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A emissão de significados flui do indivíduo para o social numa rede epistêmica grandiosa e é exatamente essa capacidade de emitir significados que torna o sistema completamente autônomo.

(Imagem: @lcnsalvador)

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Relação de reconhecimento, de apreço, valor, importância, significância, significação, acepção, conceito, interpretação, definição, noção, sentido, conteúdo; tudo isso representa significado, o elemento social mais importante desse século que avança.

O significado se confunde com a percepção, a visão de mundo, a epistemologia que define cada um de nós. E considerando nossa jornada de colonizados…

O tempo histórico dos últimos duzentos anos nos convenceu de que vivemos em sociedades de opressão. Essa memória histórica valida quantas concepções que ensaiamos para entender o real ainda hoje.

Os sistemas opressores funcionaram de modo precário porque precisavam que os indivíduos realizassem fazeres sem a vontade necessária para fazê-lo. Isso é desgastante e muito improdutivo.

Revolta, rebelião, revolução foram as resultantes de um modo de dominação que precisou aprimorar seus mecanismos. A primeira reordenação nas relações de dominação foram as políticas de bem estar keynesianas, em que parte da população recebeu garantias trabalhistas e certa dose de poder pelos organismos burocráticos.

Tinha início um mecanismo que tornaria os sistemas de dominação bastante eficientes: o empoderamento e, no decorrer do século XX, mas fundamentalmente no século vigente, o consumismo.

Ao mesmo tempo se apresentava uma relativização dos privilégios de castas associado ao uso democrático do poder.
Esse processo teve seu início nos anos 1990 e foi alterando um dos movimentos mais sofisticados relativo ao papel que cada um nós tem na gestão e conservação dos sistemas: o significado.

Até então, o significado fazia parte de um conglomerado de emissão que ia moldando as ações coletivas e individuais. Mas com a transferência tanto do poder quando das decisões de endividamento para o centro do indivíduo, este passou também a emitir significados.

A emissão de significados flui do indivíduo para o social numa rede epistêmica grandiosa e é exatamente essa capacidade de emitir significados que torna o sistema completamente autônomo.

Então, como mágica, o sistema que era heteronômico, ou seja, que funcionava de fora para dentro do sujeito para sujeitá-lo, agora nascia dentro dele e projetava para fora uma infinidade de significados, alimentando as arquiteturas de poder sem nenhuma necessidade de oprimir. É uma forma de libertação fenomenológica.

Com as facilidades das redes, o trânsito de significados se expande como uma teia de aranha global. Se hoje os sistemas cancelassem todos os velhos emissores, o sistema expandiria infinitamente só com as extraordinárias vontades individuais.

Os atributos de significados geridos por sujeitos conquistaram todo um território novo de potência ainda pouco entrevisto.

Leia aqui todos os textos de Eduardo Bonzatto

Posso ensaiar alguns prognósticos tímidos e já apontados por filósofos atuais: a síndrome da eficiência, cuja forma mais acabada são os chamados millenials, gestores empresariais autônomos que prescindem de tutela; a gigantesca geometria dos youtubers que consolidam todos os infinitos temas em redes de ofertas e oferendas; a expansão infinita das tecnologias cuja ponta jamais será vista por ninguém; a liberdade absoluta na reprodução de psicanalistas de toda sorte de tendências a socorrer a sanidade dos emissores sem eira nem beira; o surgimento dos prossumidores, aqueles que tanto produzem como consomem o que produzem; a tendência a custo zero de bens e serviços; o caminho do fim do dinheiro como forma mediadora de relação capitalista, pois os significados são infinitamente mais ricos de possibilidades mercantilizáveis; o fim da heteronomia como forma de cognição massiva, pois o aprendizado se desloca da instituição para o fluido midiático; a fragmentação do pensamento único em formas fragmentárias de pensamento único; a consolidação do pensamento linear e dicotômico.

Não estamos nem um pouco distantes do tempo das marcas, dos signos desejantes, das ondas hemisféricas que moviam o mundo do capital com invenções inebriantes. Mas essas estratégias se tornaram obsoletas diante do avassalador movimento impresso pelas autonomias midiáticas oriundas dos aparelhos portáteis de emissão e recepção de significados.

