Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
“Chegou a hora de tirar das mãos do médico a seringa, como se tirou a pena das dos escritores durante a Reforma. A maioria das doenças que temos hoje em dia podem ser diagnosticadas e tratadas por pessoas comuns. Para a maioria essa declaração é muito difícil de ser aceita, porque a complexidade do ritual médico lhes ocultou a simplicidade de seus próprios instrumentos básicos...” – Ivan Illich
Sirvo numa universidade que se arroga um timbre contemporâneo quanto às metodologias e ao teor dos componentes pretensamente inovadores no empobrecido e anêmico universo acadêmico atual.
Pretensamente inspirada na experiência de Bolonha, nossa universidade assume uma arrogância ímpar no jogo dos discursos acadêmicos.
Em 1999, a universidade de Bolonha faz história por ser palco da Declaração de Bolonha, marcando uma mudança em relação às políticas ligadas ao ensino superior dos países envolvidos e estabeleceu em comum um Espaço Europeu de Ensino Superior a partir do comprometimento dos países signatários em promover reformas dos seus sistemas de ensino. A declaração reconhece a importância da educação para o desenvolvimento sustentável de sociedades tolerantes e democráticas. Embora a Declaração de Bolonha não seja um tratado, os governos dos países signatários comprometeram-se a reorganizar os sistemas de ensino superior dos seus países de acordo com os princípios dela constantes.
A declaração visa a tomada de ações conjuntas para com o ensino superior dos países pertencentes à União Europeia, com o objetivo principal de elevar a competitividade internacional do sistema europeu do ensino superior. Para assegurar que o sistema europeu do ensino superior consiga adquirir um grau de atração mundial semelhante ao das suas extraordinárias tradições cultural e científica, delinearam-se os seguintes objetivos a serem atingidos na primeira década do terceiro milénio:
Promover entre os cidadãos europeus a empregabilidade e a competitividade internacional do sistema europeu do Ensino Superior.
Estabelecer um sistema de créditos transferíveis e acumuláveis (ECTS), comum aos países europeus, para promover a mobilidade mais alargada dos estudantes. Os créditos podem também ser adquiridos em contextos de ensino não superior, incluindo a aprendizagem ao longo da vida, desde que sejam reconhecidos pelos estabelecimentos de ensino superior de acolhimento;
Adotar um sistema baseado em três ciclos de estudos:
— Primeiro ciclo, com uma duração de seis a oito semestres;
— Segundo ciclo, com a duração de um ano e meio a dois, podendo, excepcionalmente, ter a duração de dois semestres;
— Terceiro ciclo, Implementar o suplemento ao diploma;
— Promover a mobilidade dos estudantes (no acesso às oportunidades de estudo e formação, bem como a serviços correlatos), professores, investigadores e pessoal administrativo (no reconhecimento e na valorização dos períodos passados num contexto europeu de investigação, de ensino e de formação, sem prejuízo dos seus direitos estatutários);
— Promover a cooperação europeia na avaliação da qualidade, com vista a desenvolver critérios e metodologias comparáveis;
— Promover as dimensões europeias do ensino superior, em particular:
Desenvolvimento curricular;
Cooperação interinstitucional;
Mobilidade de estudantes, docentes e investigadores;
Programas integrados de estudo, de formação e de investigação.
No caso da UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia), as correspondências intencionais foram todas cumpridas, com uma alteração no período semestral para o quadrimestral, que aumenta significativamente o aproveitamento anual dedicado aos estudos.
Aqui não vou me ater aos outros cursos ofertados pela instituição, apenas ao de medicina, considerando que como somos uma instituição multicampi, os cursos que impulsionam cada campus já denunciam as velhas hostes que sempre foram a atração da classe média: engenharias, direito e medicina.
Não entrarei no mérito das dificuldades de se encontrar professores na área médica, tão tradicionalmente autorreferente de doutores sem o serem, daí a redundância em buscar um título legítimo baseado em pesquisa. E esse tradicionalismo pesa ainda mais quando o projeto universitário anseia por inovações.
O resultado foi bastante previsível. A metodologia ativa escolhida foi o PBL.
A Aprendizagem Baseada em Problemas (PBL, que vem do inglês Problem Based Learning) é uma metodologia ativa de ensino que vem ganhando força em diversos cursos superiores no Brasil e no mundo, em especial na Medicina.
