O sicofanta e a cultura do cancelamento
A cultura do cancelamento é a cultura da indiferença, se não me importo com o outro posso sem dor destruir sua reputação.
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Vamos falar sobre os sicofantas do tempo presente. Pra quem não sabe, o sicofanta é um delator, um ser que circula pelas redes procurando informações sobre pessoas a fim de difamá-las. Sua abjeção é completa e não há esforço suficiente para suprimir essa praga.
A revolta das pedras é um termo cunhado pelos palestinos para denunciar a violência desigual das tropas invasoras israelenses. Não deu certo. Mas aqui entre nós, raqueadas as terminologias, a exibição pública das pedras resulta num evento moral sem precedentes.
Como entender a disposição de um sujeito em julgar e condenar outro que nem conhece de tal sorte que o anule, o cancele, numa exposição moral que danifica o outro até a raiz de sua intimidade?
Claro que isso acontece porque o acusador pode. Não há nada que o impeça. Só, talvez, sua consciência. Mas e se a consciência foi removida por um dispositivo que autorize que ele pode?
Poder, ele pode, porque tem o poder. E o poder autoriza a fragmentação do outro em pedaços até seu completo apagamento da existência coletiva falsificada das redes.
O poder arranca tudo das pessoas. Tira sua autoestima, tira sua capacidade de compreender, tira enfim toda sua humanidade e o transforma numa bola polida, lustrosa, que reflete apenas o vazio interior. É assim que aquele que usa o poder contra seu semelhante se distancia dele, a tal ponto que de si tudo possa ser extraído.
É bem fácil deixar o poder entrar. Ele vem com um convite inocente, vem como um direito longamente aguardado e como justiça social finalmente investida. O poder é um jovem carente. Precisa ser acolhido e levado pra casa. Precisa ser cultivado com as boas intenções. Precisa nos convencer que estamos certos e que somos melhores do que somos de fato. O poder nos enche de orgulho íntimo e de uma vontade de poder crescente.
O poder também nos deixa atentos na vigilância, pois o poder é o sistema em nós e passamos a ocupar o lugar do guarda de trânsito. Vigiando os erros alheios, as pequenas distrações e os tropeços, catalogando os infortúnios do momento, os deslizes fortuitos, os caminhos fora do trilho que traçamos diante de nós. O poder nos transforma em senhores do poder. Nos torna gerente e nos gerencia, ao mesmo tempo.
É o poder que nos aconselha a julgar, que nos diz da verdade de nosso lugar especial; é o poder que nos coloca no lugar de deus, da ciência, da verdade.
O poder é anônimo? É virtual? É singular?
A cultura do bem estar, do dever cumprido, das exigências finas do cotidiano, eis a forma com que manifestamos nosso poder, eu posso, eu faço porque posso. A essa cultura devotamos nossa existência, ao nosso bem estar.
Albert Camus dizia que não se decide sobre a verdade de um pensamento conforme seja ele de esquerda ou de direita. Era sua forma ética de lidar com o outro, com o pensamento do outro. Mas Camus é de outro tempo, em que o respeito falava mais alto do que os cancelamentos. Mas Camus também é o filósofo do absurdo, que ele atribuía ao silêncio do mundo. Se àquela época cada um carregava sua própria pedra morro acima, hoje a pedra é coletiva e o seu peso, leve, diluído em infinitas categorias do poder pessoal e transferível, provisório e fugaz. Por isso a necessidade de uso rápido, instantâneo, traduzido pelo julgamento irrefletido que executa o outro sem pestanejar. Afinal, podem fazer o mesmo com a gente e precisamos de ligeireza para nos colocar do lado daqueles que empurram juntos a pedra acima da colina pontiaguda.
O entusiasmo com que rolamos essa pedra rumo ao topo não me surpreende. Queremos a distinção, queremos em meio à multidão o destaque merecido, o grito uníssono dos eleitos.
É essa pedra gigantesca que queremos atirar aos condenados, carregada em muitas mãos que tornam a nossa dispensável, mas sem a qual estaremos fora da história, invisíveis utilitaristas do poder. É um sentimento grandioso a anomia do poder, como se pudéssemos qualquer coisa e continuaríamos imunes à crítica, à condenação, ao expurgo. Ao condenar outrem ao espetáculo da negação, nos redimimos diante de nosso senhor, esse íntimo fantoche que nos habita e com o qual gozamos.
É a ética da violência que abraçamos como única forma política de um tempo de indiferença. Executar o outro nos parece tão digno quanto violentar uma flor. Pois não existe mais valor que possamos partilhar, internalizar, exceto o desprezo pelo homem e pelo mundo.
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A cultura do cancelamento é a cultura da indiferença, se não me importo com o outro posso sem dor destruir sua reputação.
Rubem Alves dizia que “houve um tempo em que o nosso poder perante a morte era muito pequeno. E por isso os homens e mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver”. Hoje ganhamos um grande poder que nos leucemiza e rapta nossa humanidade, portanto nossa sabedoria, pois esse poder só faz sentido se usado contra o outro, principalmente contra aquele que não pode se defender.
Esse poder nos torna covardes e pequenos, como são pequenos os tiranos. É uma celebração do sacrifício, de emulação ao destruir as reputações alheias sem um sentimento de comiseração, imunes ainda a qualquer tipo de consequência futura. Come-se o que não se mata, apenas para assistir ao espetáculo da putrefação.
É esse louvor ao que é pútrido e degenerado que faz do poder um ato de mesquinharias e de pequenez. O sacrifício do outro, sua queda diante dos gestos indiferentes do poder que executa, que julga, que desfaz, torna a vida virtual um espelho pungente da vida íntima dos executores.
E esse se tornou o mote da política. Vargas Llosa já disse que “toda tragédia da política começou no dia em que se decidiu que era lícito matar um homem em nome de uma ideia”; pois hoje já não é mais preciso matar: pode-se executar sua índole junto com nossa moralidade.
Então esse não é um poder que viaja completamente incógnito. Tem uma identidade, uma vontade de se exercitar, um telos. E nessa viagem distante carrega consigo seus adereços, restos humanos de seus portadores, como um mito, como uma reencenação que se disputa em todo canto. O teatro político desse tempo e nessas condições é árido de amor. Uma interferência destrutiva e impiedosa.
A inocência desses utilitaristas é pungente. Tornam-se peregrinos da palavra, do poder, da ordem. E lá vão eles percorrendo os caminhos virtuais da terra, com suas bandeirolas, seus chapéus de bufões, seus gritinhos contidos de alegria e virtude. E já não são mais filhos de ninguém, nem pais e nem mães. São órfãos de sua própria humanidade perdida. Pequenos órfãos, grotescos, carregados de injúrias. Indigentes de toga.
Só nos resta o martírio. E para saudar esse martírio a política do cancelamento é sua relíquia, o vestígio sagrado do homo sacer, daquele que por agir contra sua humanidade pode ser morto sem que seu assassino incorra em pena. A isso fomos condenados nesse tempo. A ser o alvo da bala perdida.
Podemos afirmar que a cultura do cancelamento desvenda o clima intelectual e moral do nosso tempo. A verdade está sempre em outro lugar.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e escritor