Artefatos semióticos e catarse do riso nas guerras híbridas
Vive-se hoje em uma espécie de estrutura panóptica digital que é composta por processos de captura de dados e emoções que conta, também, com o afã das pessoas por visibilidade
Lucio Massafferri Salles*
Transparência, panóptico digital, capitalização das emoções
Desde meados da década de noventa tudo o que flui sobre as ondas e os dutos da internet pode se transformar em volume de informações passíveis de serem armazenadas e disseminadas rapidamente por todos os cantos da Terra. E, nas últimas décadas, proliferaram os bancos de dados e informações, quantificáveis e qualificáveis, sobre tudo e todos, inaugurando uma nova era de controle e de vigilância digital. Vive-se hoje em uma espécie de estrutura panóptica digital1 que é composta por processos de captura de dados e emoções que conta também com o afã das pessoas por visibilidade. Os usuários da grande rede e das redes menores se habituaram a fornecer dados em demasia, voluntariamente. E este é um dos aspectos que caracterizam essa estrutura panóptica tão afinada com o neoliberalismo da era digital: um sistema inteligente de exploração que usa ao seu favor a instrumentalização das comunicações, das emoções e dos jogos2.
Em seu livro, Targeted (2020: pg. 82-83), Brittany Kaiser, ex-analista da Cambridge Analytica, oferece um exemplo desse tipo de mecanismo de exploração que transforma os sujeitos/alvos em produtores e consumidores de conteúdos. Ela exemplifica com o caso do Candy Crush, no Facebook: concordando com os termos de serviço ao acessar esse game online usuários consentiam gratuitamente que os seus dados e os de todos os seus contatos fossem operacionalizados pelos desenvolvedores do game. Sinalizamos um detalhe: esse consentimento também era um consentimento legal, ou seja, os desenvolvedores poderiam “legalmente” compartilhar esses dados com quem quisessem.
Na lógica de um sistema como esse, que se alterna entre controle, exposição, captação e vigilância permanente, vigora uma transparência que é capaz de apagar fronteiras e corroer a alteridade. Tal como uma luz demasiadamente intensa que se reflete na virtualidade, essa transparência molda a superfície sem fronteiras em que ela mesma se projeta e da qual faz parte. Dotado de tal transparência, esse plano virtual se apresenta como um tipo de espelho em que se capitalizam emoções privilegiando-se as conexões filtradas pela identidade e a identificação pessoal. Essa paisagem se assemelha a um espectro futurista pelo qual se emulam aspectos do mýthos de Narciso.
Assim, muitas pessoas vêm há tempos substituindo relações construídas presencialmente por conexões virtuais liqueficáveis. E esse tipo de conexão pertence a um terreno que é propício ao bloqueio do contato, ao cancelamento e as disseminações difusas de intolerância e ódio que muitas vezes se dão sob a forma de “tempestades de merda”(shitstorms)3.
Essa modalidade de estrutura panóptica gosta da vontade própria de cada um e vê com bons olhos os curto-circuitos compulsivos capazes de levar indivíduos às curtidas ininterruptas, às exposições excessivas e aos compartilhamentos irrefletidos. É um tipo de “liberdade” que camufla um poder silencioso que não proíbe nem coage. Para além dos corpos e sem excluí-los, esse psicopoder age precisamente sobre as psiques. Age influenciando, induzindo e manipulando, esgotando e deprimindo suas mentes, suas almas. No entanto, os sujeitos controlados, vigiados e manipulados, não se sentem assim. Não percebem que em vez da liberdade lhes ser negada, ela é explorada através da exposição total que eles voluntariamente se submetem.
Artefatos semióticos e catarse do riso
Essa radiografia do psicopoder, expressa no plano da psicopolítica, ajuda a analisar alguns fenômenos na paisagem sociopolítica brasileira mais recente. Dentre eles, o fenômeno da visibilidade que certa extrema-direita adquiriu durante o golpe que retirou Dilma Rousseff da presidência (2015/2016). Refiro-me aqui a aplicação de estratégias semióticas capazes de provocar uma espécie de catarse, seja confundindo ou seja paralisando, por meio da detonação de artefatos linguísticos mergulhados em humor tosco/canastrão nos canais de comunicação.
