Ignorado, morador de rua morre agonizando em padaria de Ipanema. Em meio a uma crise de tosse, o homem clamou por ajuda e implorou para que alguém ligasse para o SAMU, mas a súplica não chegou aos ouvidos de clientes e funcionários. Estabelecimento permaneceu funcionando com o cadáver no local
Um morador de rua morreu em uma padaria de Ipanema, no Rio de Janeiro (RJ), e teve seu corpo coberto com um plástico preto por cerca de duas horas até que fosse recolhido. O mais deplorável é que o estabelecimento continuou em pleno funcionamento mesmo com o cadáver no local.
A morte súbita do homem ocorreu por volta das 8h da última sexta-feira (27), quando ele apareceu para pedir um pouco de comida na ‘Confeitaria e Lanchonete Ipanema’.
“Morador de rua há quatro anos, Carlos Eduardo Pires de Magalhães, de 40, tornou-se invisível aos olhos da sociedade. E assim morreu. Nem mesmo a repentina morte, decorrente de uma tuberculose em estágio avançado, fez com que ele fosse notado. Sem a assistência que precisava, caiu morto ali mesmo, no chão da padaria. Mas o café da manhã não parou de ser servido. A poucos metros do plástico preto que cobria o corpo, cercado por cadeiras, fregueses continuaram a comer e a beber indiferentes por duas horas, até Carlos Eduardo ser recolhido pelo rabecão da Defesa Civil”, escreveu Joaquim Ferreira dos Santos, em sua coluna no jornal O Globo.
Além de cobrir o corpo com o plástico, a padaria ainda montou um cercadinho de cadeiras para mantê-lo afastado dos clientes. Um deles teria pedido que o ambiente fosse fechado, argumentando ser uma questão “sanitária e humanitária”. O responsável pela loja, contudo, não atendeu a sua demanda.
“Ninguém teve humanidade quando ele estava jogado na rua. Agora que morreu jogado na minha padaria querem que eu tenha humanidade”, justificou o dono do estabelecimento.
Um jornaleiro que testemunhou parte da tragédia desabafou: “Cheguei exatamente na hora em que ele morreu. Estava com a camisa ensanguentada, de tanto tossir e cuspir sangue. Mas, como sempre acontece, as pessoas não ouvem os moradores de rua e só oferecem a eles o desprezo. Ele não conseguiu ajuda”.
“Ele vivia brincando com a gente, rindo. Era inteligente, do bem. Falava super bem, era culto. Uma moradora da região pagava duas refeições por dia para ele. Quando o tratavam mal ou o ignoravam, ele fazia um discurso de respeito ao próximo”, afirmou Rita de Cássia Diniz, que trabalha como guardadora de carros na região há 26 anos.
O caso de Carlos Eduardo é um sinal de colapso social, na avaliação de Michel Misse, professor do programa de pós-graduação em sociologia e antropologia da UFRJ: “Tem aparecido com muita frequência no Brasil o desrespeito à vida, mas agora vemos também o desrespeito à morte. A sociedade moderna é toda fundada no valor da vida e, portanto, no respeito à morte das pessoas. Esse é um traço fundamental do individualismo igualitário moderno. Uma sociedade que manifesta esse desinteresse pela vida, e também pela morte, é uma sociedade em que os valores estão entrando em colapso”.
No último dia 19 de agosto, um trabalhador que morreu em uma unidade do Carrefour do Recife (PE) teve o corpo coberto por guarda-sóis e o supermercado continuou funcionando como se nada estivesse acontecendo (relembre aqui).