Enfrentando medo de retaliações e a indiferença das autoridades, atrizes pornô se unem para denunciar ator e diretor premiado por abusos sexuais
Beatriz Drague Ramos, Ponte
Atenção: a reportagem contém descrição e relatos de violência sexual
Já era madrugada quando Ellen Jeniffer de Souza foi dormir após mais um dia de trabalho. A jovem de 24 anos é atriz em filmes pornôs e em quatro anos trabalhando na área passou a confiar nas equipes das produções. Essa segurança, no entanto, foi por água abaixo em 23 de março deste ano. Ellen afirma que foi estuprada pelo ator Wagner Roberto de Carvalho, 46 anos, o Vagninho. Os dois foram contratados pela produtora Fetichistas.
A atriz registrou boletim de ocorrência contra o ator na 6ª Delegacia de Defesa da Mulher, em Santo Amaro, bairro da zona sul de São Paulo. No documento, Ellen relatou que foi à Brasília pela produtora no dia 21 de março, onde ficaria por dois dias e depois retornaria para São Paulo. O boletim aponta a ocorrência de estupro consumado.
No primeiro dia de gravações, ocorridas na casa do dono da produtora, tudo correu bem, exceto pelo colega, que a assediava durante as gravações e fora delas, perguntando se a atriz queria ter relações sexuais com ele fora do trabalho, além de tocar em seu corpo sem autorização. Segundo Ellen, o assédio foi percebido por diversos profissionais que estavam trabalhando no set desde as primeiras cenas, até o dia seguinte, 22 de março, uma segunda-feira.
Mesmo assim, Ellen teve que dormir com Wagner, porque só havia uma cama disponível para os dois. Na manhã do dia 23 de março o ator a penetrou enquanto dormia. “Na mesma hora pulei da cama chorando e gritando. Vale a pena frisar que eu não fui a primeira atriz com quem ele fez isso”, disse a atriz em entrevista à Ponte.
A atriz diz que a produtora não parece ter se preocupado com a violência. “No mesmo dia eu voltei imediatamente pra SP e, apesar do apoio de muitas pessoas, ouvi algumas me culpando pelo que aconteceu, quis morrer. Dias depois, o produtor me ligou e o único interesse dele era eu assinar os papéis da divulgação de imagem do filme. Ele disse que não tem nada a ver com isso e que ele pode usar sim o vídeo, mesmo eu não tendo assinado nada e que a responsabilidade do que aconteceu não é dele. Ele não está nem aí, não se importa.”
Na delegacia, a atriz diz que não se sentiu “nem um pouco acolhida”, e nem no Hospital Pérola Byington, onde foi fazer o exame de corpo de delito. “O único apoio que tive foi dos meus colegas de trabalho e da minha família. Na delegacia me tratavam como se eu fosse a acusada, inclusive a escrivã que estava colhendo meu depoimento questionou o porquê fiquei do lado dele. Por várias vezes me perguntaram se era consentido ou não. No hospital tomei várias injeções e remédios e fiquei sem conseguir me alimentar e nem dormir por dias. Eu fiquei ainda pior quando ouvi que eu mereci aquilo e que eu pedi por isso.”
À Ponte, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) disse que o caso de Ellen foi enviado para Brasília, local do crime. A reportagem perguntou se poderia entrevistar o delegado Wellington de Freitas mas não houve resposta. A SSP também não informou se já houve a formalização de um inquérito policial.
Além do boletim de ocorrência e exame de corpo de delito, Ellen expôs o ator em um grupo de trabalho do WhatsApp de atores, atrizes e produtores do universo pornô brasileiro. No mesmo grupo, Vagninho disse ter testemunhas que provam o contrário e que tudo foi um “mal entendido”.
Apesar de negar o crime no grupo WhatsApp com outros profissionais, o ator assumiu o que fez para a atriz no dia do ocorrido e ainda tentou reverter a situação pedindo desculpas.
Semanas depois, Ellen passa por traumas decorrentes do estupro e o teme ficar desempregada após tornar a denúncia pública. “Depois de chegar da delegacia tomei um banho de 3 horas com muito nojo. Demorei para acreditar que isso estava acontecendo comigo e fico pensando em como será a minha vida daqui para frente. Apesar de não estar 100% ainda e estar fazendo acompanhamento psicológico, preciso trabalhar. Tenho aluguel e contas e ajudo a minha mãe”.
