Jornalista estaria incomodando negacionistas contrários às medidas de contenção contra a Covid-19. O profissional e sua família escaparam por pouco de um dos atentados
Era madrugada de quarta-feira (17) em Olímpia, uma pequena cidade do interior de São Paulo a cerca de 450 km da capital, quando o jornalista José Antônio Arantes, editor do jornal local Folha da Região, acordou com sua casa em chamas.
Foi por pouco que ele e sua família conseguiram escapar de uma tragédia maior. Dias antes, sua filha já passara apuros na estrada que liga Olímpia a São José do Rio Preto enquanto realizava uma tarefa para o jornal e, no domingo de manhã, anterior ao incêndio, Arantes encontrou os pneus do seu carro murchos. Foram três atentados ao todo, que o jornalista contou em detalhes.
“Na quarta-feira de madrugada eu acordei com meus dois cachorros latindo desesperados. Eles provavelmente estavam escutando o invasor dentro de casa. Em seguida comecei a sentir o forte cheiro de fumaça. Quando abrimos a porta do quarto da minha neta, estava tudo tomado pela fumaça e um cheiro horrível. Eu e minha esposa abrimos todas as torneiras de casa, baldes, etc., e conseguimos apagar o fogo que começava a se alastrar para dentro. O cara jogou gasolina dentro de casa. Se demorássemos mais dois ou três minutos, não teríamos condições de descer. Se o fogo chegasse na minha moto, que deixo guardada dentro do espaço do jornal, poderia gerar uma segunda explosão, ainda mais forte que a primeira, que poderia nos impossibilitar de descer. Iríamos morrer ou queimados ou sufocados. Não fomos mortos por questão de minutos, porque minha esposa conseguiu apagar o fogo da porta, senão eu não estaria aqui para dar esta entrevista”, relatou.
Além de narrar os trágicos e preocupantes acontecimentos, o jornalista, que também é professor de filosofia, compreende os fatos a partir do atual momento do país, que vive a pior crise político sanitária da sua história, chegando ao fim deste mês a um número superior ao de 300 mil mortos graças às desastrosas narrativas e políticas federais que já ganham status de sabotagem e genocídio em muitos estudos científicos e meios de comunicação. Com tudo isso em vista, o jornalista arriscou algumas breves reflexões.
“Um grande erro que acredito que cometemos enquanto sociedade foi, ao fim da ditadura, não termos dado ouvidos a figuras como o Paulo Freire. Nenhum povo consegue conquistar uma estabilidade democrática sem ter um mínimo de cultura e de capacidade de reflexão. A reflexão é a coisa mais importante na vida de uma sociedade, ela é responsável pelo próprio autoconhecimento do ser humano. Sem ela, vemos um país como o nosso, em que 38 milhões de pessoas são meramente alfabetizadas funcionais. Ora, se temos uma parcela considerável da população brasileira que foi programada para ser robô de linha de produção, ela também pode ser programada para outras coisas”.
A seguir, leia a entrevista com o jornalista José Antônio Arantes:
— Conte um pouco da tua trajetória e, também, a da Folha da Região e sua importância para o jornalismo local
A importância de jornais como o nosso, de cidades pequenas, é a do trabalho de formiguinha. Tudo que vai ser feito começa pela base, e a base nesse caso somos nós, os milhares de pequenos jornais que existem pelo Brasil. Sozinhos somos gotículas de água, mas juntos nos tornamos uma enxurrada. Podemos desembocar em córregos, depois em rios e quando chegamos ao mar, todos nos agigantamos. A junção de todos os nossos trabalhos – e não importa a cidade, o Estado, a bandeira, nem o grau de politização – na missão de elucidar e noticiar os fatos é um grande serviço que prestamos coletivamente para a sociedade.
A Folha da Região foi fundada em 1980 e eu, como jornalista, comecei a escrever aos 13 anos de idade. Minha primeira matéria foi escrita num componedor, de tipografia, tinha que pegar tipo por tipo e, como eu não sabia datilografia naquela época, compus minha primeira matéria em tipografia.
