Poucas horas após viralização de vídeo do pastor, pessoas próximas saíram em defesa dele, com o clássico argumento: 'eu o conheço, ele não seria capaz'. Essa é uma das alegações mais perniciosas utilizadas na defesa de suspeitos, porque reforça a mentira de que o agressor sexual é sempre um desconhecido ou uma pessoa introvertida da qual ninguém sabe muita coisa
Isabela Del Monde, Universa
Alerta de gatilho: esse texto aborda violência sexual contra crianças e adolescentes e pode ser desconfortável para sobreviventes.
Circulou nas redes sociais na segunda-feira (26) um vídeo que se passa em uma festa, na área externa de uma casa. Nas cenas, vemos alguns adultos e várias crianças com roupas de praia. Um homem abraça uma das meninas por trás, com seu pênis mais ou menos na altura das costas da garota, passando o braço pelo peito dela. Ela demonstra resistência ao abraço e faz dois movimentos para conseguir ser solta.
É possível saber a intenção daquele abraço? Não. Antes de uma investigação, não podemos afirmar que houve objetivo sexual por parte daquele homem. Caso isso seja comprovado, estaremos diante do crime de satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente.
Entretanto, é possível afirmar que é absolutamente inadequado tocar no corpo de uma pré-adolescente nos locais onde o tal homem tocou e da forma como tocou.
Poucas horas após a viralização do vídeo, pessoas próximas a esse homem saíram em defesa dele, com o clássico argumento: ‘eu o conheço, ele não seria capaz’. Essa é uma das alegações mais perniciosas utilizadas na defesa de suspeitos, porque reforça a mentira de que o agressor sexual é sempre um desconhecido ou uma pessoa introvertida da qual ninguém sabe muita coisa.
Segundo o 15º Anuário de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 60.460 estupros foram registrados no Brasil em 2020. Cerca de 53% das vítimas tinham até 13 anos, 86,9% eram do sexo feminino e em 85,2% dos casos o autor era conhecido da vítima. E esse dado é sobre apenas 10% dos estupros, ou seja, ano passado tivemos mais de 600 mil no Brasil.
Por causa disso, hoje eu ouço o argumento “quem me conhece sabe que eu não faria isso” pelo paradigma das estatísticas. É justamente pelo fato de a vítima e sua família conhecerem o suspeito que se deve aumentar ainda mais os sinais de alerta. No caso em questão, temos todos os elementos estatísticos dos crimes de violência sexual: a criança aparenta ser menor de 13 anos, é do sexo feminino e o suposto autor é conhecido dela e de sua família.
Os casos de flagra ou de suspeita de violência sexual contra crianças, portanto, devem ser sempre analisados com base na série histórica de dados e na conduta. Se a conduta não está clara ou pelo menos seu objetivo não está claro, o simples fato de a situação concreta reunir todos os elementos presentes nesses crimes deve ser gatilho para que seja instaurada uma investigação séria.
É necessário que as pessoas presentes no local dos fatos sejam ouvidas sobre o que viram, especialmente a pessoa que gravou as cenas. A polícia deve questionar, inclusive, se as testemunhas sofreram alguma intimidação do investigado para mentirem sobre os fatos ou sobre suas condutas
É preciso ouvir outras crianças e adolescentes com os quais ele convive a respeito de seu comportamento com elas. É preciso ouvir ex-companheiras, especialmente as que tinham filhas, sobre o comportamento dele com as crianças.
Importante ressaltar que todas as crianças e adolescentes presentes no local, caso uma investigação seja de fato instaurada, têm direito a serem ouvidas de acordo com a Lei da Escuta Protegida, em vigor no Brasil desde 2018, com objetivo de preservar a integridade de vítimas crianças e adolescentes quando forem depor sobre as violências apuradas.
Não sejamos cúmplices do silêncio e do medo de nossas meninas. Não precisamos esperar o pior do pior dos cenários para, enfim, conduzirmos uma apuração séria.
Em situações como essa não devemos nem condenar sem apuração, nem sair em defesa de um suspeito, sem que uma investigação seja conduzida – as duas respostas mais comuns que vemos hoje nas redes sociais
É preciso apurar e garantir a todas as pessoas envolvidas o direito de falarem e serem ouvidas com atenção e respeito. O suspeito pode, inclusive, solicitar ele mesmo que a polícia inicie a apuração dos fatos para provar sua inocência.
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