Thiago Duarte saiu de casa para comprar leite e pão, mas acabou baleado no rosto por um PM. O policial afirmou que atirou no jovem porque ele tentou assaltá-lo, mas depois mudou versão. Vídeo mostra outro PM pisoteando jovem rendido
Jeniffer Mendonça, Ponte
A diarista Queli Duarte, 40 anos, tem passado os últimos dias aflita. “Não consegui ver meu filho, o médico disse que ele está intubado, com lesão na coluna e quebrou os ossos do rosto por causa do tiro, correndo risco”, lamenta. Seu filho, Thiago Aparecido Duarte de Souza, 20, foi atingido na boca por um disparo feito pelo cabo da PM Denis Augusto Amista Soares, que estava de folga, na quinta-feira (8/4), no Jardim Arantes, bairro da zona leste da cidade de São Paulo.
Segundo policiais que estiveram no local, o cabo inicialmente disse que havia atirado em Thiago porque ele teria tentado assaltá-lo. Na delegacia, o PM mudou a versão e disse que o jovem negro estaria envolvido em outro crime, o roubo a um funcionário de empresa telefônica. A vítima do roubo disse que não reconheceu Thiago, mas, sim, o amigo dele, Fernando Henrique Andrade da Silva, 27 anos. Durante a prisão, o jovem foi agredido pela PM: um vídeo a que a Ponte teve acesso mostra que um policial pisa em sua cabeça quando ele já estava rendido e deitado no chão.
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Apesar das contradições e da violência policial, a Justiça decidiu prender apenas os dois jovens, sob a acusação de roubo e porte ilegal de arma.
A mãe de Thiago conta que o jovem tem retardo mental e que faz acompanhamento psicológico e psiquiátrico por sofrer de encoprese (defecação sem controle). Na manhã de quinta, seu filho saiu para comprar pão e leite, por volta das 9h30. “Eu até falei para ele que não precisava porque estava ajeitando o almoço, mas ele disse que ia ser rapidinho”, lembra.
Segundo ela, moradores lhe contaram que, na Rua do Carvalho Brasileiro, próximo ao mercado, Thiago encontrou na rua o amigo Fernando Henrique e passaram a conversar enquanto caminhavam. Neste momento, os dois foram abordados pelo PM Denis Soares.
“Esse rapaz estava com uma mochila nas costas e daí o policial disse ‘perdeu, perdeu’ e mandou deitar no chão. O Thiago não entendeu porque ele tem um retardo mental desde pequeno, questionou o policial e levantou a camisa para mostrar que não tinha arma”, conta Queli. “Nessa hora que teve o disparo, porque o policial apontou a arma para ele e ele deve ter tentado afastar como reflexo.”
De acordo com o boletim de ocorrência e depoimentos registrados no 47º DP (São Matheus), o PM Denis declarou, na delegacia, que estava caminhando na rua quando viu um homem com uniforme de empresa de telefonia, que teria lhe dito que dois homens haviam roubado, um pouco antes, seu carro e suas ferramentas. O problema dessa versão é que não explica como a vítima teria identificado que Denis era um policial e pedido ajuda a ele, já que o PM estava à paisana.
Pouco depois, o cabo teria visto Thiago e Fernando caminhando e resolveu abordá-los, identificando-se como policial. Para a Polícia Civil, afirma que “deu ordem de parada aos mesmos, um dos quais fez menção de retirar de sua cintura uma arma de fogo que portava” e que, por isso, deu um disparo, atingindo Thiago no rosto. Ele caiu no chão e o outro rapaz se deitou. O cabo afirma ter encontrado um revólver 38, com numeração raspada, na cintura de Thiago.
Já os policiais militares Enio Santana da Silva e Rodrigo Gomes Rodrigues, que chegaram depois, disseram que foram abordados pela vítima de roubo, um funcionário terceirizado da Vivo. A vítima informou que, de acordo com rastreamento do veículo, o carro roubado estava próximo dali, na Rua Adutora do Rio Claro. Os PMs foram até a rua, com a vítima, e encontraram o carro. A dupla seguiu patrulhando pela Rua do Carvalho Brasileiro, onde viram o cabo Denis, segurando uma arma, com os dois rapazes a seus pés, um deles baleado. De acordo com os dois policiais, Denis disse que os jovens tentaram roubá-lo e que atirou para se defender. Thiago foi levado ao Hospital Geral de São Mateus. Com Fernando, a PM afirma ter encontrada a mochila com as ferramentas do funcionário da Vivo. Um vídeo feito por um morador mostra o momento em que um dos policiais pisa na cabeça de Fernando, ao retirar a mochila azul das suas costas.