De lá pra cá, só trabalhei em dois veículos de comunicação: um pequeno jornal aqui da cidade de Olímpia e, depois, fui para uma cidade maior na região onde trabalhei em um jornal diário, montei uma emissora de rádio pra esse veículo e então, voltei e fundei o meu jornal há mais de 40 anos.
— Por que acredita que o jornal se tornou alvo de atentados?
Ainda que não eu possa cravar, uma vez que faltam informações a serem esclarecidas a respeito dos atentados que sofremos, tenho a impressão que tudo começou com a divulgação da notícia de que um comerciante e um advogado propagavam no facebook, para os internautas de Olímpia, um chamado para fazer uma ‘insubordinação civil’. Ou seja, para que no dia 17 de março passado todos os comércios abrissem as portas, mesmo estando a cidade, e todo o Estado de São Paulo, na chamada fase emergencial da pandemia, na qual esse tipo de coisa não pode acontecer. Nessa fase emergencial que estamos vivendo, todos os estabelecimentos devem atender somente no delivery, e eles pregaram então que se fizesse uma ‘insubordinação civil’.
Eu li essa matéria na página do jornal na internet. Como sempre fazemos, chegou pra mim procuração da promotoria desses dois advogados e eu li a matéria. A partir daí, essas duas pessoas envolvidas iniciaram um movimento, também na internet, com palavras ácidas e xingamentos, para que outros comerciantes cancelassem os anúncios que fazem comigo. Não surtiu efeito, mas a campanha segue no ar.
Na segunda-feira, 15 de março, fizeram um protesto que reuniu, na minha maneira de ver, um grupo de pessoas que se identificaram com essa ira. São cerca de dez ou quinze comerciantes negacionistas e não representam a maioria dos comerciantes da cidade, que entendem a situação.
Temos entre 700 e 800 estabelecimentos comerciais na cidade, mas temos também esse pequeno número de negacionistas que protestaram na segunda-feira. E eles alegam que seguem os protocolos e que não teria um porquê de ficarem fechados. Mas na própria manifestação começaram a tirar as máscaras, receber pessoas sem máscaras e começaram uma passeata, o que é proibido na atual fase da pandemia que o Estado enfrenta. Veja: não é proibida a passeata, a liberdade de expressão ou de manifestação, mas a aglomeração nas ruas e o não uso de máscaras.
Um professor de história aqui da cidade, tem até livros publicados, viu aquilo e ficou abismado. Como reação, chamou o pessoal de “fascista”. Então foi postado um vídeo na internet no qual ele disse que cinco dos negacionistas o ameaçaram de agressão. Ele postou esse vídeo e foi tanta pressão em cima dele, com ameaças online até mesmo contra família do professor, que após algumas horas o vídeo foi tirado do ar.
E eu noticiei isso tudo no meu programa de rádio, que passa na rádio comunitária aqui da cidade, da qual sou presidente, mas também nas páginas de facebook e youtube da Folha da Região.
Noticiei isto. Não deu 20 minutos e meu programa foi invadido na internet por mensagens, daquelas de efeito que sabemos vir do gabinete do ódio em Brasília, do tipo “minha família inteira pegou covid e não deu nada”. E começaram a disparar mensagens desse tipo no meu programa.
Acontece que o meu programa faz muita interação com o ouvinte, que pode mandar perguntas e comentários nas redes sociais. Há sempre uma troca ideias com os ouvintes e internautas embora seja um programa jornalístico. Vamos abordando os assuntos principais do dia, as pessoas vão comentando e fazendo perguntas, e vamos conversando, respondendo aos comentários e às perguntas. O programa vai sendo basicamente pautado por essas conversas com internautas.
Sabendo disso, começaram a disparar dezenas de mensagens ao mesmo tempo dentro do programa para que não houvesse espaço para os meus ouvintes e internautas se manifestarem. E pegavam links de coisas negacionistas e reacionárias ao extremo de outros lugares da internet e também disparavam isso em massa, para conturbar o ambiente.
