Eric Gil Dantas* e Maria Rita Loureiro*
“Do poço ao posto” é um termo utilizado para descrever uma empresa da área de petróleo e gás que seja verticalizada, isto é, que opere desde a jazida onde extrai as reservas comerciais de petróleo até a revenda de produtos derivados (tal como gasolina, diesel e gás de cozinha – o GLP).
Desde a sua criação, esta foi a concepção também da Petrobras. Atuando nas áreas de exploração e produção, transporte, refino, distribuição e revenda, a estatal é um grande conglomerado de empresas bilionárias. No entanto, a desverticalização virou um imperativo das últimas direções da Petrobras.
Os argumentos para isto elencam principalmente a diminuição da dívida da empresa, o aumento da concorrência de determinados setores e o foco em ativos de classe mundial – principalmente o pré-sal, por conta dos seus menores custos de produção.
De 2015 a 2020, a Petrobras já privatizou ativos que equivalem a R$ 181 bilhões[1]. Foram privatizações como a Transportadora Associada de Gás S.A. (TAG) e a Nova Transportadora do Sudeste (NTS), que somadas foram vendidas a US$ 15,93 bilhões, o Campo de Roncador (terceiro maior campo de petróleo do país), vendido para a Equinor (antiga Statoil – estatal petrolífera norueguesa) por US$ 2,9 bilhões e a venda de US$ 4,05 bilhões em ações da BR Distribuidora na B3. Cerca de 80% destas privatizações foram feitas para empresas estrangeiras, principalmente canadenses e franceses.
Apesar de todos os argumentos, que podem ser vistos no site da própria estatal (https://novoscaminhos.petrobras.com.br), acreditamos que esta quebra da verticalização da Petrobras enfraquece a companhia. Quando a direção da Petrobras opta por virar unicamente uma operadora do pré-sal, que é a consequência lógica desta política, você concentra todas as atividades em um único ponto da cadeia, aumentando a exposição à montanha russa dos preços internacionais do petróleo.
2020 foi um ano exemplar para mostrar que depender unicamente do preço do barril de petróleo pode levar a maus lençóis uma empresa com centenas de bilhões de reais imobilizados em ativos. Em abril do ano passado, o preço médio para o brent (principal referência para a produção da Petrobras) chegou a US$ 18,38. A título de comparação, a média para 2019 foi de US$ 64,36 o barril.
Àquela época, todas as petrolíferas passaram a prever preços muito baixos para os próximos anos. Em seu relatório do 1º trimestre de 2020, a Petrobras publicou sua previsão para o preço do brent: US$ 25 dólares em 2020 até US$ 45 dólares em 2014, subindo 5 dólares por ano, sendo que a longo prazo este valor ficaria em US$ 50. Felizmente, para a indústria petrolífera, hoje o preço do barril já oscila em torno dos US$ 65.
O que teria acontecido com a Petrobras caso o plano de transformar a estatal em uma simples produtora e exportadora de petróleo cru, caso o preço do barril de petróleo se mantivesse baixo por muito tempo?
O upstream (exploração e produção) concentra 70% dos gastos em capital da indústria de petróleo. Além de exigirem elevadas inversões de capital, podem resultar em zero retorno, caso haja insucesso. Como afirmaram Pinto Junior et al. (2016), na “indústria de petróleo existem riscos de uma natureza única e específica, que se adicionam aos riscos normais (custos, mercados, demanda e preços) das outras atividades econômicas. […] Enfrenta, em primeiro lugar, o risco geológico, dado pela incerteza do desconhecido” (p. 43), com a necessidade de descobrir continuamente jazidas de petróleo e gás economicamente viáveis.
