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Putin e Biden: um diálogo no espelho

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“Acabamos nos enxergando [nesse espelho] porque sempre atribuímos ao outro os traços que fazem parte de nós mesmos”

Lucio Massafferri Salles*

Foi antológica a resposta dada pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, ao presidente dos EUA, Joe Biden (18/03/2021). E foi oportuno o convite de Putin para debater ao vivo com Biden (on-line, imaginem!), convite esse declinado pela Casa Branca.

O fato detonador: em uma entrevista para a ABC News (17/03/2021) o entrevistador perguntou (afirmou) para Biden se Putin seria um “assassino”. O presidente estadunidense abraçou a ideia, sem hesitar, e “cortou a bola levantada” pelo entrevistador.

Em resposta, com graça e desejando-lhe saúde, o presidente russo sugeriu que, ao acusá-lo de “assassino”, Biden estava refletindo nele, Putin, alguns traços, características e toda uma história memorial de injustiças e massacres sangrentos cometidos pelos EUA.

No seu pronunciamento, o líder russo lembrou que há sempre um risco de se incorrer no ato de ver a si mesmo em um espelho, quando se aponta e qualifica os outros, sejam esses outros, pessoas, povos ou Estados. Nesse tipo de espelho, comumente se encontram refletidos aspectos e marcas próprias em memória de vida, que são inapagáveis. Uma sinalização que faz lembrar bastante o que Freud percebeu e teorizou nomeando como projeção, um mecanismo de defesa psíquica.

Disse Putin: “acabamos nos enxergando [nesse espelho] porque sempre atribuímos ao outro os traços que fazem parte de nós mesmos”.

Vladimir Putin responde a Joe Biden

Sem generalizar e qualificar todos os estadunidenses, na sua réplica Putin destacou, na fundação e no establishment dos EUA, a indelével marca histórica da colonização/ocupação dessa América por europeus. E nesse rastro, o tanto de dor que foi provocada/imposta e de sangue que foi derramado. O povo nativo desse continente americano foi perseguido e exterminado, à medida que as suas terras foram sendo ocupadas à força. Literalmente, nas palavras do presidente russo: um genocídio foi praticado contra os nativos indígenas dessa região.

Putin não se limitou apenas a rememorar o genocídio dos índios na América do Norte, citando também a absoluta crueldade materializada nos atos de sequestro e escravização que foram impostos aos negros africanos durante séculos, em todo esse território [norte e sul, cabe aqui acrescentar].

Puxando pela memória recente e citando o Black Lives Matter, Putin não deixou de apontar que mesmo vivendo em uma “democracia” os afro-americanos continuam a ser exterminados, injustiçados, uma condição que se estende até aqui embaixo, no sul, para afro-latino-americanos e afro-brasileiros.

Enfim, na linha histórica do tempo, os EUA são a única nação do mundo que tomou a decisão de despejar armas nucleares de extermínio em massa em uma outra nação, isto é, o Japão (Hiroshima e Nagasaki), que nem possuía armas dessa natureza. E isso deveria ser, no mínimo, motivo para demoradas reflexões.

O momento seria bastante oportuno para um debate público, tal como foi proposto por Putin a Biden, o que não significa que vá ocorrer. Vale lembrar que não existe uma negação ou ocultamento de um período histórico russo (refiro-me aqui à antiga U.R.S.S) com gravíssimos problemas. O Gulag soviético não é uma ficção no tempo, assim como não é o fato da existência de repressões duras impostas às classes artística e científica, em um período da história da U.R.S.S.

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Na leitura dessa linha do tempo é preciso não ocultar para buscar entender com honestidade o significado prático da criminalização do racismo determinado pela Constituição Soviética de 19361. A posição frontalmente contrária às ideologias e práticas racistas foi decisiva para fazer desse povo uma barreira viva de resistência fundamental na derrubada do nazifascismo alemão2. Movimento ideológico esse que se fundamentava em “racismo científico” (supremacia racial branca) e genocídio projetado de povos (judeus, ciganos, negros).

Não se deve esquecer que até o ano de 1967 a simples formação de um casal entre negros (as) e brancos (as) era criminalizada pelas leis estadunidenses3. No sul dos EUA, o “tribunal” a julgar esse tipo de “crime” poderia facilmente se estender a grupos de extermínio formado por supremacistas brancos.

Diante disso, seria muito interessante a possibilidade de ocorrer um debate/diálogo on-line entre os dois líderes, tal como foi proposto pelo presidente russo. Muitas questões urgentes poderiam e deveriam ser levantadas, para serem respondidas abertamente. Como, por exemplo, as que demandam reposicionamento em aplicações distorcidas dos conceitos de “crime” e de “assassinato”, no passado e no hoje, visando também o futuro.

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Notas:

1- No caso, observar do artigo 122 até o 125 dessa Constituição.

2- Sugiro a leitura do seguinte texto do historiador Jones Manoel: Contra o revisionismo histórico: o pacto de não agressão germano-soviético e a segunda guerra mundial: https://blogdaboitempo.com.br/2019/10/25/contra-o-revisionismo-historico-o-pacto-de-nao-agressao-germano-sovietico-e-a-segunda-guerra-mundial/

3- Sugiro a leitura do seguinte texto dos sociólogos estadunidenses Aldon Morris e Vilna Treitler: O Estado Racial da União: compreendendo raça e desigualdade racial nos Estados Unidos da América: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792019000100015

*Lucio Massafferri Salles é filósofo, psicólogo e jornalista. Doutor e mestre em filosofia (UFRJ), especialista em psicanálise (USU), concluiu seu pós-doutorado em filosofia contemporânea pela UERJ. Criador do Portal Fio do Tempo (You Tube)

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