A jovem, que entrou no mercado pornográfico por acaso, ao acompanhar uma amiga em uma entrevista, agora se pergunta frequentemente: “Por que ele fez isso comigo? Nenhuma mulher merece passar por isso. O que mais dói além do abuso é a cultura do estrupo. Toda vez que eu escuto que eu pedi aquilo entro em desespero, achei que o meu ‘não’ tinha sido claro. Estou sofrendo bastante com essa situação, psicologicamente e principalmente financeiramente. Na visão das pessoas, estou tentando acabar com a vida dele”.
Apesar do trauma vivido, Ellen não pensa em sair da profissão. “Quando isso tinha acabado de acontecer pensei muito em não gravar mais porque foi algo muito traumático. Mas seguindo minha psicóloga e a minha produtora, o que aconteceu não diz respeito a mim como atriz e sim ao ator que abusou de mim. Ele, sim, tem problemas, pessoas como ele têm que estar fora da indústria e serem presos.”
Procurada pela Ponte, a produtora Fetichistas, disse que o filme não foi divulgado. “Até que o inquérito referente às acusações da Ellen seja concluído, assim como qualquer outro inquérito, ligado a esse caso, não trabalharemos mais com nenhum dos atores”, comentou a empresa.
O representante da produtora, que não quis se identificar, disse que já avisou a própria Ellen que as imagens não serão usadas. Ele também afirmou que irá colaborar com as investigações policiais e judiciais. “Principalmente pelo que a Sra Ellen alega que teríamos dito, que ‘utilizaremos as imagens de qualquer forma’, o que é mentira.”
A atitude de Ellen reverberou entre muitas atrizes do meio, que fizeram um novo grupo no WhatsApp e se uniram para expor casos de abusos sexuais e psicológicos sofridos no setor pornográfico. Assim como Ellen, outras quatro atrizes conversaram com a Ponte, incluindo Barbara Alves, de 23 anos, que também abriu um BO contra Vagninho.
Segundo Barbara, o ator abusou sexualmente dela cinco meses antes de eles realizarem um trabalho juntos pela produtora Cabine Erótica. “Tive traumas e passo na psicóloga até hoje, o único que me violentou foi ele. E ele não foi punido”, afirmou a jovem, que não quis entrar em maiores detalhes.
À Ponte Vagninho disse, via Whatsapp que não autorizava “nenhum tipo de publicação” sobre as denúncias. “Tudo será esclarecido assim que oficialmente for intimado, estou em compromisso com a verdade e o maior interessado em trazer as verdades as claras sou eu!!! É um absurdo além de mentirosa essa acusação!”, escreveu.
Outro alvo de denúncias: diretor da HardBrazil
Ameaças e abusos sexuais e psicológicos estão entre as violências relatadas por atrizes que trabalharam com Fábio Silva, o Binho, diretor e ator da produtora HardBrazil que atua na área há cerca de 20 anos. Casado com a produtora Lidy Silva, os dois trabalham juntos na empresa de vídeos pornográficos.
Ágatha Ludovino, de 21 anos, é uma das atrizes que participou de um dos vídeos de Fábio. Ela conta que era nova na área e seu primeiro contato com o diretor foi nas redes sociais, quando procurava trabalho e logo foi contratada. “Não conhecia nada do meio, me pagaram R$ 1.500 mais o Uber para a gravação do filme Meu novo vizinho e o Fábio me pagou mais R$ 200 por duas cenas a mais feitas com ele. Isso me cheirou ruim, mas quando queremos começar algo, você não quer reclamar ou parecer chata.”
Depois do primeiro trabalho, Ágatha passou a testemunhar abusos de Fábio a outras atrizes. “Eu trabalhei para a HardBrazil por um tempo. No meu caso, ele me abusou sexualmente duas vezes, uma delas fora de uma gravação, durante uma viagem a trabalho em Bertioga, em julho de 2019. Também já presenciei ele ameaçando abusar de uma amiga.”
No ano passado Ágatha decidiu expor o diretor na internet com um vídeo, mas foi ameaçada por um amigo do casal e retirou o conteúdo do ar. “Tinha um vídeo no YouTube meu com essa colega contando tudo, eu exclui o vídeo esse ano devido aos ataques da Lidy, esposa do Fábio, sempre tentando distorcer tudo incansavelmente. Mas me arrependo de ter excluído.”
