As perigosas mudanças no Cadastro Único e o retorno do Brasil ao Mapa da Fome
Se em 2014 o Ministério do Desenvolvimento Social comemorou a saída do Brasil do Mapa da Fome, em 2020 assistimos ao empobrecimento das famílias e o retorno do Brasil a esse Mapa. Como foi possível, em seis anos, termos uma mudança tão acentuada no combate à fome no Brasil? As mudanças no Cadastro Único ajudam a entender o cenário
Denise de Sordi*, ElPaís
Se em 2014 o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome comemorou que o país dava um passo à frente com a saída do país do Mapa da Fome, em 2020 assistimos à caminhada do Brasil à índices alarmantes que sinalizam o retorno do país a este Mapa e o empobrecimento das famílias de trabalhadores.
Como foi possível, em seis anos, termos uma mudança tão acentuada no combate à fome no Brasil?
Para compreender isso, precisamos pontuar as sucessivas tentativas de mudanças no formato do Bolsa Família, dentre as quais vale lembrar da proposta de sua substituição pelo Renda Brasil ou ainda a tentativa de criação de um 13˚ para o programa — que emergiu em meio aos ataques ao 13˚ dos trabalhadores, então indicado como algo exótico a ser retirado pela reforma trabalhista.
Há um movimento de tentativas para deslegitimar a transferência condicionada de renda enxugando o “custo social”, e para isso, é preciso caracterizar o Bolsa Família como algo moroso e ineficiente. Na prática, este é um movimento de confirmação do abismo social brasileiro, e que busca opor os trabalhadores entre si.
As mudanças no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), recentemente tornadas públicas podem parecer uma questão menor ligada à gestão ou mesmo à simplificação do acesso aos benefícios de programas sociais do governo brasileiro. Porém, estas mudanças podem ser encaradas como mais uma das peças de um quebra-cabeças que ilustra a aceleração da conversão em curso para as políticas de proteção social no Brasil.
As ações de distribuição de cestas básicas têm se multiplicado, a Ação da Cidadania — que, inclusive, teve forte influência na escolha pelo formato das transferências condicionadas de renda, ainda nos programas de governo ao longo dos anos de 1990 — está mais ativa que nunca. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) — em um ato que talvez seja mais simbólico do que consigamos dimensionar agora — foi extinto no início de 2019, os conselhos sociais que permitem a gestão democrática, pública e transparente das ações de proteção social foram, na prática, quase que inteiramente desmantelados.
Este desmantelamento é melhor compreendido se retomamos o fio da narrativa sobre esta conversão, que tem aparecido em episódios — prontamente solapados por sucessivas crises — e muitas vezes de forma fragmentada, mas que envolvem o desmanche, ou no mínimo, a inativação de pilares da assistência social brasileira.
O CadÚnico é um destes pilares, e é a mais recente medida de assistência social a ser atingida pelo desmonte sistemático do sistema atual de políticas sociais. No entanto, o impacto do desmonte deste pilar específico pode passar despercebido, dada a complexidade do programa. De fato, a proposta de mudanças em seu formato, com o autocadastramento por meio de aplicativos para celular implicam, necessariamente, na desativação de toda uma rede socioassistencial organizada a partir desta base informacional, e também do controle, transparência e fiscalização da implementação dos programas sociais.
Se, em meio à convulsão política que experimentamos desde 2015, abriu-se caminho para a aprovação do teto de gastos, das reformas trabalhista e da previdência, agora, tudo indica que os programas sociais são os próximos da fila, enquanto o Bolsa Família passa por um apagão sem precedentes.
Todos estes acontecimentos no campo das políticas sociais, constituem peças deste quebra-cabeça que sinaliza a busca pela alternativa política, social e econômica para a desregulamentação dos programas sociais, na esteira das reformas macroestruturais levadas a cabo em anos recentes.
No entanto, o Bolsa Família é um programa internacionalmente reconhecido e socialmente legitimado. Ainda que receba críticas derivadas de certa aversão àqueles identificados como pobres — a aporofobia manifesta em campanhas políticas ao longo de 2018 e que agora realiza sua potência —, seu tempo de existência e sua abrangência são um peso político a ser considerado para que seja alterado de forma brusca. É convenção econômica e social básica que nenhuma mudança deste porte irá ser operada sem o mínimo de apoio da sociedade, pois o custo político ainda é muito alto.
Aqui entra o desenvolvimento do Auxílio Emergencial. Negociado por uma articulação política diversa, e, sem dúvidas, como uma medida necessária e urgente, efetiva e de curto prazo, se sobrepôs às possibilidades de aumento dos auxílios já existentes e se mostrou alternativa viável de ser implementada. No entanto, por ter sido gestado em meio a um fluxo de ataques sistemáticos às políticas sociais brasileiras, a forma de sua implementação — por meio de autocadastramento — pode vir a ser um balão de ensaio para a desregulamentação dos programas sociais.
