Corrupção

Maior crime de Crivella foi ter terceirizado o Rio para Deus

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Durante o último debate à Prefeitura do Rio, Crivella repetia insistentemente que seu adversário, Eduardo Paes, seria preso por corrupção. Menos de um mês depois, foi o prefeito que acabou em cana. MP identificou movimentação atípica de R$ 6 bilhões em sua igreja

Crivella e Bolsonaro dançando

Leonardo Sakamoto

Durante o último debate à Prefeitura do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), repetia insistentemente que seu adversário, Eduardo Paes (DEM), seria preso por corrupção. Menos de um mês depois, foi o prefeito e bispo licenciado da Igreja Universal que acabou em cana na manhã desta terça (22).

“Eduardo Paes vai ser preso. Eu digo isso com o coração partido, porque ele cometeu os mesmos erros que Cabral e Pezão. Ele vai ser preso”, afirmou em um dos vários momentos do debate promovido pela Rede Globo.

De acordo com denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro, ele é “vértice” e “idealizador” de uma organização criminosa conhecida como “QG da Propina” e “orquestrava” um esquema para “aliciar empresários para participação nos mais variados esquemas de corrupção” usando seu cargo para tanto.

Não há notícias de que os jagunços contratados pelo prefeito, organizados no grupo de WhatsApp chamado “Guardiões do Crivella” tentaram atrapalhar o trabalho da Polícia Civil e do MP-RJ, tal como impediam que a imprensa mostrasse o caos na Saúde carioca.

Crivella escapou da abertura de um processo de impeachment por conta da atuação desses “Guardiões” por 25 a 23 na Câmara Municipal. Afinal de contas, o que é um prefeito com relação com jagunços se temos a família do presidente com relação com milicianos?

Em junho de 2018, ele também se safou de investigação sobre ilegalidades no processo de aditamento de contratos de publicidade no mobiliário urbano. O placar foi menos apertado: 35 a 13.

A dificuldade em separar o público do privado, portanto, não é recente. No começo de 2017, Crivella resolveu praticar caminhada nos corredores do Supremo Tribunal Federal para tentar convencer os ministros de que não havia mal algum em nomear seu próprio filho Marcelo Hodge Crivella para a Casa Civil de sua administração.”O Marcelo não é suscetível, nem melindroso. Sabe que a vida pública não é concurso de beleza”, disse o pai ao mostrar que, apesar do nepotismo, ele é um bom menino. O ministro Marco Aurélio Mello havia suspendido a nomeação de Marcelo Hodge para o cargo.

O bispo licenciado também foi acusado, em julho de 2018, de dar vantagens a lideranças religiosas. Prometeu ajuda, por exemplo, para encaminhar fieis a cirurgias (ou seja, em tese, furar a fila) e agilizar a isenção da cobrança de IPTU de templos. “Nós temos que aproveitar que Deus nos deu a oportunidade de estar na Prefeitura para esses processos andarem”, disse o prefeito.

O flagra não foi a única vez em que ele privilegiou sua base religiosa em detrimento ao restante da população, tanto que o Ministério Público entrou com uma ação de improbidade, citando atos a serem investigados. Como eventos de igrejas em escolas públicas e um censo religioso na Guarda Civil.

Crivella também poderia ter sido alvo de processo de impeachment ou mesmo ido ao em xilindró ao se mostrar, repetidas vezes, incapaz de zelar pela vida do carioca pobre. Mais ainda, desinteressado em fazer isso, como se tivesse transferido essa responsabilidade para Deus.

Uma pesquisa Datafolha, de dezembro do ano passado, portanto antes do coronavírus matar milhares de pessoas na cidade, mostrou que 68% dos entrevistados já apontavam a saúde como o pior problema da capital. Para ter uma ideia do que representa isso, só muito depois apareceu a violência, com 12%.

Em março, após uma enchente castigar Realengo, arrastando carros, derrubando casas, cobrindo de lama os pertences de moradores, ele ainda teve a coragem de visitar o bairro e dizer que a responsabilidade era das mesmas pessoas que tinham perdido tudo. “A culpa é de grande parte da população, que joga lixo nos rios frequentemente”, disse.

Não foi um lapso, pois repetiu a ideia na entrevista dada à imprensa. Revoltados, moradores presentes hostilizaram-no, que acabou atingido por lama. A cara de pau foi tamanha que ele ainda disse, depois, que o impacto das chuvas seria mitigado se as margens dos rios não fossem ocupadas por pessoas que “gostam de morar ali perto porque gastam menos tubo para colocar cocô e xixi e ficar livre daquilo”.

Em junho de 2017, sua administração não alertou sobre a gravidade das chuvas que caíam sobre o Rio para evitar que a população entrasse em pânico. Sim, foi isso mesmo que você leu.

Em 2018, entre os dias 14 e 15 de fevereiro, um temporal atingiu a cidade, deixando mortos por deslizamentos de terra, ruas alagadas, casas destruídas, árvores caídas, vias interditadas, caos no transporte público e problemas no fornecimento de energia elétrica. Enquanto residências pobres das zonas Norte e Oeste afundavam na lama, o prefeito viajava a trabalho pela Europa. Para não dizer que não fez nada, mandou solidariedade à distância.

No dia 8 de abril de 2019, mortos por soterramento, afogamento e eletrocussão voltaram a polvilhar a cidade. “Falhamos” e “atrasamos”, disse ele sobre a falta de limpeza das galerias para escoamento de água diante das fortes chuvas. “São imprevistos”, afirmou diante de um novo desabamento da ciclovia Tim Maia. Imprevisto é esquecer o guarda-chuva em casa em dia de temporal. Esquecer a responsabilidade no gabinete tem outro nome.

Crivella termina de forma melancólica seu mandato. Poderia ter sido um governante, ainda que medíocre, nos últimos quatro anos. Preferiu fazer proselitismo religioso (dando preferência a fiéis de igrejas no acesso a serviços públicos em detrimento aos demais cidadãos), castrar direitos (ou você esqueceu que ele arranjou tempo, mesmo com uma cidade mergulhada em problema, para mandar recolher gibis por causa de uma ilustração de um beijo gay na Bienal do Livro?) e censurar a imprensa.

Ao ser preso nesta terça, sem perder a empáfia, Crivella ainda teve tempo de afirmar aos jornalistas: “Fui o prefeito que mais combateu a corrupção na Prefeitura do Rio de Janeiro”.

Isso ainda cola? Claro, ele foi ao segundo turno.