Faço esse programa com a minha filha. E ela precisou parar de apresentá-lo ao meu lado para ir deletando esses comentários e bloqueando essas pessoas, para que pudéssemos receber a interação das pessoas que são nossos ouvintes e internautas.
Na terça começaram a chegar no site do jornal os famigerados SPAMs. Muitos robôs acessaram o site ao mesmo tempo, deixando o servidor lento e podendo até mesmo derrubá-lo. Até para atualizar o site ficou um pouco mais difícil por conta desse ataque digital.
— Poderia narrar como ocorreram os atentados e acontecimentos adjacentes?
Na sexta anterior (12 de março), minha família passou por maus momentos, mas não dei bola, achei que fosse uma fatalidade dessas que se vive em uma sociedade como a nossa. Bem, o meu jornal é impresso em uma cidade maior da região, São José do Rio Preto, que fica a 50 km daqui. Mandamos pela internet as páginas para serem impressas e, na madrugada, o meu genro foi com a minha filha buscar os exemplares para que, de manhã cedo, os entregadores possam distribuir os jornais. Como faz toda semana.
Foram com o carro da minha filha e, no meio do caminho, a uns 10km daqui, faltando cerca de 40km para chegar em Rio Preto, uma Saveiro encostou na traseira do carro com a luz apagada e de repente a acendia, para assustar e tentar tirar o meu genro da pista. Não deu certo, daí a Saveiro saiu de trás e colou na lateral do meu genro, ameaçando bater na lateral no carro, novamente buscando tirá-lo da pista. Então o meu genro acelerou, bateu 150km por hora, e foi, em alta velocidade até Rio Preto. Minha filha, do lado, morrendo de medo, e minha netinha, de 1 ano e meio, estava no banco de trás.
Quando chegaram a Rio Preto, meu genro foi para um lado e a Saveiro foi para outro. Quando fiquei sabendo disso pensei que fosse um louco qualquer, alguém que se aborreceu no trânsito e perdeu o controle emocional, nem me atentava para a possibilidade de um atentado, jamais pensei que pudesse acontecer algo assim em Olímpia, uma pequena cidade de 50 mil habitantes, pacata. Os comerciantes daqui são da paz, ou seja, não teria como um comerciante de Olímpia, mesmo um negacionista, fazer algo do tipo. Não acredito que existam pessoas daqui da minha cidade que tenham a capacidade de perpetrar um ato violento desse.
Mas tudo bem, passou. No domingo eu tinha a intenção de ir caminhar com a minha mãe, como faço todos os domingos e, quando fui tirar o carro da garagem para irmos ao parque, o pneu estava murcho. A roda estava no chão, literalmente. Novamente, pensei que fosse algo normal. Longe de mim pensar qualquer coisa paranoica, soaria como pura teoria da conspiração achar que um pneu murcho pudesse significar qualquer coisa.
A discussão, até então, era no campo das ideias. Entre negacionistas e um jornalista que defende a ciência, as medidas de contenção, que está faz mais de ano pedindo às pessoas que usem mascaras, mantenham distanciamento, lavem as mãos e utilizem álcool em gel quando saírem de casa, porque se tivéssemos feito tudo isso desde início, não teria morrido tanta gente e nem precisaríamos de medidas extremas como o lockdown, em que há restrições para todo mundo. A restrição existe para evitar que mais pessoas morram. Há lugares no mundo que não precisaram de lockdown, pois a via da instrução e da conscientização funcionou. Não aqui, infelizmente.
Retomando, não cheguei a dar muita bola sobre o pneu murcho no domingo, mas chegou na quarta-feira de madrugada e eu acordei por volta das 4 horas da manhã com meus dois cachorros latindo desesperados. Eles provavelmente estavam escutando o invasor dentro de casa. Em seguida comecei a sentir o forte cheiro de fumaça.