Os autores argumentam que “a gestão do binômio risco-rentabilidade do total do capital disponível exige alta competência para distribuir e compensar os elevados custos e riscos acarretados pelo caráter aleatório da atividade de E&P. Os atributos técnico-econômicos que fundam a economia do petróleo motivaram a maioria das empresas a integrar verticalmente essas atividades, de forma a distribuir os riscos e os custos entre os vários segmentos da cadeia industrial e obter um risco/custo médio que compense os diferenciais de custo e aumente os ganhos ao longo dos segmentos da indústria”.
Em publicação para o BNDES, Mendes et al. (2018) também argumentam que “A atividade de refino é essencial e estratégica para muitas empresas de petróleo, que, por isso, ao longo do tempo, trilharam o caminho de sua integração equilibrando o portfólio de ativos que mantêm. Assim, essas empresas conseguem maior nível de estabilidade de suas receitas, amortecendo os efeitos das variações de preço do petróleo (extremamente volátil), sobretudo quando tais preços permanecem em patamares baixos por muito tempo. Na década de 1990, quando o preço do petróleo chegou a ficar abaixo dos US$ 10/barril, sendo a média, no período, de cerca de US$ 19/barril, se não fosse a atividade de refino para garantir a sustentabilidade das grandes empresas de petróleo, seu destino poderia ter sido semelhante ao de muitas empresas focadas unicamente em E&P, que acabaram fechando” (p. 15).
Isto aconteceu em parte com a Petrobras de 2020. O GLP, por exemplo, subiu o preço mesmo enquanto houve queda no preço do barril de petróleo – puxado principalmente pela demanda residencial por conta do isolamento. Já a gasolina e o diesel não tiveram diminuições de preço na mesma proporção da queda do petróleo. Isto em uma situação que afetou a demanda por combustíveis internacionalmente.
Em síntese, caso a Petrobras opte por ser uma mera produtora e exportadora óleo cru, vendendo seus ativos de outras áreas, a primeira consequência será a exposição de volumosos investimentos à um mercado extremamente volátil. A gravidade aumenta em um contexto de descarbonização da economia ganha cada dia mais relevância, com o desejo de governos aumentarem as suas fontes de energia renováveis, carros elétricos, novos biocombustíveis, hidrogênio, etc..
Segundo, a Petrobras foi uma empresa criada para gerar independência energética do país diante do mundo. Como disse Mendes et al. (2018), “Produzir petróleo […] e ter um parque de refino que atenda à demanda interna de derivados de petróleo são fatores que proporcionam economia de divisas na balança comercial da nação e viabilizam sua segurança energética, ao garantir o abastecimento contínuo de derivados de petróleo, insumos essenciais à vida contemporânea. Refinarias próximas aos centros de consumo de derivados, tanto quanto às regiões produtoras de petróleo, carregam um valor estratégico muito importante, pois maximizam a apropriação do valor agregado, bem como reduzem os custos de logística, não só para uma empresa, mas para o país” (p. 14-15). No momento em que o dólar bate recordes parece fazer ainda mais sentido.
A Petrobras cumpriu e ainda cumpre esta tarefa para o país. Mesmo com o auto boicote, com a paralisação de investimentos no refino – marcados anteriormente pela construção da Refinaria Abreu e Lima (RNEST) e do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) –, com a diminuição da utilização da capacidade instalada das refinarias – que em 2013 chegou a 98,2%, e que nos últimos anos oscilou entre 75,8% em 2018 e 80% no 1º trimestre de 2021 – e com o consequente crescimento das importações de produtos derivados de petróleo.
Além disto, a entrega de metade do parque de refino do país para empresas, parte delas estrangeiras, como o Fundo Mubadala, fundo soberano dos Emirados Árabes, compradora da RLAM (na Bahia), ainda irá gerar a criação de monopólios privados.