Logo após a publicação no YouTube, as acusações circularam no meio, mas Ágatha acabou isolada. “A pior coisa de tudo foi o pessoal do pornô me tratando como louca, mesmo eu tendo provas. Perdi incontáveis trabalhos por expor ele. Fui rechaçada, e isso eu acho que foi o que mais doeu, as pessoas duvidarem de mim e apoiarem ele.”
Em 2019 Fábio foi ganhador do troféu de melhor diretor por La casa de Raquel no Prêmio Sexy Hot, principal premiação do pornô nacional. “Vi o canal que trabalhamos dando um prêmio para ele como melhor diretor no mesmo ano que eu fiz as acusações e ninguém nem me perguntou nada sobre”, lamenta. A Ponte procurou Binho por telefone e a HardBrazil por e-mail e por rede social. Em mensagem o diretor afirmou que “nenhum fato é verdadeiro” e que “não autoriza qualquer publicação com seu nome ou o da empresa“.
Gordofobia e dificuldades
Além dos abusos, Ágatha Ludovino relata ter sofrido com outro tipo de ataques psicológicos. Xingamentos e recusas de trabalho por conta da gordofobia fizeram parte da trajetória dela dentro da pornografia desde que começou na área, com 19 anos. “O Fábio mesmo já me chamou de ‘baleia’, disse que eu nunca conseguiria nada na vida, que eu seria uma ninguém. Isso no dia que ele tentou abusar da minha amiga”.
Apesar dos ataques, ela ainda persiste. “E eu guardei essas palavras, por isso hoje tento ser alguém com caráter, que é o mais importante. Já ouvi de diretores para clarear as partes escuras da minha coxa pois eram feias, que minha ‘banha’ estava molenga, que eu era feia sorrindo.”
A atriz conta que os profissionais da área usam como desculpa as poucas vendas de conteúdo com mulheres gordas. “Mesmo percebendo que eu vendo sim e tenho público, a desculpa deles é que gordas não vendem. Eu praticamente tenho que implorar para conseguir uma cena, estar na página do site ou marca e mandar material, sempre.”
Outra desculpa utilizada pelas produtoras, segundo ela, é a falta de espaço nas agendas. “A grande maioria das empresas não diz diretamente na minha cara que não me querem pelo peso, eles apenas dizem que a programação de gravações já está lotada. Me impediram de gravar para marcas das quais eu era fã por ser gorda.”
E questiona: “Por mais sucesso e público que eu alcance, nunca vou aparecer, porque será? Será que tenho alguma doença contagiosa?”.
A atriz também diz que falta cuidado com a saúde das atrizes no meio. “Falta mais apoio a consultas ginecológicas, fazemos de 30 em 30 dias testes para HIV, hepatites e sífilis, mas não fazemos testes de urina e fúngicos regulares, assim como também não para gonorreia e clamídia, que estão crescendo muito no meio pornô”, critica.
Ágatha relata que agora trabalha com produtoras que aceitam seu corpo. “Hoje trabalho levando voz a mulheres com corpos reais, espero ver cada vez mais pessoas fora dos padrões. Sinto ainda muita falta de espaço para gordas, negras e mestiças, mas está evoluindo”.
Segundo ela, o medo de denunciar abusadores é comum no meio, o que aconteceu no caso de Fábio também. “Depois do vídeo recebi vários relatos de outras meninas, mas nenhuma quer denunciar, eles nos forçam a nos calarmos. Ou ficamos quietas ou não temos trabalho.”
“Não fui a primeira e não vou ser a última”
Assim como Ágatha, a atriz Evelyn Carolina, de 23 anos, também diz ter sofrido abuso sexual de Fábio, em seu primeiro trabalho para a HardBrazil em 2018. “Sofri abuso do Fábio antes de uma gravação. Estava me maquiando quando me abusou, não havia cenas combinadas entre nós. Na hora o ator que iria gravar comigo entrou no banheiro e viu tudo. Na época não fiz denúncia pois ele me ligava ameaçando acabar com minha carreira”.
