Como uma casta aristocrática, os militares vêm acumulando benefícios desde o século XIX e são os únicos que tiveram aumento no orçamento nos últimos anos, chegando a R$ 118 bilhões. Apenas no Exército há 68.000 filhas de militares consumindo R$ 5 bilhões anualmente dos recursos públicos
Milton Figueiredo Rosa, Jacobin
Como uma casta aristocrática, os militares vêm acumulando benefícios desde o século XIX e são os únicos que tiveram aumento no orçamento nos últimos anos, chegando a R$ 118 bilhões, igual ao ministério da Saúde. A diferença é que um atende toda população brasileira, enquanto o outro alimenta um seleto grupo com picanha, uísque, hotéis de luxo e uma nababesca previdência – desfrutada por 68 mil filhas “solteiras”.
“Crêa o montepio para as famílias dos oficiais do Exercito… e regula o modo de sua fundação e aplicação”. Foi assim, em português arcaico, no governo não por acaso de um marechal, Deodoro da Fonseca, que o decreto nº 695 de 1890 inaugurou a primeira, e mais nababesca, previdência brasileira, voltado a “amparar” os militares. E, depois do pontapé inicial do velho Deodoro, vieram os penduricalhos salariais de todo tipo, com justificativas leves e custo pesado: a estabilidade garantida pela Constituição, até mesmo para atividades não essenciais; o regime previdenciário, benevolente na idade e generoso no cálculo dos valores.
A bem da verdade, o caso extremo, tão sério que parece piada, vem do funcionalismo civil e ilustra muito bem as benesses públicas acentuadas e caras, deste país cada vez mais pobre. Foi o caso de Antonio Justino Ramos, tesoureiro de alfândega, “encarregado de receber, registrar e repassar ao Tesouro os tributos recolhidos no Maranhão”. Após sua morte, em fevereiro de 1912, a família foi amparada pelo Estado até janeiro de 2019, isto é, recebeu pagamentos por 106 anos e 11 meses, período em que tivemos 30 presidentes e 9 moedas. Pois, ironicamente, essas gambiarras legais que geraram esse “baronato”, do judiciário, legislativo, de certas carreiras do executivo e, evidentemente, dos militares, deslanchou após a proclamação da República.
A polêmica “pensão da filha solteira”
O descaso com dinheiro público não é exclusividade dos políticos. O gosto pelo “auxílio-tudo” não é exclusividade do judiciário. Os exemplos de abusos e regalias nas Forças Armadas são tão extravagantes quanto dispendiosos. Passados 129 anos do ato do Marechal Deodoro, em dezembro de 2019, a União pagou R$ 128,2 milhões em pensão para filhas de militares brasileiros referentes apenas aos dois últimos meses. Uma única beneficiária recebeu R$ 325 mil em novembro e outras duas embolsaram R$ 229,5 mil e R$ 102,7 mil, respectivamente, todas com pensão vitalícia.
O Exército tem 68.000 filhas de militares (Aeronáutica e Marinha não divulgam), consumindo R$ 5 bilhões anualmente dos recursos públicos. Em 2019, o déficit com inativos e pensionistas das Forças Armadas, que são apenas 1,16% dos aposentados no país, respondeu por 15,4% do rombo total da Previdência.
Os defensores da polêmica pensão, normalmente beneficiados, direta ou indiretamente, dizem que isso acabou em 2001. Meia verdade: acabou para novos servidores, mas quem estava na ativa, com filhas nascidas, vai usufruir da regalia, que ainda poderá ser desembolsada pelos próximos 40 anos. E os novos integrantes, se contribuírem com mais 1,5% para a previdência, além dos 10,5% convencionais, podem manter a pensão para suas filhas. Só que ninguém viu o estudo atuarial que comprova que esse percentual vá realmente cobrir o pagamento futuro e que essa conta não vá cair, lá na frente, no colo do contribuinte.
A grande polêmica dessa norma é que todo mundo conhece uma mulher que recebe a pensão, é casada, tem filhos, só não formalizou o casamento para manter a renda. E, a partir disso, surgem as distorções mais variadas, como o ex-general-presidente Emílio Médici que adotou a neta, Cláudia Candal Médici, em 1984, com objetivo claro de “herdar” a pensão – ele faleceu pouco mais de um ano depois -, beneplácito que mesmo contestado na Justiça foi, finalmente, e sem surpresas, considerado válido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
As diferentes previdências
Em respeito ao cargo, que ele mesmo não respeita, digamos que o forte do atual presidente, Jair Messias Bolsonaro, não é o compromisso com a verdade. Partindo do suposto “combate aos privilégios”, se vê que sua postura na reforma da Previdência foi desde alardear a inevitabilidade das medidas, sob risco de “não ter dinheiro para pagar os aposentados”, até a obcecada proteção aos interesses dos militares, e um “dane-se” aos que tem a infeliz sina de depender da previdência social dos trabalhadores da iniciativa privada. Os militares derrubaram essa máscara e deixaram escancarado seu lobby por privilégios e regalias.