Esse método foi criado em 1969 na Universidade McMaster, no Canadá e no mesmo ano foi implementada também na Universidade Maastricht, na Holanda. No Brasil, foi aplicado pela primeira vez nos anos 90, na Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA) e na Universidade Estadual de Londrina (UEL).
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Para que você possa compreender o método vou resumir aqui: os estudantes são divididos em pequenos grupos, geralmente de 10 pessoas e o tutor apresenta o problema que será analisado pelos estudantes gerando diversas hipóteses que caberá aos estudantes investigar durante a semana; então cada estudante fará sua própria pesquisa que culminará no encontro presencial em que ocorrem as discussões e a apresentação para o tutor.
Nessa metodologia ativa há um clima de exigência bastante vigoroso em que cooperação (uma cooperação aos moldes neoliberais, em que não colaborar implica em exílio e desonra) e competição se distribuem no grupo. O grau de estresse é sempre elevado, uma vez que a dinâmica é dada pelos estudantes, enquanto o tutor sempre é aquele que avalia continuamente o desempenho.
Mas para o que nos interessa aqui, o problema eleito para a investigação do grupo é sempre uma ideia coerente e seja qual for a solução haverá inequivocamente uma resposta medicamentosa.
Nesse sentido, é uma universidade absolutamente tradicional na área médica. A solução será uma dependência contínua aos apelos de fármacos como intervenção aos desvios da saúde.
Importante notar que nossa universidade acolheu o princípio de uma medicina coletiva e, portanto, pública, exaltando o Sistema Único de Saúde como modelo de ponta na oferta estatal de saúde.
Mas o modelo resumido em diagnóstico-medicamento-dependência heteronômica do paciente superlotou o sistema com a maioria dos casos que poderiam ser tratados fora do sistema. Existem exemplos disso.
Essa é uma notícia incomum no universo da medicina https://razoesparaacreditar.com/medico-receita-plantas-medicinais-para-curar-doencas-em-florianopolis/)
“Médico receita plantas medicinais para curar doenças em Florianópolis
O doutor Murilo Leandro Marcos, 30 anos, médico da família no Centro de Saúde da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, não é um médico “comum”, imaginem que os remédios que ele receita para os pacientes não são fabricados em laboratório, e tão pouco vendidos em farmácia.
Ele receita, por exemplo, alecrim para curar a depressão, para desobstruir o nariz ele indica hortelã, para melhorar a pele o indicado é a babosa e para relaxar umas folhas de lavanda, dentre outros “remédios” que Dr. Murilo receita.
Na recepção, os pacientes têm a disposição um vaso cheio de ervas, folhas e frutas que tem o poder de curar e prevenir doenças. Grande parte é plantado e colhido no jardim da unidade, um trabalho conjunto realizado entre o próprio médico, os funcionários do posto e a comunidade local, que já existia há pouco mais de 3 anos, mas voltou a ganhar força ano passado. Na plantação é possível muitas verduras, várias plantas e flores.
No consultório tem paredes lilás, plantinhas, mel, mandala e uma grande disposição de ouvir cada caso dos pacientes com muita atenção, que vão desde as dores do corpo às “dores da alma”.
E o inusitado dessa notícia está justamente no distanciamento da formação médica cuja alegoria está a serviço da indústria farmacêutica responsável pela hipertrofia da medicalização atual.
Aqui a discussão carece de ser aprofundada um tanto para descortinar outros universos além do monopólio acadêmico mercantil.
Todo ser que vive possui dois dispositivos celulares que pela sua natureza defensiva são extraordinários: autopoiese e homeostase. O primeiro é responsável por renovar cada órgão de nosso corpo e o segundo por reequilibrar cada celular com a força osmótica das demais. Trocando em miúdos, nosso fígado se refaz inteiro a cada período de tempo, assim como nossa pele, nosso pâncreas e assim por diante. O segundo permite que o organismo se autocure quando ameaçado por algum desequilíbrio celular.
Esse sistema está em toda forma de vida e é assim que plantas e animais se curam. Exceto quando chegamos próximos da entropia que nos levará à morte, como ocorre com todas as formas de vida.
Mas esses dispositivos que são presentes de vida são negligenciados durante toda a vida, já que recorremos aos médicos quando precisamos de socorro, e isso já se tornou tão habitual que investir contra essa tradição mais parece com uma heresia.
