Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Aqui busco compreender o porquê da castração feminina implicar historicamente na castração masculina.
O patriarcado é um fenômeno social muito novo na história das sociedades ocidentais. É em tudo fruto das sociedades burguesas, em que a privatização do outro foi o princípio fundador do aparecimento das hierarquias.
O suporte das ciências e da nascente psicologia para a redução da mulher a um lugar de subalternidade em relação ao homem aconteceu de modo a reconhecer no gozo feminino um sinal de histeria que carecia de ser suprimido.
Uma vez diagnosticada o prazer com o gozo, o encaminhamento para instituições de contenção era uma forma de reduzir a mulher.
A histeria, nos discursos médicos e psiquiátricos brasileiros da segunda metade do século XIX, foi desenhada no feminino. As histéricas eram percebidas como mulheres que não se adaptavam ao papel que lhes era reservado na família e na sociedade.
A influência vinha das metrópoles e era denunciada em obras como O Vermelho e o Negro, de Stendhal, A Mulher de Trinta Anos, de Balzac; Madame Bovary, de Flaubert; e Thérèse Raquin, de Émile Zola, enfatizando os mecanismos de controle e as formas de repressão que recaíam sobre o corpo feminino.
De privação de luz, de encarceramento, de eletrochoques, de hipnoses, de medicamentos diversos até que todo impulso do clitóris, único órgão humano que existe exclusivamente para o prazer, fosse erradicado, de tal sorte que dali em diante essa herança fosse transferida de mães para filhas até o presente.
Claro que além dos discursos médicos, as prédicas religiosas, as orientações para as famílias também compunham esse ideário da castração.
Esse foi o princípio da expansão de todo sistema capitalista no bojo da colonização eurocêntrica. É o século XIX o berço do patriarcado.
A partir daí, o papel da mulher seria exclusivamente reprodutivo. Difícil saber agora se isso se deu por temor ou pragmatismo, mas o fato é que o gozo feminino poderia ter outro princípio. Poderia indicar reciprocidade na relação
amorosa.
É preciso explicitar melhor isso. O gênero de fato, para a sexualidade, não existe. Isso porque a relação amorosa consiste na satisfação que podemos devotar ao outro, ao ser amado. O gozo do ser amado engrandece o nosso próprio gozo.
Se isso for verdadeiro, e pra sabermos se o é, basta que devotemos ao parceiro amoroso o melhor gozo e para isso precisamos conhecê-lo profunda e intimamente, saber da complexidade dos corpos, os redutos do prazer que o
enalteça e só então investigar e investir para que esses redutos se tornem templos de adoração e devoção ao mesmo tempo.
Mas se o outro, o outro amoroso, não emite os sinais do prazer do gozo, então ele para nós não existe de fato, é apenas um instrumento do gozo nosso e o gozo masculino é extremamente pobre. Incapaz de doar, minguamos em nosso próprio gozo. E vamos adiante como sacos esvaziados de substancia, rumo a uma existência solitária e não solidária.
Esse princípio, tão necessário aos impulsos egóicos do capitalismo, define nossa própria existência.
Então nos unimos ao próximo como proprietários, coisificando o amor embalados no apego e na possessividade. Exigimos fidelidade e negamos a ele e a nós mesmos a plenitude da vida. E a plenitude da vida é a liberdade e a
complexidade. Liberdade é escolha entre modos de vida diversos.
Complexidade e a união plena com o outro, incondicional e repleta de doação.
Mas não é impossível reverter isso. Precisamos nos transformar em doadores amorosos, procurando no ser amado seu lugar de prazer e ali depositando toda nossa energia amorosa. Como doadores do amor, realizamos o princípio do amor e da vida, acrescentando ao doar uma dose ainda maior de potencia, e realizamos o PERDOAR.
PER: Esse sufixo tem um sentido muito especial aqui. Per é a saturação e a exorbitância de um conjunto de sentido. Clorito, hipoclorito, percloreto, permacultura traduz a saturação a mais do cloreto ou da cultura, para além
dele ou dela.
Então o sentido que o per incorpora aos termos vai além do que normalmente esses termos propõem.
Seguir, perseguir, correr, percorrer, doar, perdoar são os sentidos do per. O egoísta recebe, o amoroso doa, mas o amor, perdoa, doa além do imaginado e do necessário.
A palavra perdão sempre foi problemática pra mim. Ela se apresentava como gerida de um lugar cuja importância me ofendia, ou seja, quem perdoa é porque tem o poder de perdoar e o poder é em si um degenerador do amor.
Mas esse perdoar como aquilo que vai além do doar, azeitado pela melhor energia amorosa é muito grandioso e ao mesmo tempo muito singelo, pois não envolve uma ação mediadora que existe para exaltar o doador.
É tão somente a decisão amorosa de envolver o ser amado numa ciranda de cuidados e presenças. É doar mais do que ele espera e com isso ele também entende da natureza do doar. Estará pronto a perdoar outros.
O amor só realiza COM O OUTRO, na complexidade, nesse servir ao outro e se isso ocorrer, também o sistema cai diante do amor e se esfarela como poeira.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
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