Queli afirma que houve demora do socorro do filho, que teria ficado cerca de 20 minutos deitado no chão. “O pessoal da rua toda começou a aparecer e perguntar pelo socorro, porque só chegava viatura e nada de ambulância”, aponta. Ela conta que os policiais chegaram a espirrar spray de pimenta. “O pessoal começou a xingar de desespero e até minha sogra, que também estava tentando ver o que estava acontecendo, foi atingida pelo spray”, prossegue.
A vítima do roubo disse na delegacia que foi abordado por dois homens. Um que um deles disse estar armado, mas ele não chegou a ver a arma, mesmo assim entregou seu carro e a mochila com ferramentas. Em seguida, diz que encontrou a PM, sem fazer menção a Denis, informando sobre o roubo. Na delegacia, ele reconheceu Fernando como um dos assaltantes, mas não Thiago, de quem a polícia lhe mostrou uma foto.
O delegado Washington Alves Alencar indiciou Fernando em flagrante por roubo majorado pelo concurso de agentes, ou seja, cometido por mais de uma pessoa. Já Thiago foi autuado por porte ilegal de arma. Sobre o PM Denis, o delegado entendeu que houve legítima defesa, mesmo havendo a contradição de depoimento a respeito de assalto. As armas, tanto de Denis quanto a encontrada no local, foram apreendidas.
A família questiona a versão de que Thiago estava armado. “Ele não tinha arma. Ele sempre foi um rapaz tranquilo, mas não gosta que toquem nele, ele mal sabe falar o nome completo, não sabe ler nem escrever”, critica Queli.
Queli enviou encaminhamentos de 2014 e 2016 do Hospital das Clínicas que apontam que o filho tem retardo mental. Os documentos foram usados num pedido de liberdade feito pela advogada Fernanda Peron, que atua como voluntária na Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, que denuncia violações de direitos humanos nas periferias.
Na audiência de custódia, a juíza Tania da Silva Amorim Fiuza determinou que os dois rapazes fossem presos preventivamente porque entendeu que os crimes são de “acentuada gravidade e periculosidade” e que eles teriam se aproveitado do momento de pandemia para praticá-los. Também argumentou que eles não teriam comprovado endereço fixo nem trabalho e que serem primários (sem antecedentes) não é justificativa.
“Ademais, observo que os flagranciados, mesmo diante de todas as determinações de isolamento social amplamente divulgadas pela mídia devido à pandemia, encontravam-se em local público quando foram presos em flagrante, o que denota que não são portadores de qualquer fragilidade que os qualifiquem como grupo das pessoas consideradas de risco para o Covid-19, nem que estavam tomando as cautelas devidas para evitar a propagação do vírus e o contágio da doença a si próprios e aos demais”, escreveu.
Na manhã deste sábado (10/4), articuladoras da Rede acompanharam a família atrás de câmeras de segurança na região e por testemunhas. “Tem muita gente com medo de testemunhar por ter medo da polícia porque aqui eles chegam como se todo mundo fosse bandido”, critica Queli.
Para Márcia Lysllane, que representa a Rede na região de São Mateus, é necessário “mobilizar as pessoas” e estar junto das famílias “para mostrar que ela não está sozinha porque é muito perverso você ver uma injustiça dessa”. Uma das imagens que obtiveram de um comércio mostra Thiago, de vermelho, andando com outro rapaz na rua às 9h34.
A família e as articuladoras da Rede também passaram no Hospital Geral de São Mateus atrás de notícias. “Os policiais foram muito grossos, mal educados, não queriam passar informação”, aponta Queli, sobre PMs que estão custodiando Thiago enquanto ele está internado. De acordo com ela, o filho está na ala de infectados com Covid-19, mas não foi informado o porquê. Na segunda-feira, ela pretende formalizar uma denúncia à Ouvidoria das Polícias.
Ao Alma Preta, o ouvidor das polícias Elizeu Soares Lopes declarou que pediu providências sobre o caso para a Corregedoria da PM e a Polícia Civil e criticou a atitude do policial que agrediu Fernando.
“A atitude do policial de pisar no pescoço do jovem já dominado é contrária aos protocolos da corporação. Estou requisitando à Polícia Militar que afaste imediatamente o responsável pela atitude condenável dos trabalhos nas ruas pelo menos até a conclusão das investigações”, afirmou o ouvidor, segundo o site.
A reportagem questionou a Secretaria Estadual da Saúde respeito do estado de saúde de Thiago, mas a assessoria da pasta informou que não fornece informações à imprensa sem autorização da família por respeitar o sigilo do paciente.
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