Proibidos de ir ao banheiro, adolescentes defecam em marmita em unidade socioeducativa
Privados de banheiro e sem acesso à água corrente, adolescentes de 14 a 17 anos defecam em marmita em unidade de internação socioeducativa do DF. Já em presídio feminino, baratas se multiplicam por todas as alas
Edson Sardinha e Larissa Calixto, Congresso em Foco
A cerca de 60 quilômetros de Brasília, adolescentes de 14 a 17 anos internados em uma unidade socioeducativa têm apenas duas oportunidades para ir ao banheiro ao longo de todo o dia. São 15 minutos pela manhã e outros 15 minutos no fim da tarde. Caso tenham de fazer suas necessidades fisiológicas fora do horário previsto, têm de recorrer a marmitas de isopor, para defecar, e galões de produtos de limpeza de 5 litros, para urinar. Necessidades essas feitas na frente dos demais colegas de dormitório, em ambientes fétidos, sem ventilação.
Essa foi a realidade encontrada pela Defensoria Pública de Goiás e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura , órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) de Luziânia (GO), uma das principais cidades do Entorno do Distrito Federal. A visita foi feita no início de novembro, mas o relatório foi concluído e encaminhado às autoridades goianas nessa terça-feira (9). Também foram encontradas condições degradantes em um presídio feminino, na mesma cidade, e em um masculino, em Planaltina de Goiás, também no entorno.
O relatório da Defensoria e do Mecanismo classifica a falta de banheiro na unidade destinada a adolescentes infratores como uma prática cruel, desumana e degradante. “Os adolescentes são submetidos a uma situação que ataca a dignidade humana e os princípios previstos no ECA relativos aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes”, diz trecho do texto.
Além de fazerem suas necessidades em marmitas e galões, os internos não têm acesso à água corrente em seus dormitórios, o que os impede de lavar as mãos para fazer a higiene pessoal.
“Além de ser uma prática que produz constrangimento e sofrimento mental para adolescentes internados no CASE de Luziânia, a situação se agrava pela falta de ventilação, não permitindo que odores sejam dispersados e aumentando o mau cheiro no interior dos dormitórios, e pela inexistência de água corrente nos quartos, que impossibilita a higienização corporal e do local após fazer as necessidades fisiológicas”, diz outro trecho do relatório.
Um dos responsáveis pelo relatório, Daniel Caldeira de Melo, perito do Mecanismo, diz que nunca viu, em suas inspeções, um caso de privação de uso de banheiros. “Não ter acesso ao banheiro, na minha experiência, é algo que nunca tinha me deparado antes. Normalmente nos deparamos com falta de acompanhamento das medidas socioeducativas, dificuldade de acesso à escola, uso da força desmedido”, disse Daniel.
Para ele, a situação precária já virou natural para os funcionários da unidade. “É uma unidade antiga. Estima-se que há dez anos esteja nessa situação, está naturalizado pelos funcionários. Eles chegaram a contar que, quando sobram galões na casa deles, eles levam pra lá para dar mais ‘conforto’ para os adolescentes”, conta Daniel.
O relatório também aponta risco de incêndio devido à precariedade da rede elétrica, com fios e bocais de lâmpadas soltos e falta de medidas preventivas. “A rede hidrossanitária da unidade é antiga, com escoamento de esgoto aberto, além da estrutura física apresentar diversos pontos de infiltração”, complementam os técnicos que visitaram a unidade.
Covid em presídio feminino
Também foram consideradas degradantes as condições encontradas na Unidade Regional Prisional Feminina de Luziânia. Durante a visita foi constatado um início de surto de covid-19 na carceragem. Das 110 internas no momento da inspeção, 22 mulheres estavam diagnosticadas com a doença.
Onze das 22 detentas infectadas pelo novo coronavírus estavam isoladas nas celas destinadas ao castigo e de isolamento, já em situação de confinamento, sem direito a banho de sol há mais de 20 dias. “Essas celas não possuíam iluminação natural adequada nem ventilação cruzada, como prevê a LEP [Lei de Execução Penal]. Eram celas escuras, que comportavam seis presas, mas estavam com nove e sete presas cada uma”, narra o relatório.