Em estudo produzido por Antônio Thomé, Marcelo Seeling, Carlos Maligo, Allan Cormack e Millena Mansur, do Departamento de Engenharia Industrial da PUC-Rio, os autores chegam à conclusão que a consequência disto será uma “alta possibilidade de formação de monopólios privados regionais, sem garantia de aumento de competitividade que possa ser refletido em redução do custo aos consumidores finais”[2]. Eles chegaram a esta conclusão analisando a produção e o escoamento de Gasolina A e Diesel A das refinarias do país, considerando os diferenciais de custo entre as possíveis alternativas de suprimento, isto é, a possibilidade da concorrência real – levando em conta tanto os custos de produção quanto a possibilidade e o custo de levar seus produtos para regiões geográficas onde estariam as outras refinarias (verificando se há formas de escoamento por dutos, ferrovias, portos e rodovias e quanto isto adiciona no preço do seu produto).
Como exemplo, na REFAP, no Rio Grande do Sul, os autores afirmam que há “alta probabilidade de estabelecimento de monopólio regional privado no mercado do RS. Com exceção do Sul do estado, em que pode haver pressão competitiva da Refinaria Rio Grandense, no entanto com impacto limitado, já que a produção da Rio Grandense no óleo diesel é 10% da produção da REFAP, e em torno de 15% na gasolina”.
Além disto, temos: (i) “mercado protegido pela falta de infraestrutura portuária para internação de produtos derivados claros importados”, (ii) “é provável que a venda da REFAP fique limitada a troca de agente econômico, sem benefícios de aumento de competitividade na comercialização de óleo diesel e gasolina neste mercado” e, consequentemente, (iii) “não havendo investimentos em expansão de infraestrutura logística para movimentação de derivados que possa mitigar o monopólio natural configurado para o estado do Rio Grande do Sul, é baixa a probabilidade de que a pressão competitiva se reflita em redução de preços aos consumidores finais deste mercado”.
Em síntese, como não há forma real de chegar produtos de outras refinarias (seja a partir da REPAR, no Paraná, seja importando), a REFAP terá um monopólio privado no estado, fazendo com que não haja novos investimentos e logicamente sem redução de preços. Pelo contrário, quando um monopólio privado é estabelecido, a tendência é que haja elevação dos preços.
Os autores aplicam esta mesma metodologia para todas as outras refinarias que devem ser privatizadas e concluem que as únicas que têm apenas “moderada” (e não “elevada”) chance de virar um monopólio privado são a REPAR (por conta da REFAP, das importações e da proximidade da Petrobrás do Sudeste) e a RNEST (também por conta de importações e da possibilidade de Petrobrás do Sudeste levar estes produtos utilizando-se de cabotagem).
Concluindo, trocaremos o monopólio estatal por monopólio de empresas privadas.
Outras privatizações da Petrobras já mostram o mesmo sentido de que isto nada tem a ver com maior concorrência, tal como a Liquigás. A Liquigás teve sua privatização concluída em dezembro de 2020, vendida para a Copagaz e Nacional Gás – duas das suas principais concorrentes. Em um mercado extremamente oligopolizado, onde seis empresas dominavam 97% da oferta de gás de cozinha em 2019, a segunda maior delas, a ex-estatal Liquigás foi para as mãos de uma empresa que detinha 19% do mercado e outra que detinha 9%. Ou seja, no final das contas o único efeito foi oligopilizar ainda mais o mercado e retirar da jogada a única empresa que tinha alguma ligação pública.
Além disto, em momentos de alta aguda do preço de derivados, como ocorre atualmente, com o GLP e o Diesel S-10 nas suas máximas históricas, e a gasolina próximo do seu maior patamar da série histórica da ANP, quem decidirá se este preço é abusivo, ou não, na prática serão as próprias empresas que se beneficiam desta tragédia.
Isto nos leva à terceira questão, a subordinação da Petrobras à lógica meramente de mercado. Isto se expressa primeiramente no ideário de que a empresa deve ser apenas uma geradora de valores para seus acionistas. Segundo Guilherme Estrella, diretor de Exploração e Produção da Petrobras nos anos Lula, nos governos FHC a empresa tinha um comportamento muito parecido.
