprende a não sê-lo. Isso se desaprende, fruto de uma decisão política.
Para isso precisamos compreender a natureza do privilégio. O privilégio se manifesta como uma emoção, um orgulho de se ver num lugar acima dos outros.
Mas o privilégio é sentido primeiro nos outros, naqueles que estão acima de nós. O sentimos com um duplo sentimento de inveja e desprezo. Queremos e não queremos o seu lugar social distinto. Na impossibilidade de ter, odiamos, queremos destruir e essa impotência nos mobiliza. Porque o ódio é uma impotência, é fruto de uma impossibilidade.
Mas então caçamos as oportunidades de também nos sentirmos distintos. E será entre os iguais que o faremos. Seremos implacáveis com os mais fracos que nós.
E quando humilhamos o mais fraco, sentimos aquele olhar familiar dos outros sobre nós, misto de inveja e temor. Ninguém o defende, pois teme que o forte faça o mesmo consigo.
E uma vez no lugar do privilégio, a sensação será tão intensa que queremos isso mais e mais.
É assim que numa sociedade desigual, a desigualdade se torna um valor. Seremos atraídos para situações em que possamos devotar energia ao altar das hierarquias. E assim perdoamos aqueles que são grandiosos, pois entendemos que o sentimento deles é o mesmo que o nosso. São humanos afinal.
As distinções não podem ser infinitas, senão enfrentaríamos uma sociedade opressora sem saída para o vínculo, para a inveja e para a superação. A emulação é uma possibilidade real numa sociedade desse tipo, caso não queiramos que ela desabe.
Então as distinções tem início muito antes de compreendermos a estrutura que a gerou. Adultos, crianças oferecem uma distinção inicial bem fortalecida. O adulto sabe mais que a criança e pode lhe corrigir os erros a tempo.
Também a tempo o menino saberá que é melhor que a menina. Hão de lhe solicitar a masculinidade precoce. Receberá elogios por isso. E símbolos dessa preferência. E entre os meninos irá em busca do lugar do privilégio, da força e da astúcia. Na escola saberá que os valores mudaram. Agora precisa do reconhecimento do professor ou da professora e isso depende de algum esforço que nutra a atenção. Ambicionará a nota e a subserviência. Ali começará a perceber outras distinções. Uma delas a cor da pele determinando o lugar social na geografia da sala de aula. Mesmo sem entender as motivações da exclusão insistente, logo verá aí outro valor da opressão. Por algo inexplicável, vai humilhar o colega baseado na cor da pele e buscará justificar essa nova forma de hierarquia.
Nessa altura ele compreende algumas coisas: que as distinções movimentam inúmeros lugares de poder, a masculinidade, o conhecimento, o preconceito, e tem início nessa fase o julgamento que é o impulsionador do pensamento linear e dicotômico.
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Quando entrar no mundo do trabalho essa base será importante tanto para obedecer as desumanas regras sociais quanto para nutrir outras formas de soberba e de privilégios. Terá aprendido a bajular, a puxar o saco do mais forte, que agora é o chefe da seção. Mas também estará aprendendo como fazer isso com os subalternos.
Então vai encontrar o amor. E o amor será parte de uma posse. Ele ou ela é minha, minha mulher, meu marido. Essa situação privatista definirá outro lugar de privilégio. E virão os filhos a reproduzirem a mesma ordem, a mesma hierarquia.
E então vem o poder como uma conquista. Na forma de empoderamento, o poder é uma dádiva do privilégio. Poder oprimir o igual, não tem comparação e poder oprimir legalmente, sem a vergonha da força, oprimir juridicamente. É como se finalmente aquele mundo de inveja tão distante ruísse e agora estamos no lugar social que merecemos.
Se somos negros podemos reparar injustiças históricas fazendo calar aqueles que julgamos opressores da raça; se somos mulheres, finalmente estamos num lugar de superioridade em relação aos infames machistas. Há sempre um lugar acima que cobiçávamos e que agora é nosso.
Então chega o tempo das denuncias. Denunciamos o racismo e divulgamos os eventos de discriminação e preconceito. E cada vez que fazemos a denuncia, fortalecemos nosso lugar de poder. Clamamos pela justiça que embora tardia, não falha e chega para revelar as condições sociais dos negros num país racista.