O jornal e a minha casa funcionam no mesmo endereço. O jornal fica na parte de baixo do imóvel construída em alvenaria e madeira, e eu moro em cima. Há um corredor que vem da rua e serve para que a parte do jornal fique separada da parte da casa, com entradas independentes tanto para o jornal, como para a minha casa (que é em cima, mas tem uma pequena sala de entrada no andar de baixo). E quando abrimos a porta do quarto da minha neta, estava tudo tomado pela fumaça e um cheiro horrível. Eu e minha esposa abrimos todas as torneiras, pegamos baldes, etc., e conseguimos apagar o fogo que começava a se alastrar para dentro. O cara jogou gasolina dentro de casa.
Havia muita fumaça porque o fogo queimou, na parte onde está a casa, algumas bolas e pares de chinelos de borracha que estavam ali, além de um transmissor da rádio comunitária que havia acabado de chegar da revisão. Nem abri ainda para ver se também estragou. É um equipamento de cerca de 4 mil reais, mas que para nós é muito dinheiro. Se queimou, estou lascado.
Instantes depois, quando saímos a fim de respirar, vimos o fogo na parte do imóvel onde funciona o jornal. E muito mais grave, porque o cara colocou o galão inteiro ali. Essa cena foi capturada pelas câmeras de segurança de um comércio do outro lado da rua: o cara chega de moto com um galão de gasolina, joga a gasolina debaixo da porta de entrada da minha casa, se afasta e coloca o galão na porta do jornal. Aí ele se afasta novamente e põe fogo em tudo. Primeiro pegou fogo na porta da minha casa e depois há uma explosão quando o fogo chega no galão. Após a explosão, ele monta na moto e vai embora.
Se demorássemos mais dois ou três minutos, não teríamos condições de descer. Se o fogo chegasse na minha moto, que deixo guardada dentro do espaço do jornal, poderia gerar uma segunda explosão, ainda mais forte que a primeira, que poderia nos impossibilitar de descer. Iríamos morrer queimados ou sufocados lá dentro. Não fomos mortos por questão de minutos, porque minha esposa conseguiu apagar o fogo da porta, senão eu não estaria aqui para dar esta entrevista.
— Você que está na área há tanto tempo, lembra-se de algo parecido nas últimas décadas na região?
Não aqui na região. Torço muito para que tenha sido algo pessoal. Alguma pessoa que não gostou de uma matéria que saiu no jornal, ou alguém que foi acusado de algum crime cujo boletim de ocorrência eu tenha lido no rádio. Eu torço para que seja isso.
Se não for assim, mas algo orquestrado, dentro da perspectiva desse fascismo que está se instalando no Brasil, creio que seja muito grave. A intimidação é uma tática fascista, e não tenho dúvidas que um pequeno grupo de negacionistas aqui da cidade esteja sendo insuflado por esses fascistas. E se está acontecendo aqui no interior, imagine como não ocorre nas capitais.
É triste demais. Torço muito para que não seja isto e que as minhas netas possam viver em um mundo diferente daquele em que eu comecei a carreira, por volta de 1976, onde se queimava bancas de jornal e se colocava fogo em casa de jornalista. Quando a ditadura começava a perder seu poder sobre as redações dos jornais com o fim da censura, atacava as bancas de jornais e as famílias dos jornalistas a fim de intimidá-los. Essa é uma tática fascista, mas para chegarmos ao ponto dessa intimidação quase matar uma família inteira queimada é um ponto de perda do fascismo que, tristemente, nos mostra que está nas suas piores fases. Ela não se dá no momento de imposição do fascismo, no começo do seu projeto, mas no final, quando o fascismo sente que está perdendo força e poder.
Então, creio que o momento é complicado por isso. Porque o projeto de implantação do fascismo brasileiro se sente agora ameaçado e aumenta seus próprios limites no que se refere à barbárie como um todo e, nesse meu caso em especial, perdem a vergonha na hora de intimidar um jornalista.