A não utilização do CadÚnico como forma prioritária de seleção das pessoas que seriam atendidas e a interrupção da atualização dos dados referentes ao Bolsa Família no CadÚnico, indicam um movimento de atenção importante às parcelas da população que até então não eram atendidas pelos programas sociais, a exemplo o Bolsa Família, pois ficavam fora das faixas de corte de renda. Dentre estes, estão os desempregados, os trabalhadores informais, os pequenos comerciantes, os precários, os autônomos etc… que, de certa forma, forjaram um novo estrato de trabalhadores brasileiros que se beneficiaram não das recentes reformas trabalhista e da previdência, mas de políticas sociais consistentes e estruturais dos governos anteriores, tal como o aumento real do salário mínimo, do acesso ao crédito e do acesso aos serviços sociais em geral.
Se em momentos anteriores o CadÚnico foi elogiado e tido como uma referência de gestão dos programas sociais, é quase uma ironia que agora a hiper focalização que se desenha no horizonte ocorrerá por meio da eliminação de uma das etapas consideradas mais importantes para conferir responsabilidade governamental ao gasto social.
A conversão indicada aqui e que conecta estas peças como partes de um processo está, portanto, em uma mobilização pelo apagão do Bolsa Família. Aqueles identificados como pobres pelo Estado e os que se identificavam como não pobres foram postos em um mesmo programa. As regras do jogo, que também são morais, mudaram. O Estado ampliou a cobertura com o Auxílio.
No entanto, e agora? Os que foram beneficiados em situação de emergência aceitarão sair? Os sujeitos atendidos pelo Bolsa Família aceitarão a diminuição no auxílio? Estas pessoas aceitarão viver a insegurança em seu nível mais básico — por comida e moradia?
Há uma narrativa política em curso sobre a necessidade de “reformular” ou de “modernizar” o atual funcionamento da rede de atendimento socioassistencial e que está na esteira de um processo de reconstrução de certa coesão social que parecia consolidada em torno do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
O SUAS foi institucionalizado em 2005 e está em relação direta com a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) para possibilitar a construção de um sistema descentralizado de gestão que integra as ações entre os governos federal, estaduais e municipais, em síntese, o SUAS é a linha de frente da proteção social brasileira. Portanto, observar as mudanças no CadÚnico como parte de um processo, pode ajudar a esclarecer o avanço na transformação do sentido de programas sociais, a exemplo do Bolsa Família, e a compreender o ensaio político gestado com o uso que será feito da experiência de implementação do Auxílio Emergencial ao longo de 2020.
O CadÚnico, mais que uma simples plataforma de cadastro de dados, é uma base informacional crucial para o funcionamento dos programas sociais brasileiros. Todo programa social direcionado às parcelas populacionais de baixa renda está obrigado a utilizar o CadÚnico. Dentre eles o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a Tarifa Social de Energia Elétrica, Programa de Cisternas, Isenção de Pagamento de Taxas de Inscrição em Concursos Públicos, Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar — Pronaf, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil — PETI, dentre tantos outros que são desenvolvidos pelo governo brasileiro e que compõe a rede de proteção social do país.
O CadÚnico é um sistema de informações globais que permite diagnosticar e acompanhar o crescimento ou redução dos números que medem a pobreza, informações sobre os programas sociais e estabelecer metas de atendimento, e por sua vez, de repasses de verbas aos municípios para a gestão dos programas, através do Índice de Gestão Descentralizada (IGD).
O IGD mede a qualidade da gestão dos programas sociais pelos municípios e, por meio do repasse de verbas, possibilita o desenvolvimento de ações de assistência social a nível local, bem como a fiscalização do cumprimento das condicionalidades do Bolsa Família nas áreas de saúde e educação.
O CadÚnico permite estabelecer retratos do país, é por meio desta base informacional que são possíveis o desenvolvimento de pesquisas, planejamento de políticas públicas e a garantia da focalização dos programas sociais para públicos específicos, priorizando a extrema pobreza e a pobreza. A focalização, ponto polêmico, é uma técnica de direcionamento da proteção social a partir de critérios que se opõe à universalização dos Direitos Sociais.
Por unir a transferência condicionada de renda e o acesso aos Direitos Sociais com a focalização, o CadÚnico, reformulado em 2003, é tido por organismos multilaterais como um dos bastiões da garantia de gestão e eficiência econômica do gasto social com a transferência condicionada de renda.
A rede que o sustenta se completa e se inicia, portanto, com o cadastramento no CadÚnico a partir do momento em que as pessoas que necessitam do auxílio buscam os postos de atendimento dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e dos Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), que, por sua vez, são parte determinante para a atuação de assistentes sociais e medição do impacto social dos programas. É este nível de atuação municipal, por fim, que permite a manutenção de sistemas de Busca Ativa, pelos quais o Estado procura ativamente as pessoas que necessitam dos programas, mas por diferentes motivos, ainda não são atendidas por eles.
Permitir o desmonte desta rede é assumir que estamos dando muitos passos atrás, cada vez mais próximos do retorno ao Mapa da Fome.
*Denise de Sordi é doutora em História Social e autora da tese de doutorado Reformas nos programas sociais brasileiros: solidariedade, pobreza e controle social (1990–2014).