Foi-se o tempo do status conferido pelos objetos. Agora status se refere à condição afetiva revelada nas redes de perfis. Quando muito. Já não é mais necessário exibir os distintivos de classes quando as classes se dissolveram nas imersões totalizantes do virtual.

Um corte de cabelo, um traje, uma música, um desenho em quadrinhos, tudo se consolida, pois os grupos se veem como autênticos e singulares, acreditam viver em sistemas fragmentários, em que cada um é único. Essa talvez seja a melhor ilusão que o universo virtual ofereceu. No entanto, cada um é todos e todos é um. E o pensamento único é o pensamento linear e dicotômico. Uma forma pensamento simplificada e eficiência, como carece um mundo superficial.

No cenário político não é difícil traçar as operações dicotômicas dado a simplicidade com que se nomeiam e nomeiam os opositores. Aqueles que se veem no limbo do espectro mais a direita identificam no líder a coragem de lutar contra a hipocrisia reinante. Já aquele que se vê mais a esquerda, se vê como bom, responsável pelos destinos da natureza, sabedor do sacrifício que é lutar pelos desvalidos e não ser reconhecido por isso.

Um dos exemplos mais contundentes desse fenômeno de autonomia é a criação que as redes fazem do perfil.

Segundo essa lógica, os algoritmos leem os gostos e tendências de um usuário e coalham sua plataforma dessas potencialidades. Mas o que não parece claro, é que o ubermercado em que o algoritmo vai buscar as alternativas foi preenchido pelos próprios usuários. Ou seja, não existe um lugar produtivo capaz de alimentar todos os perfis. Estes são fabricados por todos que emitem continuamente significados numa expansão quase infinita. O caráter randômico da busca se justifica, pois cada um é todos e as variações de perfis jamais extrapolam as oferendas.

É preciso explicar como o sujeito se torna um emissor permanente de significado para o mundo telemático e telecinético: se antes desse tempo a opressão exigia determinada resposta individual, seja de submissão ou revolta e isso implicava em atitudes contundentes que moldavam o sujeito sempre como um incômodo, como algo a se resolver no futuro, já que no imediato qualquer que fosse a postura assumida considerava um desdobramento natural, agora, como emissor da própria opressão, de si e de todos na valorização do prejulgamento adjudicador, o sujeito emite um sinal completo e acabado que envolve todo o real com seus infinitos elos individuais que nele estão aderidos. O significado que ele emite é de poder e numa sociedade de pequenos poderes, o seu poder é o maior, o mais exuberante. Nele se alivia toda a força colonial e passa a sentir como se tudo que sabe e faz seja fruto de seu esforço, sua criatividade, seu imperativo movimento para o coletivo.

Atingimos o território da psicocinese, telecinesia ou psi-kappa que descreve o suposto fenômeno ou capacidade de uma pessoa movimentar, manipular, abalar ou exercer força sobre um sistema físico sem interação física, apenas usando a mente. E a mente coletiva dos perfis é oriunda dos dispositivos portáteis que qualquer humano carrega no cinto.

Já não existe escapatória para essa função futurista: ser um emissor de significados cujo centro é o poder é, ao mesmo tempo, aliviador e responsabilizado pelos destinos da vontade e, portanto, da própria natureza da vida.

As redes passam a ser o palco onde se manifestam os significados. Uma foto, um texto, uma reclamação ou uma denúncia, uma exaltação, as louvações por um planeta digno, a defesa de fracos sociais, cada peça deslocada de um emissor se torna um discurso complexo de significados. Um cancelamento, um julgamento moral, os discursos de um conglomerado político que se espalha como um mantra, assim os significados ganham autoridade e zelo.

O equipamento capaz de gerir todos os significados é o telefone celular. Uma verdadeira estação de trabalho completa capaz de mover o mundo como uma alavanca. Portanto, essa estação móbile de emissão e recepção funciona como o centro irradiador da rede global.

O dispositivo móvel funciona como casa, trabalho, escola, família, amores, universidade, enciclopédia, cosmogonia, tudo está ali naquela caixa de pandora ubíqua. Mais que isso, é um dispositivo de panaceia. Mas é também o precioso anel de Gollum, o consumidor das energias, a força de thanatos. Mais do que um media, um meio, ele é a fonte, a usina cujo dínamo é a alma do usuário. Nele existem todos os canais e todas as artérias virtuais do futuro.

