Em um sentido geral, a perspectiva da linguagem como um fármaco capaz de agir na psique é notada no próprio dizer cotidiano, na mensagem, no sinal, no ícone, no índice, no signo, no poder de convencimento e persuasão da palavra.
*Lucio Massafferri Salles
“Como os hackers nos ensinaram, a forma mais agressiva para modificar um software é usando um ‘vírus’, e o que é a ideologia senão um vírus de software para seres humanos?”
(Steven Mann / Chaos Theory and Strategic Thought)
A excitação das massas pode ser produzida como resultado do recurso às novas tecnologias da comunicação de massa, para além da via farmacológica?
E aqui chamamos de “novas tecnologias” de comunicação de massa as tecnologias digitais ligadas à hipermídia, que muitas vezes mesclam falas, escritos e imagens sob a forma de artefatos semióticos capazes de ser disseminados na superfície da grande rede e nos seus dutos.
Bem, pelo menos duas questões giram no eixo dessa reflexão sobre a possibilidade de se provocar excitação/convulsão de massas sem o uso de fármacos. Essa inquietação é compartilhada pelo filósofo italiano Domenico Losurdo em dois de seus textos: “Resistência Falsa e Manipulações Verdadeiras – A Geopolítica da Internet” (2010)1 e “Estende-se o domínio da manipulação: o que se passa na Síria?” (2011)2.
Manipulação de opiniões e guerras em rede na geopolítica da internet
Uma das questões diz respeito às perspectivas de Domenico sobre as estratégias de manipulação de opiniões e operações psicológicas (PsyOps) que vêm sendo postas em prática no tabuleiro geopolítico, sem nenhuma economia de recursos por parte dos EUA.
Como destaca Edward Snowden, no seu livro Permanent Record (2019), os estadunidenses ainda hoje estão na ponta da fabricação de hardware, software, cabeamento de redes e do “como fazer” no campo das guerras de internet, guerras em rede e da aplicação das chamadas Revoluções Coloridas. Inserem-se todas essas ações no grupo das manobras de última geração que visam “resetar” sistemas políticos de uma maneira bastante similar (analogamente) a como fazem determinados vírus de computador, explorando falhas, brechas ou aberturas, isto é: forçando uma troca de regime ou derrubada de um governo, à distância, por procuração, em nome da “promoção da liberdade, da democracia, do bem e da paz”, quase sempre explorando fendas, fissuras, fraturas étnico-econômico-sociais; uma máscara para o afã das ofensivas neocoloniais da era web.
Sobre esse aspecto, cabe não esquecer do relato da ex-analista da Cambridge Analytica, Brittany Kaiser, no seu livro Targeted (2019)3, aludindo mais ao marketing político da era digital do que às chamadas guerras híbridas: com o advento da grande rede e o surgimento das suas plataformas sociais foram desenvolvidas novas dinâmicas para tomada de poder usando captação de dados e informações, esquadrinhamentos psicológicos, direcionamentos de mensagens e campanhas propagandísticas personalizadas para pessoas e grupos diversos (targeting e microtargeting). A superfície da grande rede, assim como os seus dutos, são a nova corrida armamentista. Os dados, as informações, os medos e desejos capturados nos cliques dos mouses são como o petróleo desse “novo Eldorado”4.
As operações psicológicas e os fármacos
A segunda questão que chamou a atenção nesses dois textos de Domenico se refere a um relato sobre o desenvolvimento de técnicas e experimentos de caráter bio-psicológico, pela parte da agência de inteligência estadunidense CIA, no período inicial da guerra fria. Ao citar a via farmacológica como um recurso já conhecido para se fabricar excitação/convulsão nas massas, Domenico aponta para o estranho fenômeno de “loucura coletiva”, uma epidemia de surtos, delírios e alucinações que ocorreu na pequena cidade do sudeste da França, Pont-Saint-Esprit no outono de 1951.
Através da leitura de um trabalho da antropóloga Rebecca Lemov, da Universidade do Estado de Washington, sobre um tipo de experimentação que envolveu conhecidos psiquiatras da época, Losurdo tomou conhecimento de que esse episódio de Pont-Saint-Esprit foi parte de um projeto experimental envolvendo a CIA para “destruir e reconstruir a psique das pessoas”, estivessem essas ou não sob tratamento médico.