E aparecem livros que são verdadeiras cartilhas para eliminar o preconceito de raça e são vendidos aos milhões, pois todos querem aprender como deixar de ser racista.
E as denuncias se avolumam e as cartilhas se avolumam e é como se as denuncias revelassem o que estava oculto, daí o aumento de denuncias e de preconceito e discriminação. E todos querem conscientemente deixar de ser racistas, mas o racismo só aumenta.
Há um mecanismo social que explica tal gradiente. Socialmente as mudanças são impossíveis, pois todos temos que mudar juntos. É como se o social fosse o magma onde nos movemos. E o magma deve movimentar a mudança.
Mas o que caracteriza a modernidade é o surgimento do indivíduo, um ser separado do social e que integra o social apenas nas grandiosas nutrições de sua organização. Não está preparado para desorganizar esse social. Por isso a desigualdade não reflui num só grau, embora todos queiram que ela desapareça em sua boa intenção infinita.
Com a avalanche de denuncias de racismos, de discriminação e de preconceito, o racismo mais se fortalece, pois a dicotomia é um sistema de retroalimentação infinito. A expansão do racismo então se prolifera de modo sutil no interior dos antirracistas. O ódio aos racistas é o combustível dessa expansão. Queremos que os racistas desapareçam da face da terra com toda nossa força e convicção. Os antirracistas então se transformam nos racistas contra os racistas. E esse ódio faz avançar também naqueles que não davam tanta importância assim para questões como essas. E novos racistas se levantam nas hostes racistas e antirracistas. É um crescimento exponencial.
Então o que deixa de ficar evidente é que as disputas por lugares de privilégio atingiram o coração do racismo e a defesa e o ataque se confundem em zonas de conflito. Ninguém quer perder seu lugar, garantindo a longevidade do racismo.
O sistema dicotômico é tão eficiente porque faz aumentar aquilo contra o qual se investe, a despeito de acreditarmos na eficiência da luta. Lutar contra o racismo faz aumentar o racismo. É inocente presumir que uma grande energia devotada a derrotar uma ideia não vá fazer crescer essa mesma ideia para muito além do estado atual em que se encontra. Essa é a função da ideologia, criar campos de exclusividade fazendo aumentar os territórios e o número dos combatentes inimigos.
Exemplos desse paradoxo não faltam, seja a guerra fria ou a grande onde de rejeição à eleição de bolsonaro, o elenão, que gerou uma onda ainda maior de aprovação justamente como reação reticular. Seja a relação esquerda direita ou os sistemas jurídicos de proteção à mulher que só fez aumentar a violência contra elas numa sociedade patriarcal tradicional.
Enquanto a disputa pelo lugar do privilégio existir, o racismo prosseguirá num crescendo virtuoso. A pergunta que importa é quem está disposto a abrir mão do privilégio numa sociedade de castas.
Numa sociedade desumana como a nossa a última coisa em que se pensa é em humanização. A coisificação é nosso modus operandi da relação social. Empoderar aparenta ser mais sedutor do que humanizar.
Claro que todos concordamos que o racismo é um malefício e uma indignidade, e claro que todos sabemos que uma pessoa não é inferior a outra por conta da cor da pele, mas esperamos que todo o social se modifica como garantia para também mudarmos nossa concepção do racismo.
Essa espera tem um significado muito específico, pois responde a um desejo íntimo de justiça e correção, pois se todo o social mudar nesse quesito, terá também mudado na desigualdade que alimenta e que alimentamos juntos. Essa justiça implica em que o lugar do privilégio foi erradicado, junto com todos os outros privilégios. Só então teremos a paz de uma convivência respeitosa. Antes disso, somos obrigados a apimentar o social na defesa de um lugar, um ao menos, que garanta a cada um de nós algum privilégio. Privilégio de ser branco, privilégio de ser negro empoderado.
Então a decisão de acabar com o racismo depende de um posicionamento político. Vamos lembrar que política é a nossa capacidade de irradiar em nosso lugar de vivência. Podemos interferir em nossa comunidade de muitas formas. Mas imaginamos que política tem a ver com alguma profissão.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
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