Cinthia Filomeno*
Vocês sabiam que a gente também aprende – e muito – com o que os sambas-enredo nos contam? Quem diz que carnaval não é cultura, talvez tenha umas lições a aprender.
Todo ano tem carnaval e todo carnaval tem alguém que reclama dizendo que a festa é uma perda de tempo, que ela não agrega em nada e que o bom mesmo é ficar em casa lendo um livro ou colocando as séries em dia. Bom, essas pessoas estão erradas e eu vou contar nesta coluna o porquê. Não que ler ou assistir filmes não sejam uma ótima pedida, de jeito nenhum, mas o ponto é que o carnaval pode ser uma grande fonte de conhecimento, que nos ensina bastante por meio dos sambas apresentados pelas escolas e pelo desfile na avenida com as alegorias que dão vida ao enredo.
É muita informação!
Para provar essa afirmação, vou contar um pouco da magia que são as histórias que as escolas contam na festa mais bonita do planeta, que inclusive, pode te ensinar melhor ou até mais, que muitos professores de escola.
Para podermos entender como a história de contar a história através dos sambas-enredo no carnaval começou, precisamos voltar – mais uma vez – à época da ditadura.
Já sabemos que antigamente não haviam escolas de samba e sim blocos carnavalescos e, o termo escola, só começou a ser empregado de verdade a partir de 1932, quando aconteceu o primeiro desfile oficial das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, (que foi vencido pela Mangueira, uma das primeiras escolas de samba a ser fundada.) Mesmo assim, não foi desde sempre que as escolas contavam histórias através de seus sambas, não.
Os sambas de enredo do carnaval de antigamente eram considerados “sérios” porque Vargas e a ditadura exigiram que os sambas fossem construtivos. Sim, essa história toda começou na chamada “Era Vargas” que foi o período de governo de Getúlio na presidência do Brasil entre 1930 e 1945, marcando o processo de modernização capitalista do país.
Talvez “sério” não seja a palavra ideal para definir aquele espírito bem peculiar que permeia os sambas de enredo até hoje, pelo menos não a única porque, eles também podem ser vistos como didáticos, midiáticos, pretensiosos, elitizados, construtivos e patrióticos.
E isso não é uma crítica, mas uma constatação: se o Carnaval pode ser “caótico” nos blocos e bailes, o que passa pelo sambódromo é assunto sério. E isso tem razões históricas. Se hoje cada escola de samba defende o tema que bem entende, durante 60 anos os enredos das escolas só podiam abordar assuntos nacionais.
Em 1935, Getúlio Vargas fez um acordo com as recém criadas escolas de samba (que já desfilavam pelo centro do Rio como blocos, desde 1929) e, em troca de verba pública, as agremiações retratariam temas brasileiros. Três anos depois, isso virou regulamento oficial da União das Escolas de Samba, responsável pelo julgamento dos desfiles na época e, segundo alguns historiadores e carnavalescos, Vargas tomou essa medida em nome do nacionalismo, para aproveitar a presença crescente da classe média no Carnaval.
Por quase três décadas os enredos se dividiram entre a exaltação à República, aos presidentes, e as passagens da história do Brasil Império e, só em 1957, no Rio, já na era JK (Juscelino Kubitscheck), o Salgueiro fugiu dos temas patrióticos e desfilou “Navio Negreiro”, primeiro samba sobre o tráfico de escravos. Ainda assim, o título foi para a Portela, com um samba sobre a côrte: “Legados de D. João VI”.
O reconhecimento desse outro lado da história do Brasil só viria em 1963, com a vitória do enredo “Chica da Silva”, com o Salgueiro, pois segundo Nelsinho Crescibeni (autor do livro “Convocação Geral: a folia está na rua. O carnaval de São Paulo tem história de verdade”) os compositores passaram a se preocupar mais com a veracidade da história para escrever a letra dos sambas ao invés de compor sambas aleatórios para a avenida.
Durante a ditadura, até as agremiações endureceram e adotaram o tom oficial em seus sambas de enredo. “Para lembrar a criação dos Correios em 1969, a Mangueira saiu em 1971 com o enredo ‘Modernos Bandeirantes’”, como afirmou Haroldo Costa, compositor, produtor musical e autor dos livros “Políticas e Religiões no Carnaval, “100 Anos de Carnaval no Rio de Janeiro”, entre outros.