Em uma das celas, onde deveriam estar seis presas, havia 14. “As celas não possuem janelas ou aberturas na parte de trás, para que haja circulação de ar. As grades são a única fonte de ar e luz das celas. Todas as paredes das celas possuíam mofo, infiltrações e tinham o sistema hidrossanitário comprometido”, segundo os inspetores. De acordo com o relatório, são frequentes os transbordamentos de esgoto, que possuem um forte odor desagradável comum aos esgotos públicos. Durante o período da inspeção, houve transbordamento, logo após as detentas terem lavado os utensílios de cozinha, talheres e pratos e copos que foram utilizados no almoço. Nos períodos de chuva, conforme as detentas, as águas desses bueiros invadem as celas.
“A água que elas consomem para matar a sede é a da pia do banheiro, sem qualquer tratamento ou filtragem. A situação é agravada por conta da caixa d’água ser em uma localização onde, por muitas vezes, animais caem e acabam morrendo e contaminando a água. Também são comuns as faltas de água na unidade”, relatam os técnicos que visitaram a unidade.
Violação à Lei de Execução Penal
A 115 quilômetros de Luziânia, em Planaltina de Goiás, também no Entorno do DF, O Mecanismo e a Defensoria Pública encontraram violações aos direitos humanos. “Foi identificado um modelo de gestão prisional que contraria os direitos estabelecidos na Lei de Execução Penal, visto que é praticado um regime mais gravoso que o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), impossibilitando remição de pena, seja pelo trabalho ou pelo estudo, limitando contato familiar por parlatório (antes da pandemia) e aplicação de sanções coletivas sem que houvesse cometimento de faltas e a devida individualização e instalação das comissões disciplinares”, diz o relatório a respeito da Unidade Prisional Especial de Planaltina.
Inaugurada há apenas dois anos, em 2019, a unidade contava com 215 presos no regime fechado durante a visita, em novembro. Mas as instalações já apresentavam danos de uma construção antiga. Daniel Caldeira conta que o modelo adotado na unidade segue o dos presídios federais de segurança máxima, embora não seja esse o caso. Também é restrita a oferta de refeições. São apenas três ao longo do dia, quando deveriam ser oferecidas cinco.
“Deveria ser garantida a remição de pena, seja por estudo ou leitura. Em qualquer regime disciplinar diferenciado, dos presídios federais, tem justificativa e tempo para acontecer. Também não há restrição para contato familiar. Foram retiradas as bíblias de todos os presos como forma de sanção coletiva, quando a punição deveria ser individualizada. Isso fere a Lei de Execução Penal. Durante a pandemia, nem email nem carta ou videochamada podem ser trocados lá”, relata Daniel.
Tortura
O relatório conclui com uma série de recomendações ao Ministério Público e ao governo de Goiás, com sugestões para melhorar as condições dos detentos e dos adolescentes infratores. Para o perito do Mecanismo, nas três unidades goianas visitadas está caracterizada a prática de tortura.
“As pessoas costumam pensar que a tortura é apenas física, aquela do olho roxo, dos dedos quebrados, de corte na cabeça. Mas tanto a convenção para prevenir e punir a tortura quanto a convenção da ONU contra tortura e outros tratamentos degradantes entendem que a a tortura é uma ação intencional, de causar intenso sofrimento físico ou mental, com várias finalidades, seja constranger, coagir ou intimidar, e causada por um agente público. Seja pela ação, seja pela omissão do Estado, a tortura é perpetuada na gestão pública”, explica Daniel.
Segundo Philipe Arapian, coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública de Goiás, apenas o Centro de Atendimento Socioeducativo de Luziânia, onde há restrições para o uso de banheiros, se comprometeu reformas no local. Até o momento, nenhum outro órgão do governo de Goiás responsável pelo assuntou comunicou a adoção de medidas à DPE.
Ele explica que é um dos deveres da Defensoria Pública fiscalizar os presídios de cada estado, porém segundo ele, a estrutura do órgão ainda é muito pequena para atender toda a demanda.
“Em unidades prisionais que, por exemplo, não há nenhuma oportunidade de estudo ou de trabalho a chance de ressocialização é muito menor, é ínfima. Isso é dado, quanto mais oportunidade de trabalho, a pessoa não reincide”, explica. Ele pontua também que as violações dos direitos humanos nos presídios são um problema crônico no Brasil.