Evelyn conta que pediu ajuda e contou sobre a situação para alguns colegas de trabalho, mas mesmo assim não teve forças para fazer um boletim de ocorrência. “Fiquei com medo, pois querendo ou não ele é um cara bastante nomeado no meio no pornô e eu era apenas uma novata tentando ganhar a vida”, diz.
O medo foi maior, e Evelyn recordou do trauma de outro abuso. “Fiquei desesperada por estar passando toda essa situação novamente, afinal quando tinha 15 anos já passei por um abuso sexual e retornar nessa mesma situação me deixou muito mal psicológicamente”.
Ela relata que acusações contra o diretor Fábio Silva são comuns no meio pornô. “No caso do Fábio, eu não fui a primeira e infelizmente não vou ser a última. Muitos donos das produtoras e atores sabem dos abusos dele e fazem vista grossa, por esse motivo muitas meninas ficam quietas e com medo de denunciar”, afirma.
“Muita gente me apoiava em palavras, mas passava uns dias e os mesmos que me apoiaram estavam na produtora do Fábio gravando novamente, isso fez eu me sentir mais insegura em relação a quem desabafar e acabei deixando passar para conseguir ter paz. Militam na internet mas quando acontece com um ‘amigo de trabalho’ eles simplesmente passam pano e dão prêmio para um abusador”, observa Evelyn.
Depois do ocorrido a jovem se afastou do universo dos filmes pornográficos e trabalha em sites de webcam. “Hoje em dia me afastei bastante do pornô, faço meus próprios conteúdos, hoje só fecho trabalho com produtoras que realmente valorizem meu trabalho e respeitem os meus limites, caso contrário prefiro não gravar”.
Apesar de passar por tantos abusos e ameaças, Evelyn acredita que é preciso união para denunciar o abuso no universo do audiovisual pornográfico. “Acho importante todas as meninas que sofreram abuso se juntarem, não importa se teve força ou não para denunciar na época do abuso, agora é a hora de abrir a boca e soltar os cachorros”.
Para ela, independentemente da profissão, não existe espaço para esse tipo de abuso seguir. “Não devemos nos calar, nos coagir e nem deixar nos manipular, somos mulheres como todas as outras e merecemos respeito. Pornô não é cenário de abuso sexual, o sexo é livre desde que haja consentimento de ambos, trabalho é trabalho, e ‘não’ continua sendo ‘não’”.
Evelyn ainda manda um recado para as outras jovens que passaram por situações parecidas. “Não se sinta culpada, não deixe que alguém faça você duvidar do seu valor, vocês não estão sozinhas”.
Procurada pela reportagem, o Grupo Playboy do Brasil, detentor da marca Sexy Hot, disse que repudia qualquer ação que exponha imagens de ator e/ou atriz que tenha a conotação de abuso sexual. “Bem como material erótico e pornográfico com cenas violência, assédio e qualquer tipo de comportamento que esteja fora dos padrões lícitos dos filmes exibidos pelos canais do Grupo”.
Além disso, a empresa apontou que mantém um canal aberto com toda a indústria, desde atrizes e atores até produtores fora do ambiente de gravação. Sobre o fato de ter declinado do filme em questão, apontou que “isso é a prática do canal quando a produção não condiz com as nossas políticas”.
Também reiterou que, por ser um filme licenciado, o Sexy Hot exige um padrão de qualidade e ética exigido no contrato. “As produtoras que trabalham para o canal são responsáveis por manter as nossas policies, que incluem todas as questões de legalidade e vão além, visando sempre o bem estar e o cuidado com toda a equipe”.
“Ele não passa cópia dos contratos para ninguém”
A história de abusos se repetiu em 7 de fevereiro de 2020 com a atriz Teh Angel, de 27 anos. A jovem diz que foi forçada por Fábio a fazer cenas que estavam fora do combinado para o filme Carona com o Tedy. “Ele [Fábio] me chamou para fazer uma gravação, disse que seria coisa rápida, cheguei lá, ele se ofereceu para fazer meu perfil no site XVideos, disse que ia me ajudar com a conta, que seria bom pra mim. Assim ele acabou gravando mais conteúdos do que o combinado, e pagando o cachê por apenas uma cena”.