Inicialmente, os militares mantiveram os direitos, tão caros à categoria, da integralidade, ou seja, aposentadoria com o valor da última remuneração, atualmente em R$ 30 mil, e da paridade, que é o reajuste dos inativos simultâneo e idêntico ao dos militares da ativa. Qualquer desses conceitos passa longe do que é atribuído à iniciativa privada. Vale lembrar também que no Reino Unido e nos Estados Unidos a aposentadoria é proporcional ao tempo de serviço.
A alíquota de contribuição dos militares, que até então era de 7,5%, passou a ser de 10,5%. De novo, em comparação, as alíquotas do INSS vão de 7,5% para ganhos de R$ 1.045,00 até 14% para a faixa de R$ 3.134,40 até o teto de R$ 6.101,06. As diferenças são, no mínimo, gritantes.
Os tempos de atividade também são muito peculiares: para os militares é de 25 anos, acrescidos de 4 meses a cada ano, até o limite de 30 anos. A aposentadoria Integral no INSS prevê 40 anos de contribuição, para o trabalhador fazer jus a 100% da média da contribuição.
E, como ninguém é de ferro, a contrapartida para “as penalizações” dos militares na reforma da Previdência vem acompanhadas de aumentos de adicionais: criado o Adicional de Compensação por Disponibilidade Militar, devido a “disponibilidade permanente e dedicação exclusiva” de 5% (alunos/cadetes) a 41% (general) mas, que pena, não pode ser acumulativo com o Adicional de Tempo de Serviço (correspondente aos anos de serviço em 2000). Depois vem o Adicional de Habilitação, prêmio pelos cursos realizados: Curso de Especialização aumentou 3%; Curso de Aperfeiçoamento 7% e os de Altos Estudos tiveram acréscimo de 12%.
A Gratificação de Representação, de 10%, que até dezembro de 2019 era exclusiva de oficiais, foi estendida aos praças em função de comando. A ajuda de custo devida ao militar quando de sua passagem para a reserva passou de 4 para 8 salários. Esse conceito “reserva” é muito interessante: no futebol um reserva está sempre na iminência de entrar em campo (a famosa regra 3), mas para um militar brasileiro ser convocado para voltar à ativa em situações de emergência a probabilidade estatística está próxima de 0. Depois, em função da idade, os militares passam a ser “reformados”, isto é, saem da disponibilidade de convocações para guerras e para a aposentadoria plena mas, financeiramente, nada perdem.
Ressalte-se que o rombo do INSS é de R$ 318 bilhões, o que não traz bons prenúncios para quem dele depende, ou dependerá. As causas são muitas e complexas, mas algumas pistas deixamos por aqui.
O generalato
O cinema norte-americano nos ensinou que medalhas no peito de soldados se referem a atos de bravura. Por isso, ao ver o uniforme forrado de medalhas de nossos generais que, no máximo, integraram forças de paz, um leigo fica curioso: será que se referem a quantidade de proventos em sua folha de pagamentos? Não, ainda bem.
Ainda assim, o Brasil tem 5.438 generais, das quais 5.290 são da reserva. Seu custo aos cofres públicos é de R$ 1,7 bilhão por ano. Já na ativa são 148, ou seja, 36 generais na inatividade para cada um no serviço ativo. No Alto Comando são 16 generais, que durante a ditadura faziam um contraponto ao general-presidente mas que, hoje, passou a ser uma estrutura dispendiosa e de utilidade discutível. Aliás, como o general Vilas Boas, ex-comandante do exército, revelou recentemente, tem a utilidade de produzir ameaças de golpes.
Mas o que sangra o Tesouro, além das aposentadorias precoces, são os penduricalhos, incorporados aos salários. Só de gratificações, auxílios e outros adicionais foram R$ 3,7 bilhões em 2019. São os adicionais de habilitação, o adicional de compensação por disponibilidade militar, gratificação de localidade especial, alimentação, assistência médico-hospitalar e ajuda para aquisição de uniformes. Cada vez que um militar, do soldado ao general, faz um curso, reflete em aumento salarial, quando ocupa um cargo de comando, idem, quando vai para regiões mais remotas, melhor ainda. Uma das funções mais rentáveis é a de adido militar no Exterior (generais podem receber R$ 40 mil). Sem falar que os benefícios para os militares se estendem a atendimento médico, escolas e moradia subsidiadas. Só em Brasília, são 4.439 imóveis funcionais, apenas do Exército.
