Senador Kajuru grava Bolsonaro pressionando por manobra na CPI da Covid e por ofensiva contra ministros do STF. Quem no começo dos anos 2000 poderia imaginar que um folclórico apresentador e um obscuro deputado do baixo clero iriam um dia decidir os destinos da nação?
Matheus Pichonelli, Yahoo
Jair Bolsonaro jogou para a plateia ao acusar Luís Roberto Barroso de fazer “politicalha” ao mandar o Senado instalar a CPI da Pandemia.
A determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) atendia a um pedido de senadores que viam a iniciativa barrada, apesar de cumprirem os requisitos legais, pela (má) vontade do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-RJ). Quem não entende do babado pensa que Barroso acordou certa manhã de mau humor, viu as nuvens pela janela e concluiu que era um ótimo dia para abrir uma CPI e ferrar a vida do presidente.
Era Pacheco, porém, que se escorava em um “juízo de conveniência e oportunidades” para se desviar da encrenca no momento mais duro da pandemia. Com a ordem judicial, ele agora jura que não moverá um milímetro para atrapalhar a CPI.
Quem se move enquanto isso é o próprio presidente da República, que teve o áudio de uma conversa com o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO), um dos autores do pedido, compartilhada no fim de semana pelo próprio parlamentar no Twitter. Nela o presidente que se queixa de supostas amarradas promovidas por Legislativo e Judiciário contra o Executivo avança muitas jardas em direção ao quadrado alheio e praticamente diz ao parlamentar como quer e como devem ser os trabalhos da comissão.
“Se não mudar o objetivo da CPI, ela vai vir para cima de mim. O que tem que fazer para ser uma CPI útil para o Brasil: mudar a amplitude dela. Bota presidente da República, governadores e prefeitos”, encomendou Bolsonaro, que diz nada temer a não ser um relatório “sacana”.
“Vamos fazer do limão uma limonada”, defendeu.
A simples articulação, um escândalo em qualquer lugar do Planeta, já mostra qual versão dos fatos Bolsonaro tentará impor a fórceps.
Como já não pega mais a conversa de que coronavírus tem sintomas de resfriadinho, que segunda onda é conversinha, que pessoas com histórico de atleta não correm risco (semana passada, morreu uma ex-campeã da São Silvestre), que o melhor imunizante era se contaminar, que a região norte não sofreria com a pandemia porque o uso de cloroquina no combate a malária serviria como “vacina” e que a vacina produzida pelo antípoda João Doria (PSDB-SP) produziria apenas “morte, invalidez e anomalia”, Bolsonaro agora conta com a memória turva e/ou seletiva dos apoiadores-raiz para dizer que nunca promoveu aglomerações, nunca maldisse o uso de máscaras e sempre foi um defensor de primeira ordem dos protocolos científicos, a começar pelo distanciamento social —medida defendida em campanha pelo Ministério da Saúde dias após a determinação de Barroso e mais de um ano após o início da crise.
Uma amostra da realidade paralela que Bolsonaro tenta agora emplacar é que fez tudo o que estava ao alcance. Não se aglomerou, não tirou férias milionárias no auge da crise, não queimou energia nem cartucho promovendo mudanças na PF ou nas Forças Armadas, não desautorizou nem fritou ministros da Saúde em praça pública, não gastou milhões com medicamentos inúteis, não fez vistas grossas ao isolamento promovido pelo Itamaraty, não sabotou como pode as recomendações que ele chamava de “coisa de maricas”.
Pela versão que tenta imprimir, se morreu tanta gente na pandemia a culpa é única e exclusiva de prefeitos e governadores, que botaram a grana no bolso e deixaram todo mundo morrer confinado. Eles, porém, nunca contaram com a União para obter, além de recursos obrigatórios, uma convergência elementar de estratégias e comunicação de crise, que precisaria desde o início ser clara, unificada e eficaz. Como fizeram as nações que melhor souberam lidar com o vírus, caso da Nova Zelândia.
Bolsonaro tem razão em se preocupar com a CPI da Pandemia. Talvez desde o mensalão não havia, como agora, tanta gente disposta a ficar na frente da TV Senado para acompanhar a confrontação pública de autoridades que não terão tempo nem ambiente para emplacarem a própria versão da história.
Não é à toa que, na conversa com Kajuru, Bolsonaro demonstrou preocupação com a convocação de Pazuello, ministro que já se contradisse ao divulgar informações distintas sobre o fornecimento de oxigênio para o Amazonas antes de as pessoas começarem a morrer por falta de ar nos hospitais do estado.
Com o confronto tete-a-tete, Bolsonaro e companhia deixam de jogar em seu território, as redes sociais, onde nadam, ou nadavam, de braçada. Na CPI o terraplanismo do Planalto poderá ser desmascarado ao vivo e em tempo real, e não mais em notas oficiais posteriores.
O pessoal do perfil “Desmentindo Bolsonaro” vai ter trabalho diante de tanto material audiovisual para mostrar que Bolsonaro mentia antes e segue mentindo. Vai ter também companhia.
No telefonema camarada entre presidente e senador autor da CPI há todo um roteiro de como Bolsonaro pretende fazer sua limonada com mais de 350 mil mortos no colo. Talvez não conte mais com a boa vontade nem com o oportunismo de quem não via gravidade em outras conversões de fatos em ficções, como o escarcéu em torno no fictício “kit gay” que catapultou sua candidatura à Presidência ou do bicho-papão comunista, um delírio que ele e os filhos tentam imprimir. Agora o risco Bolsonaro é medido em corpos. É essa a história que está prestes a ser ilustrada, passo a passo.
Quem no começo dos anos 2000 poderia imaginar que um folclórico apresentador esportivo, que certa vez confidenciou ter como apelido Boka Loka, e um obscuro deputado do baixo clero conhecido pelas maluquices iriam decidir os destinos da nação em um telefonema duas décadas depois?
E depois dizem que o Brasil não é para amadores.
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