Ivan Illich (1926-2002) foi um dos pensadores críticos das diversas manifestações criadas pelas sociedades industriais mais importantes do século XX. Suas análises das instituições são não só originais, mas possibilitam uma perspectiva diversa e consistente de vida além dos entraves institucionais.
Obras como Sociedade sem escolas, Energia e Equidade, A convivencialidade e Libertar o Futuro exprimem a diversidade de seu pensamento e interesses. Aqui vou recorrer ao livro A expropriação da saúde, Nêmesis da Mecidina, obra de 1975 que abre uma das mais importantes fronteiras contra as fortificações médicas.
O autor utiliza o conceito de Iatrogênese, que é a doença inventada pelo médico e analisa três iatrogêneses: a clínica, a social e a estrutural. As iatrogêneses resultam em danos à saúde pela perda de capacidade autônoma do indivíduo diante das enfermidades, das dores, do envelhecimento e da morte. Alguns anos depois ele apresentou outra iatrogênese, a do corpo.
Para melhor entendimento da obra de Ivan Illich, faz-se necessária a revisão dos seus pontos principais, incluindo os conceitos de iatrogênese – iatros (médico) e genesis (origem). Uma doença iatrogênica é aquela que não existia antes do tratamento médico aplicado, ou seja, é provocada pela ação da medicina. O autor divide a iatrogênese em categorias: 1. Clínica, causada pelos cuidados de saúde (o ato médico e sua técnica); 2. Social, que retrata a medicalização da vida e seu efeito social; 3. Cultural/Estrutural, que abrange o uso ilimitado da medicina e a perda do potencial cultural das pessoas para lidar de forma autônoma com a doença, a dor e a morte. Em conjunto, os três níveis de iatrogênese comprometem a autonomia dos indivíduos, que se tornam dependentes do saber de especialistas para o cuidado de sua saúde.
Anos depois ele incluiu uma quarta iatrogênese voltada para o corpo, como a obcessão pela saúde, por meio de atividades físicas, dietas, cirurgias que, paradoxalmente, se tornam o maior patógeno para a saúde. (https://www.scielosp.org/article/sdeb/2017.v41n115/1187-1198/pt/)
Em linhas gerais, a iatrogênese clínica fez parte da esclerose geral a que o mundo autônomo ancorado na tradição enfrentou. Era preciso eliminar quaisquer vestígios de modos de vida que prescindiam de regras externas pra funcionar. Para isso seria preciso erradicar certa dose de intimidade com o mundo místico divinatório que alimentava o cotidiano das tribos.
Desse modo, a figura central do discurso médico passou a funcionar como um prescritor, apoiado por massivas investidas contra as populações urbanas que visavam corrigir as morbidades que em outros tempos dispensavam intervenções institucionais, como foi o caso da tuberculose, da cólera, da disenteria e do tifo que foram corrigidas pelas próprias pessoas atacadas e por suas comunidades.
Segundo Illich, tal desvio também fez parte da forma com que a instituição traduzia a história das doenças, de tal sorte que as soluções independentes dela eram erradicadas e em seu lugar assumia o papel saneador do fazer médico.
Fatores como nutrição, saneamento, a qualidade da água, habitação, formas de trabalho, a forma como se vive, como se lida com o tempo, passam a ser muito mais importantes do que o papel da medicina normativa na vida das pessoas. E ao contrário de nossa crença, as comunidades distantes da civilização contemplam esses fatores de modo absolutamente natural em seu dia-a-dia.
Uma vez que se obriga essas populações a se submeterem aos critérios médicos, por exemplo com as vacinações massivas, começa a criar um referencial em que o médico é aquele que detém um conhecimento verdade que os pacientes não compartilham.
O grau de imposição e confiança necessários a que alguém permita que um médico-sujeito-sagrado enfie uma agulha na carne do filho recém-nascido é de uma grandiosidade que normalmente não avaliamos.
Então podemos sentir todo o peso da iatrogênese clínica, em que se procura um médico diante de um problema da saúde e este, sem alternativa, investe em medicação para corrigir o desvio.
A visão de mundo do médico está interligada em diagnóstico e medicação. A do paciente vai paulatinamente se convertendo assim também. Todas as outras alternativas desaparecem naturalmente. Chás, benzimentos, jeguns, etc. podem significar outros caminhos para a saúde. Questões culturais, experiência coletivas, tradição, tudo importa para que outros indicadores funcionem no momento do sofrimento.