“Quando cheguei aqui de volta, não encontrei uma empresa de petróleo. […] A Petrobras tinha se transformado em uma instituição financeira. Uma empresa de petróleo tem que correr riscos, tem que ser agressiva na exploração, tem que investir muito e desenvolver tecnologia e conhecimento geológico. Banqueiro não quer correr risco. […] Quiseram mudar a cultura da companhia e transformá-la numa empresa exclusivamente comercial. Quiseram trocar seu nome para Petrobrax, mas o povo brasileiro não aceitou”[3].
Segundo a lógica de Pedro Parente e Roberto Castello Branco, o retorno da lucratividade dos acionistas era o único balizador para estes. Já os interesses do maior acionista da empresa, o povo brasileiro, eram ignorados. O que nos leva a segunda forma de expressão deste fenômeno hoje, o Preço da Paridade de Importação (PPI). Instaurada em 2016 por Michel Temer e Pedro Parente, esta política de preços define que produtos derivados de petróleo e gás têm “como base o preço de paridade de importação, formado pelas cotações internacionais destes produtos mais os custos que importadores teriam, como transporte e taxas portuárias, por exemplo”[4].
Isto é, mesmo a Petrobras produzindo em território brasileiro cerca de 80% dos combustíveis consumidos no país nós pagamos como se eles fossem importados. Não só em termos de dólar, mas pagamos até uma tarifa portuária e de transporte inexistentes.
Esta política, junto à imensa desvalorização do real diante do dólar, fez os preços dos derivados chegarem aos patamares atuais. Claramente gera um conflito entre a empresa e os consumidores. Mesmo em meio a uma das maiores crises econômicas da história do país, a população tem que pagar uma média de R$ 84 no GLP, R$ 5,44 na gasolina comum e R$ 4,25 no Diesel S-10 – patamares elevadíssimos se fizermos uma comparação com períodos anteriores.
A Petrobras deixa de ser uma empresa para garantir segurança energética para o país, uma geradora de desenvolvimento tecnológico e grande investidora na nossa economia e transforma-se simplesmente em uma boa pagadora de dividendos.
Na prática, apesar do discurso delirante dos defensores da destruição da Petrobras, a economia como um todo sofre, com menor PIB, menos investimento, menos emprego e maior inflação. A Petrobras, como instrumento econômico de soberania para o país, deve servir para quem a construiu – tanto com tributos quanto com trabalho. Esperamos não entregar nosso futuro para petrolíferas que já destruíram incontáveis países ao redor do globo.
*Eric Gil Dantas, Doutor em Ciência Política pela UFPR e Pesquisador de pós-doutorado na FGV-SP. Economista do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (Ibeps).
*Maria Rita Loureiro, Professora titular aposentada da FEA-USP, atualmente Professora e Pesquisadora da FGV-EAESP.
Notas
[1] Segundo dados sistematizados e corrigidos pelo Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (Ibeps) sob encomenda da Federação Nacional de Petroleiros (FNP), ainda no prelo. O levantamento levou em conta os dados disponibilizados nos relatórios trimestrais da empresa e aos valores foram aplicados a taxa de câmbio de dezembro de cada ano e depois corrigido pelo IPCA para dezembro de 2020.
[3] https://piaui.folha.uol.com.br/materia/petroleo-encalacrado-no-pre-sal/
[4] https://petrobras.com.br/pt/nossas-atividades/precos-de-venda-as-distribuidoras/gasolina-e-diesel/
Referências
Mendes, André Pompeo do Amaral, Cássio Adriano Nunes Teixeira, Marco Aurélio Ramalho Rocio, and Haroldo Fialho Prates. 2018. “Mercado de Refino de Petróleo No Brasil.” BNDES Setor 24(48): 7–44.
Pinto Junior, Helder Queiroz et al. 2016. Economia da Energia: Fundamentos Econômicos, Evolução Histórica e Organização Industrial. 2nd ed. ed. Helder Queiroz Pinto Junior. Rio de Janeiro: Elsevier.
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