A gangue boliviana que habita os sonhos de Bolsonaro
Os 300 de Sara Winter tentaram, mas não conseguiram chegar nem perto de reproduzir as ações dos milhares de integrantes da gangue de Cochabamba. Bolsonaro sabe que não pode contar com o apoio incondicional das FA. Por isso seu projeto é ter as PMs como suporte bélico, ao lado de grupos civis armados
Moisés Mendes, em seu Blog
Jair Bolsonaro deve sonhar com a formação de grupos como o liderado pelo boliviano Yassir Molina, que está ao centro na foto. Molina é procurado desde a tarde de terça-feira. Há uma ordem de prisão da Justiça contra ele.
O sujeito é o líder de uma facção de extrema direita chamada Resistência Juvenil Cochala (RJC), de Cochabamba. Cochala é como se designa o cidadão de Cochabamba. A RJC não tem registro oficial e vínculos formais com partidos.
Molina deve ser preso por ações violentas, uso de armas e atentados contra prédios públicos, entre os quais um edifício do Ministério Público. Há muito tempo a RJC persegue um promotor.
Suspeitam que a organização seja financiada pelo fascista Luis Fernando Macho Camacho, eleito este mês governador de Santa Cruz de La Sierra, o reduto da direita boliviana.
#Último El presidente del @ComiteProSC, @LuisFerCamachoV, emitió un mensaje de agradecimiento a la población tras su llegada a la ciudad de La Paz. #ANF pic.twitter.com/NxAFNRvNGu
— Agencia Fides (ANF) (@noticiasfides) November 7, 2019
Camacho é o chefe do Comitê Cívico de Santa Cruz, a trincheira política de fazendeiros e empresários. Foi o líder civil do golpe de novembro de 2019 contra Evo Morales e concorreu nas eleições de outubro. Luis Arce, ex-ministro da Economia de Morales, foi eleito, e Camacho teve 14% dos votos. Ficou em terceiro lugar. É um fascista regional, com pretensões nacionais.
A RJC tem o nome de entidade juvenil, mas reúne gente de todas as idades, e muitos fingem ser jovens. Atuaram nas ruas no golpe, desfilam de moto vestindo as cores da Bolívia (qualquer semelhança com os bolsonaristas de verde-amarelo não é coincidência) e estão sempre a postos para tentar dispersar as manifestações do Movimento ao Socialismo (MAS), de Morales e Arce.
São violentos, usam armas artesanais e se dedicam a espalhar o terror, ameaçando gente nas ruas, estacionando diante de casas de militantes do MAS e depredando o que estiver pela frente. Geralmente saem encapuzados. Latem muito, mas também mordem.
Já ameaçaram jornalistas e costumam infiltrar agentes em grupos dos movimentos populares. Têm estatuto e não podem aceitar cargos públicos ou disputar eleição.
Foram eles que atacaram, espancaram e pintaram com tinta vermelha a prefeita da cidade de Vinto e líder socialista Patricia Arce, jogada no meio da rua quase sem roupas. Esta foi a vingança de Patrícia: elegeu-se senadora em outubro.
Relembre: Prefeita aliada de Evo Morales é sequestrada, agredida e tem os cabelos cortados e pintados
É a milícia perfeita, com gente das periferias misturada a extremistas da classe média. São definidos como tropa de choque dos fascistas bolivianos.
Na sua página no Facebook, o líder se define assim: “Jovem boliviano que ama seu país, a democracia e a igualdade. Odeia o abuso de pessoas em todos os sentidos”. Não se sabe qual é sua atividade.
Os 300 de Sara Winter tentaram, mas não conseguiram chegar perto do que são os milhares de integrantes da gangue de Cochabamba. O jornal argentino Página 12 calculou no final do ano passado que teriam mais de 5 mil membros.
Bolsonaro sabe, e com a crise com os militares sabe mais ainda, que não pode contar com o apoio incondicional das Forças Armadas.
Saiba mais: Chefes das Forças Armadas renunciam: “Não vamos participar de aventura golpista”
Por isso seu projeto é ter as polícias militares como suporte bélico, ao lado de grupos civis, para enfrentamentos de rua, como a turma de Yassir Molina faz na Bolívia. O incentivo ao porte e à posse de armas é parte essencial dessa estratégia. Com o mesmo argumento da defesa da democracia.
Na Bolívia, aconteceu o que Bolsonaro idealiza na sua mente golpista. Foram os policiais que se amotinaram e viabilizaram, na força, o golpe liderado por Camacho. Molina deu suporte à agitação.
Foram os policiais que puxaram os generais para o golpe. Acovardados, sem força para defender o governo, juntaram-se aos amotinados e exigiram a renúncia de Morales.
O golpe não deu certo, mas os policiais continuam ameaçando o governo de Arce e a Justiça, com notas da associação da categoria, e a facção dos motoqueiros está nas ruas. Yasser Molina é considerado foragido.
Ele, Camacho e toda a extrema direita contam com o suporte de parte do Judiciário. Tanto que Molina já havia sido preso este mês (pela segunda vez), pelas mesmas acusações de destruição de bens públicos, ameaças e formação de quadrilha, mas foi libertado por ordem da juíza Ximena Mendizábal.
Ximena enfrenta processos disciplinares na corregedoria de Justiça e foi afastada das funções. Ela pode ter permitido que o chefe da RJC preparasse a fuga, e a primeira possibilidade de refúgio é sempre o Brasil.
Uma coisa Bolsonaro deve estudar direito, para não achar que com policiais amotinados e gangues de civis é possível fazer e manter um golpe. Na Bolívia, o golpe foi derrotado em um ano. Perdeu para a democracia e para a esquerda do MAS, em voto direto.
Os generais que não fugiram estão presos, junto com Jeanine Añez, a ex-senadora que assumiu o governo depois do golpe que matou mais de 20 pessoas em ações do Exército nas ruas.
Policiais amotinados, generais covardes e gangues podem até promover um levante, mas nem sempre sustentam um golpe.