O telefone celular se transformou na célula que se agrega para formar um organismo planetário e além. Um organismo comum que reduz o planeta a uma comunidade de sentido. Com ele você se sentirá sempre em casa no mundo. E o mecanismo se tornou o universo e não há mais horizontes no seu interior expansivo. Não existem mais espaços vazios: entre a dor e o nada, só resta a dor. E nessa dor, o usuário encarnou no mecanismo e se fundiram. Por isso ele deve andar colado ao corpo, na mão, no bolso, na pele.

Aqui se cumpre um dos desígnios, segundo santo Agostinho, em que “deus é um círculo infinito cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não está em lugar nenhum”. Cada um desses centros é um móbile na vastidão tecida por deus.

O que facilitou muito foi a natureza intuitiva e virtuosa do mecanismo. Numa experiência singular, doaram alguns tablets para crianças de uma tribo remota africana. Em pouco tempo os pequenos estavam raqueando satélites.

O mecanismo permite viver em feixes, em fascio, daí sua natureza eminentemente fascista. Ele atrai as varas inquebrantáveis do coletivo e do comunal. É a realização comunista da técnica, o capital simbólico do comunismo e do capitalismo, em que o um é todos e todos são um. Sem o saber, seu monitor é um elo comum e enfeitiçado de uma comunidade política global.

Para isso os valores tiveram que ser depurados. Bondade, colaboração, fusão, consumação, direção, comunhão, são esses os valores do tempo das redes. O eu individual é agora apenas um rasgo no tecido do ego. E por aí vaza toda consideração, toda desideração, todo vigor social, sendo possível arregimentar seguidores no fragmento.

Como acreditar que cada ser humano passa a ser um emissor de significado? Bom, se o empoderamento é uma realidade e se é o poder que emite significados na história da expansão colonial, então a partir do momento que o poder transforma o mais insignificante humano em um tirano, ele também passa a emitir significado e com ele toda humanidade constrangida pelo mesmo modelo colonial que se autonomiza.

E aqui, abdicar dessa posição chave na construção do mundo contemporâneo, não é nada fácil. Primeiro porque ninguém quer abrir mão do poder, conquistado a tanto custo e pesar. Depois porque não existe alternativa fácil.
Então vamos pensar como seria abrir mão do poder.

O poder é um senhor exigente e quando ele ocupa a casa toda, se torna soberano. O sentimento é parecido com o do momento em que se cheira a primeira carreira de cocaína. E esse sentimento será procurado para sempre, tamanho o gozo. O sujeito servirá esse senhor até o fim dos tempos e da terra.

A força política para arrancar de dentro tal parasita é gigantesca.

Para deixar de servir ao poder é preciso servir ao humano. E servir ao humano é um valor incondicional. Servir ao humano é simples e fácil e pode ser encetado a qualquer momento, na nossa própria atividade diária, trocando o trabalho pelo serviço, já que o trabalho é uma das mais importantes fontes de gerenciamento de significados, com nossos papeis de colaboradores e de voluntários.

Servir ao humano é peculiar, porque chama nossa atenção sua humanidade antes de sua utilidade. Observamos atentamente seus gestos e seus olhos. Nos atentamos para a mão no momento antes de apertá-la e no plexo antes do abraço formal, que se torna, por isso, complexo.

Abdicar do poder implica em abdicar também dos signos do poder: cai por terra a necessidade de consumo e de doar integralmente o tempo pra isso em troca de dinheiro.

Com isso ganhamos tempo para amar e para conviver, pois a convivência é o melhor condutor para o amor e o amor impede o florescimento do poder como um avatar. Evitamos o desenvolvimento, que é o fim do envolvimento. Estamos livres e podemos agora considerar a teia de significados como uma grade da gigantesca prisão cartesiana da razão.

A tempo, se somos os emissores de significados das redes, a primeira coisa que teremos que providenciar, é nosso desligamento de toda a sorte de dispositivo virtual que representa a mente coletiva desse tempo. Devemos plantar nosso próprio alimento, já que quem não produz seu alimento será sempre vulnerável aos dissabores do sequestro. Devemos fazer música todos os dias, pois a música abre a grande porta cósmica por onde entra e sai o sentimento.

E por um instante o dinheiro perde seu significado e se torna tão abundante quanto o ar.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

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