O fármaco em questão, o ácido lisérgico (LSD), não só foi usado nesse episódio de Pont-Saint-Esprit como também em outros experimentos. No caso de Pont-Saint-Esprit, doses de LSD teriam sido colocadas por agentes estadunidenses em pães e baguetes das padarias da cidade. Esse evento resultou em um desastre que levou várias pessoas à morte, colocando dezenas em estado de internação psiquiátrica e muitas outras sofrendo com surtos, delírios e alucinações.
Esse tipo de projeto envolvendo psiquiatras/psicólogos e agentes de inteligência trabalhando juntos no desenvolvimento de operações psicológicas voltadas para interesses políticos/geopolíticos pode ser conferido em uma passagem do episódio 2 do documentário The Century of The Self, de Adam Curtis (BBC/2002). Nesse documentário, os relatos sobre as experiências de manipulação psíquica usando LSD e ECT se encontram logo após a abordagem do golpe de estado na Guatemala (1954) que contou com a participação da CIA e de Edward Bernays, o mago da publicidade e da comunicação de massa da cultura estadunidense. Edward Bernays, sobrinho do médico Sigmund Freud e do filólogo alemão Jacob Bernays, contribuiu para o golpe de 1954 na Guatemala com a elaboração de operações psicológicas e de influência que usaram a fabricação massiva de fatos, boatos, desinformação e manipulação de notícias em mídias diversas.
Ao levantar a questão sobre se há outro modo de excitar/convulsionar as massas que não seja o meio da administração de fármacos, Domenico põe em relevo a potência da linguagem nas suas diferentes modalidades (grafada, falada/auditiva, visual) seguindo o curso da evolução das novas mídias, que não só ampliaram o alcance comunicacional entre pessoas e povos como introduziram altíssima velocidade e intensidade no volume de informações passíveis de serem disseminadas por todos os cantos do mundo.
As manipulações midiáticas usando imagens, vídeos, áudios, notícias e fotomontagens ocorridas nos contextos da Revolução de Veludo/1989 (antiga Checoslováquia), na Síria de Bashar al-Assad, na Romênia de Nicolae Ceausescu ou no Irã de Mahmoud Ahmadinejad são apenas alguns dos exemplos de manobras que envolvem a comunicação de massa, com o intuito de descredibilizar e de alvejar/insuflar a opinião pública contra governos das chamadas demografias-alvo que entram na mira da nação agressora.
Leia aqui todos os textos de Lucio Massafferri Salles
Resetar o sistema ou trocar o regime
Ora, para que mandar forças armadas regulares para “resetar” um governo, derrubá-lo, forçar uma troca de regime sem destruir diretamente os seus bens, os seus desenvolvimentos tecnológicos, os seus recursos, as suas cidades, o seu povo local/alvo, se é possível e mais barato, além de camuflado, usar campanhas estratégicas de comunicação e psicologia de massas via grande rede e redes sociais menores? Aplicar técnicas de administração de percepções, tal como hoje fazem habilmente certas plataformas de rede social não é algo exatamente novo, muito pelo contrário.
A respeito disso, a linha histórica do tempo não nos deixa esquecer do uso do cinejornalismo na Primeira Guerra Mundial com a intenção de inflamar afetos e ânimos, ou do intenso trabalho de propaganda de Edward Bernays e Walter Lippmann junto ao governo de Woodrow Wilson nesse mesmo conflito, visando plantar na Europa a ideia de que os EUA levariam para lá a democracia, uma vez entrando na guerra. Nessa linha temporal, especialistas inovaram no uso da propaganda via radiofonia (Segunda Guerra) e da televisão (Guerra Fria) visando a publicidade de caráter ideológico. No corredor desses acontecimentos, as chamadas operações psicológicas (PsyOps) se tornaram oficialmente matéria de estudo estratégico para aplicações diversas em conflitos de interesses políticos/geopolíticos.
Respondendo à própria questão que levanta, Losurdo indica que as comunicações de massa operadas no contexto de uma “Psychological Warfare” (PsyOp) na era tecnológica digital são capazes de excitar/convulsionar as massas para além das perturbações motivadas pela aplicação de fármacos/substâncias, tal como foi feito nos experimentos de Pont-Saint-Esprit e em outras experiências similares.