Dois anos depois, a Beija-Flor tentou mostrar a preocupação dos militares com o ensino no Brasil apresentando o samba “Educação para o Desenvolvimento” e, no começo dos anos 80, no clima de luta pelo fim da ditadura, as escolas de samba passaram a variar mais os seus temas homenageando figuras culturais e falando sobre movimentos populares. A guinada aconteceu em 1989, com a Imperatriz Leopoldinense que exaltou os 100 anos de República com o enredo “Liberdade, Liberdade, Abre as Asas sobre Nós”, um ícone da redemocratização, e um dos poucos sambas enredos a ficarem para sempre na memória, até de quem não é do samba. Nesse ano (1989), a escola foi a grande campeã do carnaval.
Ainda em 1989, o samba da Beija Flor “Cristo Mendigo: de ratos e urubus, larguem a minha fantasia”, com seu desfile impecável foi considerado o mais forte candidato à imagem histórica da Marquês de Sapucaí, mas que o saudoso Joãozinho Trinta (carnavalesco da escola na época) me perdoe, essa obra genial teve a colaboração indireta de outra figura do samba e do carnaval. Anos antes, uma ideia de Martinho da Vila chamou a atenção para a possibilidade de brilhar na avenida sem paetês, e sua escola a Vila Isabel foi quem ganhou o campeonato em 1988, com “Kizomba, a festa da raça”, em que todas as fantasias e carros alegóricos foram produzidos com materiais baratos.
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Em 1988, ano do Centenário da Abolição, o apelo do enredo exaltando a cultura negra ilustrada de forma simples foi tão forte, que pôs em xeque o luxo. Nesse mesmo ano, a Beija-Flor fez um dos desfiles mais ricos de sua história com o enredo “Sou negro, do Egito à liberdade”, mas a escola só conseguiu o terceiro lugar.
Foi então, a gota d’água para Joãozinho Trinta (que já havia dito: “o povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”), que encontrou mais um motivo para provar que seus desfiles tinham uma aparência exuberante, mas eram feitos com matéria-prima barata. O carnavalesco proporcionou à Sapucaí um momento histórico consagrado pelo público e premiado com o Estandarte de Ouro de melhor escola, mas que foi vice-campeã perdendo o título para a Imperatriz Leopoldinense.
Já a Mangueira levou para a Sapucaí um desfile que também foi histórico, em que valorizou a figura do negro na construção da nossa sociedade e questionou o discurso oficial de que a lei áurea foi o fim da escravidão. Com o enredo ‘Cem anos de liberdade: Realidade ou ilusão?” de Alvinho, Hélio Turco e Jurandir, o verso principal, ‘o negro samba, o negro joga capoeira, ele é o rei na verde e rosa da Mangueira’ foi cantado num coro emocionante pelos espectadores das arquibancadas e camarotes, fazendo muitos se emocionarem e caírem em lágrimas na Sapucaí.
Mas “Kizomba” foi um momento único na avenida. Por causa do temporal que arrasou a cidade no sábado seguinte ao carnaval, não houve Desfile das Campeãs alimentando a lenda em torno do enredo. Quem não viu, jamais veria novamente. No ambiente místico das escolas, a chuva torrencial foi interpretada como um sinal de que os orixás, citados no samba de Luiz Carlos da Vila, Rodolpho de Souza e Jonas Rodrigues, não queriam que a dose fosse repetida.
Martinho teve a ideia de celebrar a cultura afro-brasileira inspirado em sua forte ligação com Angola. O enredo, desenvolvido por Ilvamar Magalhães, Paulo César Cardoso e Milton Siqueira, exaltava o batuque, o jongo, o maracatu, e terminava com uma homenagem a ativistas da causa negra em todo o mundo, como Samora Machel, Nelson Mandela e Martin Luther King Jr. Em vez da Princesa Isabel, foi Zumbi dos Palmares que foi consagrado como herói da Abolição no verso: “Valeu, Zumbi, o grito forte dos Palmares…” e, assim, a Vila Isabel com esse samba lindíssimo, conquistou seu primeiro título no carnaval carioca.
É muito bom saber que temos na nossa história grandes enredos que deixam qualquer professor do ensino médio com orgulho do que é mostrado nos desfiles, então, no próximo carnaval, que tal assistir os foliões fantasiados com personagens e ícones da cultura representando a história, e prestar atenção nas letras lindas dos sambas de enredo que também tem sempre muita história para contar? Pra você que não gosta de carnaval, eu garanto que sua percepção sobre ele irá mudar!
*Cinthia Filomeno é artista visual, pós-graduada em Fundamentos da Cultura e das Artes pelo Instituto de Artes da UNESP, escritora e pesquisadora do samba, e autora do livro Samba: Uma Cultura Popular Brasileira
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