Ela lembra que ficou incomodada e sem reação até o final das gravações. “Acabou a gravação, ele veio falar comigo e eu não respondi mais nada, aí ele depositou meu cachê e ficou tentando puxar assunto, mas eu estava sem reação, aí ele depositou mais um valor e falou: ‘acabei de mandar mais um dinheiro para ver se você fica feliz’”.
A atriz conta que trabalhou em uma única gravação na HardBrazil, e que os produtores não entregaram uma cópia do contrato assinado pelas atrizes. “Ele não passa cópia dos contratos para ninguém, mas eu assinei uma cena, não tinha acordado mais cenas e ele fez muito mais”.
Assim como as demais atrizes, Teh Angel não denunciou Fábio por medo. “Não denunciei pois outros colegas de trabalho já haviam dito que ele fazia isso mesmo mas que nunca dava em nada. Eu sou bem mais desconfiada hoje em dia, principalmente com ele e com quem anda com ele. Não é normal esses abusos. Resolvi expor por incentivo da Amanda, que acabou abrindo o boletim de ocorrência contra o ator [Vagninho]”.
Ciclo do abuso e a responsabilização da vítima
Embora pouco publicizados, os relatos de violência sexual no universo pornográfico brasileiro fazem parte de um cotidiano vivido por muitas mulheres. Dados divulgados em 2020 pelo 14° Anuário de Segurança Pública revelam que a cada 8 minutos uma mulher é estuprada no Brasil.
Os indices compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública também revelam que cerca de 85,7% das vítimas de estupro eram mulheres. Em 84,1% dos casos, o criminoso era conhecido da vítima.
Apesar dos números altos, esse crime ainda é pouco solucionado e denunciado, como explicou a presidente da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP), Cláudia Luna, que, desde 1997, atua na garantia e defesa dos direitos das mulheres.
Para a advogada, os casos de estupro são subnotificados, uma vez que as vítimas têm medo de serem desacreditadas em suas palavras pela polícia e até mesmo pelo sistema de justiça. “Há pouca punição porque há poucas denúncias destes crimes, justamente porque elas, para além do medo e do trauma causado pelo estupro, temem o sistema que ao invés de muitas vezes acolhê-las, reproduz uma outra violência: a violência da desacreditação e do julgamento da moral da vítima”.
Apesar das dificuldades colocadas pelo próprio Estado, Claudia chama a atenção para a necessidade da denúncia em delegacias, como nos casos levantados pela reportagem. “Mais uma vez o fato das vítimas não reportarem às autoridades as violências sexuais que sofreram pode resultar na não punição dos estupradores, dos agressores e consequentemente trazer baixos números de punição”.
Ela observa que tudo isso acaba resultando num ciclo sistêmico de impunidade. “Se a vítima não denunciou a violência sexual às autoridades, consequentemente não haverá denúncia pelo Ministério Público e no final também não haverá sentença do Judiciário e a consequente punição do agressor”.
No olhar da representante da Comissão da Mulher da OAB, é preciso considerar a questão histórica. “Desde o período da colonização no Brasil o estupro é algo naturalizado”, ressalta. “A cultura do estupro precisa ser combatida pela cultura da prevenção e da desconstrução do machismo, pelo respeito incondicional à vida das mulheres e sobretudo a sua dignidade. O machismo estrutural repercute no machismo institucional”.
O consumo do pornô
Em um contexto histórico de machismo estrutural, não é a toa que a produção de conteúdos pornográficos é mais consumida pelos homens. Em 2018 um estudo produzido pelo Quantas Pesquisas e Estudos de Mercado a pedido do canal a cabo Sexy Hot revelou que 22 milhões de pessoas assumem assistir pornografia, sendo 76% homens e 24% mulheres. Esse cenário parece estar mudando, o Brasil é o segundo país com a maior proporção de acessos de mulheres no Pornhub, elas representam 39% dos visitantes, de acordo com o relatório divulgado pelo próprio site, em 2019.
A pandemia de coronavírus e o distanciamento social fez a audiência do canal fechado, gerido pelo Grupo Playboy do Brasil, crescer 31% no período de 14 a 19 de março de 2020, se comparado aos dias 7 a 12 do mesmo mês.
O Porn Hub, um dos maiores sites pornôs do mundo teve, apenas em 2019, mais de 42 bilhões de visitas, o equivalente a 115 milhões por dia, gerando milhões de dólares em publicidade e assinaturas.