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Não é uma novidade o fato de que o riso produz efeitos catárticos na psique e no corpo das pessoas, agindo sobre os seus ânimos. Aristóteles escreveu sobre essa potência do riso, há mais de dois mil e trezentos anos. E pouco menos de cem anos antes dele o comediógrafo Aristófanes redigiu peças nas quais se pode atestar o poder do fármaco que é inerente ao riso, como também se percebe a dimensão da crítica, política e social, própria aos humoristas.
Numa entrevista concedida ao Roda Viva4, Marcelo Adnet exemplificou e explicou com graça a lógica de certo tipo de artefato semiótico pautado pela canastrice/bufonaria. Na resposta suscitada pela pergunta do humorista Hélio de la Peña, Adnet sinalizou para o fato de que a atual internet traz grandes dificuldades para os atores comediantes, pois uma imensa quantidade de absurdos são disseminados nas plataformas sociais e nos aplicativos de mensagem instantânea. Diante de tantas piadas prontas o que resta aos comediantes, diz ele, é reproduzi-las apimentando-as um pouco mais, como no episódio viral da ema com a cloroquina, “um quadro no qual a ficção e a realidade parecem se encontrar”.
Uma verdadeira avalanche de memes e piadas sobre esse quadro foram despejadas nos dutos da grande rede. Mesmo que esses memes tenham provocado riso e catarse eles trouxeram embutidos signos ligados às mortes pelo vírus da Covid-19 pouco antes da gravíssima situação que o País se encontra hoje: que é a do negacionismo e da ausência de remédios eficazes e vacinas para toda a população.
São muitos os episódios que se prestaram e se prestam como munição para a fabricação de artefatos desse gênero. Artefatos esses que são disparados em massa e de pessoa para pessoa. O conhecido caso das comparações absurdas que visaram tornar equivalentes as armas de fogo e os liquidificadores/aparelhos caseiros, no que toca a possibilidade da ocorrência de acidentes em ambiente doméstico, gerou memes para todos os gostos. Também não faltou criatividade para se reproduzir em memes o episódio no qual uma figura pública da política postou no Twitter uma fotografia em que posava com um calendário nas mãos, a fim de “provar” que ele era ele mesmo e não outro. Tudo em nome de uma certa transparência virtual que equivocadamente é compreendida como sinônimo de verdade.
Vimos o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, servir-se de uma variedade dessas bombas semióticas que viralizaram e o ajudaram a se eleger em 2016. Ao fim do seu mandato, em 2020, meses antes de ser derrotado nas urnas, essa figura criou fatos prontos para memes, como foi o caso das dancinhas ensaiadas ao som de YMCA, ignorando os protestos de Victor Willis, líder do grupo musical e autor da referida música.
Ao longo do tempo, a absorção dos detritos desses artefatos semióticos pode produzir muitos efeitos nas pessoas por eles contaminadas. Alguns desses efeitos aparecem como uma impotência diante das imprevisibilidades dos panoramas de caos generalizado, gerando desânimo e cansaço, irritabilidade, sensação de paralisia e até depressão.
É fundamental buscar compreender e interromper os fluxos de disseminação desse tipo de instrumento semiótico que vem sendo utilizado como arma no plano comunicacional das guerras híbridas, como é o caso no Brasil.
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Notas:
1- Essa ideia de panóptico toma de empréstimo o modelo de prisão proposto por Jeremy Bentham, no qual um vigia seria capaz de observar todos os detentos. Byung Chul-Han transpôs o termo panóptico para a era digital, pós-revolução da internet, na qual todos são vigiados e vigias expostos às câmeras, aos microfones, às telas de captura e a todo o aparato tecnológico que constitui um espaço não-físico de controle, manipulação e vigilância permanente.
2- No livro Psicopolítica – Neoliberalismo e novas técnicas de poder, Byung Chul-Han desenvolve essa perspectiva.
3- Essa é uma expressão bastante usada por Han para caracterizar os ataques de indignação em rede com os quais se visa destruir a reputação de pessoas, figuras públicas e instituições.
4- Confira um artigo de Wilson Ferreira (Cinognose) em que ele analisa essa entrevista de Marcelo Adnet: http://cinegnose.blogspot.com/2020/08/adnet-e-helio-de-la-pena-revelam-no.html
*Lucio Massafferri Salles é filósofo, psicólogo e jornalista. Doutor e mestre em filosofia pela UFRJ, especialista em psicanálise pela USU. Criador do Portal Fio do Tempo (You Tube)