Othoniel Pinheiro Neto*
Os programas policialescos são os responsáveis pelas audiências mais elevadas nos últimos anos das TVs locais nos Estados brasileiros. Ao explorar o senso comum e os instintos mais primitivos dos indivíduos, eles são responsáveis pelo sucesso de seus apresentadores que, muitas vezes, conseguem transformar a fama em ótimos dividendos eleitorais.
Em muitos desses programas, todo o conteúdo programático é montado para buscar o sensacionalismo, visando atingir elevados índices de audiência, especialmente nas cenas em que dublês de jornalistas humilham pobres que são presos em periferias da cidade. Isso sem falar no constante incentivo à violência como forma de resolução dos conflitos sociais, bem como no incentivo expresso ao desrespeito aos direitos humanos.
Diante desse triste cenário, o tema da violência é tratado pelo jornalismo policial de forma a alimentar uma posição conformista por parte dos telespectadores em relação à sua situação social e também de forma a oferecer a esses um mecanismo compensatório para os vários tipos de frustração que nossa atual ordem social lhes impõe1.
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Nesse contexto, os programas de caráter policial e seus elevados índices de audiência vêm ocupando posições relevantes na sedimentação e na reafirmação de formas pelas quais a sociedade encara o problema da violência, uma vez que provoca, segundo Davi Romão[1], pelo menos dois grandes efeitos no público em geral: um conformista e outro paranoide.
A posição conformista leva os indivíduos a uma situação de apatia, por meio da qual todo o sistema punitivista repressor é protegido e incentivado. Nesse cenário, é preciso avalizar qualquer tipo de conduta dos agentes de segurança pública especialmente dirigida à camada mais pobre da população e atacar qualquer tentativa de questionamento dos excessos. É a “estandardização da cultura” e sua transformação em mercadoria, relacionada à total incapacidade do indivíduo pseudoformado (incapaz de fazer reflexões críticas, sendo-lhe, portanto, impossível questionar a realidade social dada) de realizar críticas e reinventar os padrões de pensamento impostos pelos programas, ou melhor, pelo sistema.
A função do indivíduo torna-se meramente instrumental (subtraída sua própria autonomia), para simplesmente propagar as formas de pensar de interesse da classe dominante. Assim, qualquer tentativa de reestruturação ou de aperfeiçoamento das formas de combate à violência não tem espaço nesse cenário de dominação e domesticação, possuindo um papel central no conformismo do indivíduo pseudoformado e da sociedade.
O programa policial torna-se, assim, um lugar estratégico para a propagação e a reafirmação da forma predominante na sociedade brasileira de tratar a questão da violência, sem nenhuma espécie de discussão, sob uma cultura imposta pela classe dominante e seu interesse na manutenção dos poderes simbólicos.
Já o aspecto paranoide diz respeito à construção de um mundo fundado na insegurança, proveniente da diária exposição de pessoas presas submetidas a execrações públicas e condenações midiáticas humilhantes, sem direito algum ao contraditório efetivo, criando uma paranoia punitivista que passa a identificar grupos determinados como a origem de todo o mal, justificando linchamentos e descarregamentos dos mais diversos ódios, provenientes das mais diversas frustrações individuais.
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Temos aqui o que Pierre Bourdieu identificou como uma luta simbólica de interesse de classes dominantes para imporem uma definição de mundo conforme seus próprios interesses, bem como imporem o campo de tomada de posições ideológicas, no qual está em jogo o monopólio da violência simbólica por meio de instrumentos arbitrários, embora ignorados como tais[2].
Infelizmente, no caso dos programas policialescos, esse campo de dominação também leva o indivíduo dominado e adestrado a aplaudir e festejar os instrumentos da execração pública mantenedora da violência social, aqui vista na própria violência policial, na violência moral e, acima de tudo, nessa violência que mantém o poder da classe dominante sobre as classes populares.
Eu mesmo, como defensor público do Estado de Alagoas, consegui uma decisão judicial que impediu a apresentação, por parte de autoridades públicas, de presos sujeitos à sua custódia. A determinação também impede o uso, por parte de veículos de imprensa, de móveis e imóveis públicos para produzir imagens de pessoas presas.
Trata-se de uma ação civil pública que objetivou proteger o direito à imagem da pessoa presa, bem como a presunção de inocência, pois uma simples exibição midiática de uma prisão de um sujeito já o condena por parte da sociedade, mesmo que a imprensa anuncie expressamente que se trata de um suspeito ou que posteriormente ele seja inocentado.
*Othoniel Pinheiro Neto é Defensor Público do Estado de Alagoas e Doutor em Direito UFBA.
Citações
[1] ROMÃO, Davi Mamblona Marques. Jornalismo Policial: indústria cultural e violência. Orientador: Pedro Fernando da Silva. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013.
[2] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 11-12.
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