O site indica atualmente que são mais de 100 milhões de visitas diárias e mais de 36 bilhões de visitas por ano, além de mais de 125 milhões de visitas diárias à Rede Pornhub , que inclui sites como YouPorn e Redtube. Dos 20 milhões de usuários registrados do Pornhub, 74% são homens e 26% são mulheres.
Apesar dos altos números revelados pelo site em 2020, uma petição exigiu o fechamento do portal. A empresa foi acusada de disponibilizar vídeos de estupros e abusos sexuais, bem como de não verificar a idade e consentimento das pessoas filmadas. As denúncias foram divulgadas pelo jornal americano The New York Times e provocaram uma investigação que levou a remoção de diversos vídeos e suspendeu todos os envios de vídeos por membros não verificados.
Regulamentação e estigmas
A regulamentação dos filmes pornográficos é a mesma que rege a indústria de filmes no Brasil. As obras são registradas na Ancine (Agência Nacional do Cinema) e recolhem o Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) para qualquer filme exibido em TV aberta ou fechada, conforme explica Roy di Paul, fundador da produtora Xplastic.
Por isso as regras deveriam ser as mesmas, incluindo diretrizes de comportamentos no set e respeito por todos os profissionais. “O problema é que em alguns casos o básico não vem sendo respeitado”, diz Roy.
Os produtores normalmente se preocupam em seguir essas regras porque são cobrados por isso pelos seus clientes. “Como o SexyHot, por exemplo, que é o maior comprador da indústria pornô hoje”, esclarece Roy. “As produções amadoras ou que serão comercializadas exclusivamente em plataformas como XVideos têm muito menos controle. O elenco troca cenas, a preocupação com exames de DSTs é menor e acaba ficando um clima de improviso, que é terreno fértil para confusões”, elucida.
Para o sociólogo e professor Jorge Leite Júnior, do departamento de Sociologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), os problemas de abusos sexuais na indústria pornô ocorrem por conta da estigmatização que o setor sofre e por isso acredita que é preciso romper com o preconceito com esse tipo de produção. “Isso está ligado diretamente à vulnerabilidade dessas pessoas. No topo da cadeia da vulnerabilidade, estão as atrizes pornôs.”
Jorge avalia que as denúncias são extremamente importantes, no entanto ele acredita que a efetividade da punição dos abusadores tende a ser baixa. “Quanto mais desregulamentado e estigmatizado é um campo, menos chance essas denúncias têm de conseguir uma resolução efetiva concreta”, considera.
“Uberização” do pornô
A diferença salarial entre homens e mulheres também é uma questão que os protagonistas dos filmes e vídeos pornôs precisam lidar. Atores do sexo masculino recebem, em média, R$ 500 por hora, enquanto o salário das mulheres varia de R$ 2.500 a R$ 3.000 por semana, isso na Casa Brasileirinhas, reality show de uma das maiores produtoras de conteúdo pornográfico do país, de acordo com a atriz Ágatha Ludovino.
Ela conta que as mulheres trabalham em média sete dias por semana. “A menina deve exercer atividades estipuladas nos horários, também tem a live com os assinantes onde ela deve entreter e cumprir os pedidos. É algo bem exaustivo, acordar cedo, atividades da manhã, na piscina, no banho, gravação de cenas, isso acaba saindo de graça para eles”.
Já em produtoras menores, como é o caso da Xplastic, por exemplo, os pagamentos variam entre R$ 600 e R$ 1.200 por cena para mulheres e entre R$ 400 e R$ 900 para homens. “Os valores variam de acordo com o orçamento do filme. As produções sob encomenda do canal SexyHot, por exemplo, têm um orçamento maior do que as produções para licenciamento”, conta Roy.
Na visão dele, que começou a trabalhar com a produção de filmes adultos em 1998, houve mudanças no mercado de lá para cá. “Mudou muito neste tempo, e hoje, por motivos que vão desde o desemprego à falta de oportunidades de remuneração razoável, temos visto o número de pessoas iniciando no mercado adulto, tanto em filmes pornográficos como em plataformas como Onlyfans e sites de ‘cam’, crescer muito a cada dia”.
