Em determinado ponto do sofrimento universal no particular de Henry, ocorre um momento de perversa e forçada exibição de amor: no dia 12 de fevereiro, quando Jairinho entrou em casa, Henry saiu correndo do sofá, pulou em seu colo e o abraçou. Em uma tristeza angustiante, desesperadas crianças mostram apenas que não querem mais tortura e por isso mendigam uma fantasia de coração
O assassinato da criança Henry Borel, com indícios de sofrimento anterior causado pelo vereador Jairinho, não é um caso isolado de tortura contra crianças. Por desgraça, não foi nem será o último caso em que aparecem dor e morte realizadas por um padrasto. Em outros crimes contra enteados ocorre até mesmo estupro. Mas neste caso em particular, diante de todos sinais anunciados de uma perversão criminosa, nos surpreendemos com a falta de ação da mãe.
A babá da criança foi denunciadora de todos antecedentes do torturador Jairinho, cujo nome soa como uma homenagem a seu ídolo na presidência. Há ligações pelo celular, denúncias dos maus-tratos em tempo real, como se diz. Na imprensa se fala que existe chamada de vídeo com o filho, em que a criança pergunta: “Mãe, eu te atrapalho? O tio disse que eu te atrapalho”. Monique, a mãe, teria respondido que “não, de forma alguma”. O testemunho de uma cabeleireira, presente à chamada do celular, relata que Henry chorava e pedia que a mãe voltasse para casa. E que a criança teria dito que “o tio bateu” ou “o tio brigou”. O tio era Jairinho. Em seguida, a babá Thayná Ferreira filmou o menino andando pelo corredor, mostrando que ele mancava.
Breve parêntese. O criminoso Jairinho é bolsonarista, vereador eleito com apoio evangélico e com o lema da defesa da família. Mais um defensor da moral familiar. No ano passado, fez questão de ressaltar na campanha eleitoral seu alinhamento com o presidente Bolsonaro. Fechemos o parêntese.
Hoje, à distância podemos ver e rever e ressentir que a partir de suas queixas a criança teve o aumento de torturas, pois era pra ficar de bico calado e jamais falar que havia sido espancada. Onde já se viu torturado que anuncia a sua tortura diante de câmeras? Se assim age, vai sofrer castigo mais severo, mortal, para não repetir o erro.
Mas nesse triste caso da criança Henry vemos e revemos o universal na sua dor particular. A saber, a tortura que sofria no quarto com o som nas alturas. Isso é repetição do que houve com presos políticos. Prisioneiros na ditadura contam que por vezes eram torturados com o rádio em volume alto. Mas que coincidência com a criança! Jairinho e Henry ficavam trancados no quarto por alguns minutos com a TV ligada com um volume alto. Quando a criança saía, se queixava baixinho de ter levado chutes, e por isso sentia dores no joelho e na cabeça.
Em outro ponto do sofrimento universal no particular de Henry, ocorre este momento de perversa, calculada e forçada exibição de amor, de afeto, de carinho: a empregada conta que no dia 12 de fevereiro, quando Jairinho entrou no apartamento, Henry saiu correndo do sofá, pulou em seu colo e o abraçou. E tão raro e inexplicável foi o comportamento, que essa foi a primeira vez em que a babá viu o menino agir dessa maneira, e por isso estranhou semelhante prova de amor. O que dizer diante disso? Olhem, por exemplo, de um ponto de vista estrito da história da ditadura, os depoimentos de “arrependidos” da militância contra o regime, que depois da tortura apareciam na televisão a contar o amor à pátria. É o mesmo pulo de afeto da criança assim domesticada para agir. Mas de um ponto de vista privado, das relações entre crianças e padrastos ou madrastas, quantas vezes não presenciamos manifestações declaradas de afeto, de amor filial, maternal ou paternal? Em uma tristeza angustiante, desesperadas crianças mostram apenas que não querem mais tortura e por isso mendigam uma fantasia de coração. E não se deve crer, amigo leitor, no amor que se declara em público. Isso é exibicionismo, exibição vazia que cai na primeira tempestade.
Então agora chegamos ao ponto. Por que a mãe não agiu antes do assassinato do filho? Entendam, por favor. Não é que ela passou indiferente, ou mesmo não tenha reclamado, brigado com o torturador do seu filho. Não. Da ausência dessas manifestações de…. desagrado, ela não deve ser culpada. Mas o desejável se faz em outro estágio. A gente se pergunta e gostaria de perguntar à mãe da criança torturada e morta: por que ela continuou a viver com o criminoso? Em que ponto da sua vida esqueceu a própria dignidade? Ou será que, talvez, tenha feito de conta que não via o que era sabido e insinuado pela criança, na medida dos reclamos de pavor, das denúncia da dor do filho de quatro anos? Por outro lado, que métodos, que meios e safadezas de conforto e grana, o vereador usou para fechar a boca da mulher? Ou mesmo que terror de milícia, pois ele é do meio de milicianos e bolsonaristas, que terror abjeto foi usado? Não importa, para o terror e seduções deveria falar mais alto a defesa da vida do filho.
Sei que falar é fácil. E nesse ponto lembro as mulheres do povo que às vezes sabem que o marido abusa da filha e se calam, porque não têm outra saída de sobrevivência. Pois como iriam comer se denunciassem o estuprador? No caso delas, o estupro vale arroz e feijão. Ou a morte. Então sabemos que os imperativos éticos não são só um motivo para a tragedia grega. Eles são reais, duros e difíceis todos os dias, agora mesmo enquanto escrevo.
Por enquanto, de certo e indubitável temos estes resultados no corpo da vítima de quatro anos:
♦ múltiplos hematomas no abdômen e nos membros superiores;
♦ infiltração hemorrágica na região frontal do crânio, na região parietal direita e occipital, ou seja, na parte da frente, lateral e posterior da cabeça;
♦ edemas no encéfalo;
♦ grande quantidade de sangue no abdome;
♦ contusão no rim à direita;
♦ trauma com contusão pulmonar;
♦ laceração hepática (no fígado);
♦ e hemorragia retroperitoneal.
E este final: o documento informa que a causa da morte foi hemorragia interna, laceração hepática causada por uma ação contundente. O perito criminal complementa: “Há outras lesões, fígado grave, no rim, pulmão, sangue no abdômen, então, não foi só na cabeça. A morte dessa criança veio por uma série de lesões universais que provocaram a morte.”
Mas as lesões universais são mais que os espancamentos perversos em Henry Sobel. Essas lesões vêm de longe, são históricas como a tortura em presos, um crime continuado sem punição até hoje no Brasil.
*Urariano Mota é Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”
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