Outra mordomia altamente questionável é o uso de militares de baixa patente, os taifeiros, como copeiros, cozinheiros e despenseiros. Alguns queixaram-se, por exemplo, em Brasília, de terem, além de suas tarefas, já abusivas, de serem obrigados a fazer faxina, lavar roupa e cozinhar para toda a família de um general, inclusive aos domingos. Não levaram adiante sua indignação com medo das previsíveis represálias. Um procurador militar de Santa Maria (RS), Soel Arpini, em atitude louvável, entrou com ação para proibir que taifeiros prestem serviço de criadagem na residência dos generais, caso que está longe de ser resolvido, pois foi parar no Tribunal Regional Federal (TRF).
Como o planalto foi entupido de milicos, desde ministros (1/3 do total) até assessorias exóticas, em números que superam a ocupação de cargos na ditadura militar, Bolsonaro resolveu dar um “mimo” à caserna nos primeiros meses de governo, aumentando de R$ 22 mil para R$ 30 mil o salário dos generais. Agora eles reivindicam junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), o “direito” de acumular soldo e salários recebidos do Executivo, sem levar em consideração o teto constitucional, de R$ 39,4 mil, que é o salário de ministro do STF. De novo, rejeitam a isonomia com civis.
O custo e os gastos
Um estudo da Instituto Fiscal Independente (IFI), ligado ao Senado, coloca o Brasil entre os que mais gastam com pessoal (inclui pagamento de pensões por morte) em suas Forças Armadas. O país fica em nono lugar, na comparação com os membros da OTAN, principal aliança militar ocidental. Além do Brasil, entre os dez primeiros só há nações ricas. Em 2019, os gastos com pessoal foram de R$ 76,1 bilhões nas três armas, investimentos de R$ 12,8 bilhões e despesas gerais de R$ 29,3 bilhões, somando um total de R$ 118,2 bilhões. O inusitado é a distribuição entre folha de pagamento/investimentos que tem uma relação de 60/40, na média dos países da OTAN, e no Brasil é de 80/20.
Mas a pressão da alta cúpula da Defesa é por aumento, mesmo que o único orçamento que rivalize com esse seja o da Saúde. É fácil acreditar que eles precisam de mais dinheiro, mesmo. Afinal, cobrir gastos como os que temos visto, precisa de um caixa inesgotável, pois, enquanto ouvimos discursos enfáticos de generais, almirantes e brigadeiros ressaltando a austeridade nas Forças Armadas a mídia mostra, frequentemente, gastos inusitados, com explicações esquisitas: o Exército quando compra exige cortes das carnes mais nobres e cervejas puro malte. A picanha sai por R$ 84,14 o quilo e as cervejas especiais a R$ 9,80 a As quantidades podemos dizer que são formidáveis: 700 mil quilos de picanha, mais de 9 mil quilos de filé de bacalhau, 139 mil quilos de lombo do mesmo peixe, 80 mil cervejas e 10 garrafas de uísques 12 anos para o Comando do Exército e 660 de conhaque para o Comando da Marinha.
A Academia Militar das Agulhas Negras relatou, recentemente compra de material esportivo no valor de R$ 9,985 milhões, com 28 bicicletas especiais de fibra de carbono para triathlon no valor unitário de R$ 26,333 mil (total de R$ 737 mil), 30 calças de tiro a R$ 5,5 mil, jaquetas para tiro a R$ 2,999 mil e jaquetas para esgrima a R$ 1,645 mil.
Sem falar em relatos de abusos e regalias em saques e compras com cartões corporativos. O total de 2019, último dado disponível, foi de R$ 2,2 milhões, em despesas que deveriam ocorrer apenas em missões oficiais, mas envolve diárias de hotéis, contratações de serviços de operadores de turismo, locação de veículos e refeições em churrascarias, incluindo a Pousada Penhasco, paradisíaca estalagem na Chapada dos Guimarães, a Pizzaria e Restaurante Pigalle, na tradicional Copacabana, o hotel-fazenda Mazzaropi (melhor do Brasil em 2006 segundo o Guia Quatro Rodas), a choperia Baden Baden, em Campos do Jordão e o restaurante Rancho da Traíra, na Vila Mariana. Bom gosto não se discute, mas quem paga essas contas gostaria muito de discuti-las.
O assunto, e a mamata, é inesgotável, mas vale ressaltar que países em conflitos bélicos constantes, longos e caros, utilizam, no máximo, 2% do PIB em gastos militares. O Brasil chegou a 1,5% mas a meta do generalato é esse percentual de quem está em guerra, o que elevaria os gastos, com base em 2019, para astronômicos R$ 148 bilhões. Esse seria o custo exorbitante da paz para que os militares não intervenham ainda mais na política nacional?
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