Ele conhece muitas atrizes no meio, inclusive as que fizeram as acusações na reportagem, e notou que o número de reclamações por parte das pessoas novas no mercado vem crescendo. “E sempre relacionada a acordos comerciais onde o elenco fica em desvantagem por não saber como funciona o trabalho nessa industria, e também por chantagem que envolve de dinheiro e sexo”, diz.
Para Roy, a “uberização chegou com força total ao mercado adulto e com muitos atravessadores complicando ainda mais o que não seria simples”.
As histórias que apontam abusos e ameaças psicológicas das atrizes entrevistadas foram compartilhadas anteriormente entre elas mesmas por meio de um grupo de WhatsApp, e Roy se deparou com uma quantidade enorme de relatos parecidos. “No grupo uma atriz relatou ter sido abusada por um ator após uma cena, e na sequência muitas outras começaram a falar sobre outras histórias de abuso envolvendo a indústria pornô”.
Segundo o diretor, todas as histórias são muito parecidas e envolvem principalmente pessoas que estavam entrando no mercado e ainda não sabiam como as coisas funcionavam. “O trabalho no mercado adulto é precarizado e reclamações como as que foram divulgadas no grupo de WhatsApp mostram que essa situação ainda pode ficar pior”.
Como tudo indica que o número de pessoas trabalhando em plataformas de trabalho sexual deve aumentar daqui pra frente, para Roy é uma questão de direitos humanos tornar a questão dos abusos um assunto público, de forma séria. “Sem sensacionalismo, e sempre tendo em vista que, o que se chama de indústria pornô, cada vez mais é um grupo de pessoas trabalhando muito para ganhar cada vez menos”.
Assim como Roy, o pesquisador das relações entre raça, gênero e pornografia, Michel Carvalho, avalia que a indústria pornô vêm sofrendo uma precarização pelas mudanças tecnologicas. “O pornô vem passando por um processo de muita reinvenção a todo tempo, por conta o advento da internet, de algo que a Mariana Baltar, uma pesquisadora, vai chamar de ‘pornificações de si’, ou seja, nós estamos produzindo o tempo inteiro pequenas peças pornográficas, quando mandamos ‘nudes’, quando nos interessamos em um pornô mais caseiro, amador, como é o caso do OnlyFans, ou o próprio Twitter”.
Michel, que é antropólogo, roteirista e doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esclarece que a pornografia vem perdendo espaço “para as redes sociais, como o câmera-privê, e tecnologias pautadas em uma relação entre o ator e o espectador”.
Mesmo com a precarização, a indústria mainstream ainda vai bem financeiramente. Dados publicados pelo colunista do UOL Ricardo Feltrin mostram que, em 2018, a Globosat e a Net, maior operadora do país, faturavam mais de R$ 180 milhões com filmes adultos. A estimativa de 2020 era que esse valor passasse de R$ 300 milhões, um aumento de quase 66% em dois anos. “Esse ‘bolo’ é dividido entre Grupo Globo, Net e Grupo Playboy —parceiro da Globosat”, aponta o jornalista.
Por conta desses motivos, é um mercado que tem feito produções com um orçamento cada vez mais baixo, o que segundo ele, dá uma ideia de “hipercapitalização” nas produções. “Por exemplo, aluga-se um espaço para fazer um filme e aí é interessante que seja feito mais de um filme naquela locação, é feito um cachê para um determinado ator ou atriz com uma espécie de combo ou pacote com esses atores, onde eles vão fazer uma série de filmes por um determinado valor, mas estarão em mais produções, essas produções vão circular mais, o trabalho vai chegar em mais pessoas”.
Para Michel, que estuda há cinco anos o universo pornô brasileiro, os abusos ainda acontecem por conta da visão de que a mulher que trabalha na área “está ali para fazer sexo, para performar sexo diante de uma câmera, de uma equipe, em um set de filmagem. Espera-se que aquela pessoa faça sexo”, diz.
Ele ainda observa que a dinâmica do “são, seguro e consensual”, adotada pela cultura BDSM (sigla para “bondage, dominação, submissão e sadomasoquismo”), deve ser incorporada no setor como um todo. “Essa dinâmica precisa, na minha opinião, se estabelecer também na pornografia contemporânea. É algo muito importante para trazer à tona, quando o consentimento deixa de ser algo partilhado, ele se torna um abuso.”
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