Na verdade, lembrando das ideias do filósofo siciliano Górgias, cabe apontar o que ele pensava a respeito da palavra falada, da escrita, das imagens, da linguagem como um todo ter um poder de ação similar ao dos fármacos, uma vez que a linguagem seria capaz de agir nas psiques humanas de uma maneira análoga ao que muitos fármacos fazem atuando nos corpos; quando é o caso de extraírem os humores mais diversos.
Em um sentido geral, a perspectiva da linguagem como um fármaco capaz de agir na psique é notada no próprio dizer cotidiano, na mensagem, no sinal, no ícone, no índice, no signo, no poder de convencimento e persuasão da palavra, no esforço por dar sentido ao que se escuta ou ao que se diz, lê, vê ou toca, assim como na capacidade da linguagem para influenciar pensamentos, juízos, ações, despertar afetos como alegria, tristeza, medo, repulsa, ressentimento, ódio ou encantamento.
Em um sentido mais específico, seguindo o fio das reflexões que se desdobram na provocação de Losurdo sobre o uso da psicologia e da comunicação de massa como arma de guerra neocolonial/geopolítica na era digital, talvez se deva tentar entender com pouca pressa, acolhendo a lentidão que costuma fazer parte dos processos fecundos de aproximação dos conhecimentos. A aplicação de táticas de guerra híbrida usando redes, mídias e o campo da comunicação e da manipulação psicológica das massas no terreno virtual da alta tecnologia digital é recente. E mesmo assim já se tem alguma noção de que determinadas demografias são mais blindadas/imunes do que outras a esse tipo de assédio por abordagem indireta. Ao passo que outras demografias são enredadas com mais facilidade, se mostrando vulneráveis e manifestando sintomas de inação, paralisia e redução drástica na capacidade básica de orientação diante dos bombardeios incessantes de artefatos linguísticos/semióticos e (des) informação que costumam ser acompanhados da supressão do diálogo e da suspensão da escuta.
Por esse motivo, é importante que não fiquem de braços cruzados, inertes, os alvos de “guerras pela Internet”, em rede, ou das ondas das shitstorms5, as “tempestades de merda” compostas por produção de fatos, eventos e realidades paralelas que quase sempre são acompanhadas por ataques de difamação promovidos por enxames digitais, muitos dos quais parcialmente camuflados nas plataformas de redes sociais e mensageiros instantâneos.
Uma das principais contramedidas é interromper o compartilhamento compulsivo de conteúdos e artefatos linguísticos de fonte/origem duvidosa ou desconhecida, que se destinem a servir como combustível para alimentar e estender rupturas.
Com isso, se torna possível cortar ou interromper a propagação de detritos midiáticos e de mentiras, evitando que essas sejam repetidas mil vezes sob o risco de “se tornarem verdades”.
Leia também:
Artefatos semióticos e catarse do riso nas guerras híbridas
Do controle sistêmico à vigilância permanente
Ilusão de liberdade e manipulação na grande rede
Notas:
1- LOSURDO, D. Resistência Falsa e Manipulações Verdadeiras – A Geopolítica da Internet (2010): https://www.marxists.org/portugues/losurdo/2010/09/22.htm
2- LOSURDO, D. Estende-se o domínio da manipulação: o que se passa na Síria? (2011): https://www.marxists.org/portugues/losurdo/2011/05/13.htm
3- KAISER, B. Targeted: The Cambridge Analytica Whistleblower’s Inside Story of How Big Data, Trump, and Facebook Broke Democracy and How It Can Happen Again (2019).
4-Aludo aqui ao loteamento da internet por grandes empresas e as atuais Big Techs, contrapondo-se a uma certa “ilusão de liberdade” na grande rede (sobre isso, ver o slogan da Microsoft em 1994: “Aonde você deseja ir hoje? – https://gizmodo.uol.com.br/a-curta-historia-dos-monocromaticos-logotipos-da-microsoft/)
5- A expressão é usada pelo filósofo Byung Chul-Han para caracterizar os violentos “ataques de indignação” promovidos pelos enxames digitais (cf. em No Enxame; Psicopolítica).
*Lucio Massafferri Salles é filósofo, psicólogo e jornalista. Doutor e mestre em filosofia (UFRJ), especialista em psicanálise (USU), concluiu o seu pós-doutorado em filosofia contemporânea pela UERJ. É membro da Red Iberoamericana de Filosofía Política, do Laboratório de Filosofia Contemporânea da UFRJ, da Sociedade Hegel Brasileira e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Criador do Portal Fio do Tempo (You Tube)
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