O mundo virtual também se mostrou um mundo sem lei. A ausência de um código ético permitiu a propagação de informações que ferem direitos humanos, manipulam processos eleitorais, mercados e a vida pessoal de qualquer um que esteja conectado.
Anderson Pires*
Quando as mídias sociais surgiram, parecia que teríamos um amplo processo de democratização da informação. Contudo, o que inicialmente prometia ser um espaço de relacionamento e de compartilhamento de conteúdo em rede, assumiu formas bem distintas daquilo que se imagina para um ambiente democrático e horizontal.
Logo se espalhou o conceito de que todos passaram as ser mídias, produtores de conteúdo. Essa ideia serviu para que veículos tradicionais de comunicação perdessem espaço, de modo que a concentração de verbas publicitárias em meios como TV, rádio e jornal sofreu um abalo significativo.
Milhares de veículos tiveram redução na audiência e impacto no faturamento, sem contar os que fecharam as portas. Para muitos, isso seria apenas decorrência do processo de digitalização. No primeiro momento, não foi possível identificar qual o principal negócio que estaria por trás das redes que se formavam, muito menos o modelo de monetização que seria implementado.
Na sequência, o que se viu foi a construção de uma teia gigantesca de relacionamentos, que derivou para troca de conteúdos diversos, avançando para muitos produtores de conteúdo próprio, além de quase todos os serviços de comunicação, como também empresas dos mais diversos setores.
A grande teia estava formada e organizações como o Facebook (leia-se também Instagram e WhatsApp) se transformaram em grandes concentradores de vidas, conteúdo e informação de toda sorte. O cenário que antes parecia incerto ficou claro e o modelo de negócio evidente. A utopia democrática ruiu com o maior modelo de concentração de informação já visto em toda história. Com um detalhe ainda mais perigoso, não só as informações públicas estavam concentradas, mas, principalmente, as pessoais.
A posse de toda sorte de dados possibilitou segmentar, direcionar conteúdo, estimular consumo e todo tipo de conexão que possa representar alguma transação comercial. Isso tudo nas mãos de empresas digitais, com destaque para Facebook e Google, passaram não só a deter o controle da informação, como estabelecer o que lhes interessa que seja comunicado.
O mundo virtual também se mostrou um mundo sem lei. A ausência de um código ético permitiu a propagação de informações que ferem direitos humanos, manipulam processos eleitorais, mercados e a vida pessoal de qualquer um que esteja conectado. O que em tese seria um ambiente de auto-regulamentação, onde os “maus” seriam excluídos em decorrência da discordância do meio, mostrou-se falho. Uma verdadeira enxurrada de informações falsas, preconceituosas e a propagação de violência passou a ser parte significativa.
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E onde estava o Facebook nisso tudo? Inerte, mas não indiferente. Além de contribuir para alimentar essas práticas, também são aplicados filtros às ideias que conforme sua conveniência empresarial devem parecer majoritárias: assim, aumentam a sua influência e os consequentes ganhos.
Esse Frankstein digital ainda conseguiu criar uma nova versão de algo que deveria ser abominado por todos, o trabalho escravo. Parece absurdo, mas vamos tentar traduzir. O que caracteriza o trabalho escravo é a existência de uma atividade forçada sem remuneração. O modelo que o Facebook arquitetou consegue estabelecer essa condição de trabalho forçado (para o Facebook), sem que os trabalhadores (ou empresas) que geram os conteúdos, recebam pelo que produzem para o beneficiado (o próprio Facebook).
Procede que analisemos a nossa tese. Na grande rede em que o Facebook se transformou, a parte destinada aos relacionamentos só teve ganho real de valor pelo conteúdo gerado. Isso dentro da perspectiva de um meio democrático, no qual a produção de conteúdo de forma colaborativa garante o crescimento da rede e a transação comercial dos mais diversos produtos. Porém, nessa história toda, só quem recebe de forma direta é o próprio Facebook. As exceções seriam os chamados digital influencers que, também, pela concentração de público transformam o mesmo em produto para ser negociado, com um detalhe, o Facebook atualiza sempre seu algoritmo, de modo que cada vez menos pessoas recebam no seu feed o conteúdo gerado gratuitamente.
Essa história toda serve para ressaltar o fato que aconteceu na Austrália. Está em processo de aprovação uma lei que obrigaria o facebook a pagar por conteúdos gerados pelos veículos de comunicação que que são reproduzidos na sua megarede. O Facebook alega que os veículos são na verdade beneficiados com as referências feitas, visto que teriam retorno em acessos. Sendo assim, o Facebook resolveu bloquear para toda Austrália na sua plataforma o conteúdo gerado pelos veículos e, assim, boicotar não só as empresas de comunicação, como todos os usuários daquele país.
A postura do Facebook deixa claro que além de uma política comercial predatória, não segue qualquer princípio ético, que garanta o acesso à sua plataforma e que respeite o princípio de formação de rede, que foi responsável pelo crescimento e propagação da mesma.
Imagine se alguém resolvesse apagar a luz de todo um país, por deter o controle sobre os seus consumidores. Qual seria a consequência disso? Ou se aceita nosso modelo de negócios ou terão as trevas como consequência. O Facebook tornou-se nocivo para a democracia, basta lembrar das manobras de Zuckerberg para favorecer Donald Trump e influenciar no resultado do Brexit no Reino Unido. No Brasil, foi espaço fértil para fascistas, mensagens racistas e preconceituosas que interferiram no ambiente político atual.
Esse mundo sem lei, ausência de compromisso social, exploração do trabalho e manipulação de toda ordem não pode ter passe livre pelo mundo. Se antes discutíamos a necessidade de limites éticos na atividade jornalística, chegamos a algo ainda mais perigoso, que seria uma mistura de liberalismo extremo, com o estabelecimento de práticas ilegais e ainda trabalho sem remuneração, tendo como guarida ser realizado de forma virtual e voluntária.
O exemplo da Austrália é um alerta grave. O modelo de exploração que o Facebook propaga é ainda mais cruel que o fenômeno da Uberização. Se ter um patrão que está isento de obrigações trabalhistas já é absurdo, imagine, no caso do Facebook, cujo empregador ainda tem o direito de cortar o tubo de oxigênio por onde você respira de maneira precária e dirigida.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.
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