A invenção da doença acontece quando uma alternativa poderia dirimir completamente os sintomas, mas o medicamento o prolonga, criando um hábito que se estende cronicamente no organismo. Exemplos singelos são a hipertensão e o diabetes, em que a aplicação diária de medicamentos conserva a doença ad eternum. Mas estes estão muito longe de ser exceção.
Outro fator importante é a ocorrência de bactérias cada vez mais resistentes justamente pela aplicação de medicamentos diversos.
Considerando igualmente outros vetores, tais como facilidade de transportes, urbanização crescente, redes de energia, ao aumento vertiginoso dos interventores psíquicos cuja formação é duvidosa, que associados a um descontrolado alastramento medicamentoso que a tudo serve como uma panaceia faz com que o caminho médico opere num descontrole muito mais nocivo à saúde do que à sua regeneração.
“Illich fez a distinção entre o médico artesão e o médico técnico, no que se refere aos danos infligidos pelos médicos. O médico artesão era aquele que exercia suas habilidades em indivíduos que conhecia pessoalmente, e suas falhas eram vistas como abuso de confiança e falta de moral. Já o médico técnico, atual, aplica regras científicas a categorias de pacientes, e suas falhas são racionalizadas como ocasionais, de equipamentos ou de seus operadores, adquirindo um novo status, o anônimo. As responsabilidades foram transferidas do campo ético para o problema técnico. Logo, ‘a negligência se transforma em erro humano aleatório, a insensibilidade em desinteresse científico, e a incompetência em falta de equipamento’” (idem).
A iatrogênese social complementa a primeira e a expande. Questões advindas das ações técnicas dos agentes institucionais passam a retirar do âmbito do indivíduo o domínio da salubridade em todos os meios de sua existência (trabalho, lazer, alimentação, repouso, política, etc.).
Assim também quem dita as normas morais de conduta, as prescrições e proscrições de comportamentos são emitidas pelos discursos médicos que vão se tornando onipresentes na vida mundana.
Outro fator preocupante é a própria atuação da medicalização em níveis que até então eram inimagináveis, tornando a indústria do medicamento a primeira em renda global, igualando apenas com a de produção de armamentos.
Além dessa forma absolutamente heteronômica com que a instituição médica trata a população, surge uma nova vertente administrativa, agora já ao nível do indivíduo: a prevenção. E toda uma gigantesca rede de serviços e medicamentos que atuam na prevenção de doenças.
A terceira iatrogênese, estrutural, complementa a ubiquidade dos sistemas médicos.
“Para Ivan Illich, a medicalização da vida é apenas um aspecto da dominação que o desenvolvimento industrial exerce sobre a sociedade. Durante um século, acreditou-se que o nível de vida e a extensão do bem-estar dependiam do acesso aos produtos industriais. As pessoas são condicionadas a obter as coisas e não a fazê-las: o aprender é programado; o habitar, urbanizado; os deslocamentos, motorizados; e as comunicações, canalizadas. Todos querem ser educados, transportados, cuidados ou guiados, o que difere de aprenderem, deslocarem-se, curarem e encontrarem seu próprio caminho. Curar suas próprias feridas e mazelas não é mais compreendido como atividade do doente, e se torna cada vez mais um ato daquele que se encarrega do paciente. Quando este outro surge e cobra seus serviços, a cura passa de dom a mercadoria. A medicalização da vida aparece, portanto como parte integrante de sua institucionalização industrial” (Idem).
Toda possibilidade de constituir uma autonomia do indivíduo é erradicada e cada passo da vida é escrutinado, avaliado, seguido, normatizado para seu próprio benefício.
O resultado disso é justamente a última iatrogênese, a do corpo, quando o sujeito já internalizou completamente todos os discursos médicos e devota parte do seu dia, todos os dias, aos benefícios da saúde.
O autor considera esse o ato supremo da heteronomia médica.
“Há doze anos, escrevi a Nêmesis da medicina. O livro começava com a afirmação: a medicina institucionalizada transformou-se numa grande ameaça à saúde. Ouvindo isto hoje, eu responderia: e daí? O maior agente patógeno de hoje, acho eu, é a busca de um corpo sadio”.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e escritor
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