Desigualdade Social

As faces da criminalização da pobreza

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(Imagem: Boitempo)

Othoniel Pinheiro Neto*

O histórico processo de dominação, adestramento e domesticação dos indivíduos sempre aconteceu nos mais variados tentáculos do tecido social, como a mídia, a religião, a escola, a medicina, a família, a cultura etc. Esse processo é o responsável por manter o status quo social, político e econômico, mantendo os indivíduos inertes, ou melhor, servis ao sistema.

Não é diferente com o processo de criminalização, que também serve às elites como forma de domínio, direcionando diversos meios de repressão criminal para a camada mais pobre da população, incluindo o fornecimento dos meios de legitimação desses instrumentos.

A criminologia liberal, de concepção positivista, tem por base a ideia de que o crime é problema do indivíduo que não se adapta ao meio. Essa criminologia não se preocupa com fatores externos aos estudos da criminalidade, não procurando buscar na estrutura social excludente qualquer tipo objeto de estudo. Esse tipo de política criminal está muito mais preocupado em defender a propriedade privada diante de indivíduos isolados, do que em focar na questão das desigualdades sociais como uma das responsáveis pelo crime e em caminhos para soluções.

Assim, não é interessante para a criminologia liberal estudar o problema da violência sob a perspectiva social, justamente por que abre espaço para a participação do Estado em questões como educação, saúde, assistência social e redistribuição de renda.

Por isso, o mais interessante é focar exclusivamente na responsabilidade individual do sujeito, rechaçando qualquer outra discussão, uma vez que o interesse maior não é combater à criminalidade, mas, sim, manter o sistema econômico beneficiador das elites dominantes.

Em paralelo, o avanço do neoliberalismo mundo afora evidencia o desmonte de políticas públicas sociais, o empobrecimento da população, bem como verdadeiros ataques aos instrumentos de justiça social na distribuição das riquezas. No Brasil, isso acontece a partir da década de 90, quando, não por coincidência, aumenta a instituição de políticas penais cada vez mais rigorosas.

É justamente nesse contexto histórico do avanço das medidas de combate à violência que se observa um aumento da repressão preferencial dos indivíduos das camadas inferiores da população. Nesse cenário repressivo, mesmo que as pessoas não queiram admitir, mas no subconsciente, o marginal é previamente delimitado no imaginário popular. Trata-se do negro, do pobre e do favelado, sempre sujeito à criminalização nas periferias, onde o processo se revela por meio de policiamento ostensivo nas ruas, nas casas e em festas por meio de “batidas” que colocam as pessoas contra a parede para a busca de supostos objetos do delito ‒ situação que não se verifica em festas da classe alta da sociedade, que por vezes ocultam negociatas, exploração sexual, consumo de drogas etc.

Outro aspecto a se destacar é que uma das faces dos instrumentos de controle social dos grupos hegemônicos relativas à criminalização da pobreza revela-se quando observamos pessoas pertencentes à própria classe dos dominados vibrando com linchamentos, violências policiais e toda ordem de desrespeito à Constituição Federal, na seara do suposto combate à criminalidade, uma vez que são justamente essas pessoas os potenciais alvos desse sistema. Importante mencionar que essa estratégia já está intencionalmente plantada pelo sistema como uma forma de desmobilização das classes populares e subtração do sentimento de classe e de união.

Isso não significa que o sistema não penalize os privilegiados, pois, como bem destaca Zaffaroni e Pierangeli, “em parte, o sistema penal cumpre essa função, fazendo-o mediante a criminalização seletiva dos marginalizados, para conter os demais. E também em parte, quando os outros meios de controle social fracassam, o sistema não tem dúvida em criminalizar pessoas dos próprios setores hegemônicos, para que estes sejam mantidos e reafirmados em seu rol, e não desenvolvam condutas prejudiciais à hegemonia dos grupos a que pertencem, ainda que tal fenômeno seja menos frequente (criminalização de pessoas ou de grupos contestadores pertencentes à classe média alta). Também, em parte, pode-se chegar a casos em que a criminalização de marginalizados ou contestadores não atenda a nenhuma função em relação aos grupos a que pertencem, mas unicamente sirvam para levar uma sensação de tranquilidade aos mesmos setores hegemônicos, que podem sentir-se inseguros por qualquer razão (geralmente, por causa da manipulação dos meios massivos de comunicação)[1]”.

No pacote, também se vislumbra que a densidade política do direito penal está presente em cada medida tomada pelo poder público no âmbito dos três poderes.

É nesse cenário que se fala em processo de criminalização primária, que se dá no âmbito do Poder Legislativo com a criação de tipos penais (crimes) e suas respectivas penas, bem como em processo de criminalização secundária, que é executado pela polícia, pelo Judiciário e pela mídia, entre outros. É também nesse contexto que se identifica a seletividade do sistema policial, jurídico e midiático, como instrumento a serviço da classe dominante para a permanência do status quo.

Nessa mesma linha, a estrutura montada para desmoralizar e criminalizar os movimentos sociais mostra, com clareza, que o sistema de poder também objetiva encobrir problemas sociais e políticos que deveriam ser debatidos e enfrentados pela sociedade.

Há outra faceta dessa problemática, configurada na repressão a movimentos sociais ou a todo aquele que revelar interesses de classes populares, evidenciando também um processo de criminalização da pobreza e até mesmo de criminalização de atos que reivindicam transformações sociais, executados juntamente com estigmatizações de sujeitos, sindicatos e movimentos, construindo a ideia de transgressão e legitimando repressões por grande parte da sociedade.

Nesse panorama, a estrutura do poder (conservadora como sempre foi) é imediatamente acionada diante de qualquer ato que reivindique transformações sociais, especialmente em se tratando de minorias sociais, como pobres, sem-terra, homossexuais, índios, mulheres etc. Popularmente falando, para a nossa elite, pobre não tem direito de reivindicar e, se o fizer, será sempre enquadrado, estigmatizado, ridicularizado e até criminalizado.

É por isso que toda e qualquer reivindicação de minoria social sofre múltiplas repulsas de uma significativa parte da sociedade, que sempre associa tais reivindicações a crimes, badernas, ridicularizações etc.

*Othoniel Pinheiro Neto é Defensor Público do Estado de Alagoas e Doutor em Direito UFBA.

Citação

[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 11.

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