Neurologista se despe de preconceitos ao lidar com histórias de EQMS. "Não estou atrás de provar nada. É um fenômeno universal que vale a pena ser investigado porque a medicina o deixou de lado"
Sibele Oliveira, TAB
“Foi o melhor momento da minha vida estar morta“, afirma a jornalista Valéria Palma, 48. Era 07 de maio de 1991. Como de costume, ela havia passado o fim de semana com o namorado em Itanhaém, no litoral de São Paulo. Por volta das dez da noite, estavam na rodovia Pedro Taques, a caminho da capital. Pegou a bolsa no banco de trás do Santana, onde estava o cachorro Panda, e tirou dela um pente. Em seguida, abaixou o quebra sol e se olhou no espelho para ajeitar os cabelos ainda molhados, sem perceber que Rogério estava fazendo uma ultrapassagem na contramão. Não viu mais nada.
O carro do casal bateu de frente com uma Belina e atingiu um Monza, que capotou. Os três idosos que estavam na Belina morreram na hora. Os ocupantes do Monza ficaram feridos, Rogério foi empurrado para cima da namorada e o pequinês de estimação foi arremessado à distância. De repente, Valéria recobrou os sentidos. Estava presa nas ferragens. Do lado de fora, pessoas ensopadas de chuva a olhavam fixamente. Observou filetes de água escorrendo no vidro. “Tire a bolsa do colo dela”, alguém gritou.
A mente de Valéria foi invadida pelo sonho que ela teve na semana anterior. Nele, sofria um acidente de carro e morria. Entendeu a lembrança como uma confirmação. “Senti que estava morrendo. Não era um raciocínio, mas uma consciência da morte. Percebi que estava indo embora“, rememora. Após desejar que a família soubesse que ela estava bem, foi sugada para um túnel extremamente branco, mas que não tinha bem o contorno de um túnel, pois não havia começo, meio ou fim. Nem tempo ou espaço.
Seu corpo deslizou suavemente pelo túnel, onde não havia ninguém, e se dividiu em partículas que foram se diluindo na luz. Por fim, tornou-se parte dele. Mergulhou sem medo na sensação de leveza, paz e plenitude e quis ficar ali para sempre. “Senti que a existência era aquilo. Como se o universo fosse aquele momento“, recorda. Despertou numa maca do Hospital Municipal de Itanhaém, acreditando estar morta, pois não se viu voltando do túnel. Então ouviu vozes de dois médicos. “Ela acordou”, disse um deles. Era madrugada.
Desmaiou de dor quando um dos médicos pegou seu pé esquerdo, que estava pendurado, e o colocou no lugar. Quebrou os tornozelos, o calcanhar e o cotovelo esquerdo e teve lesões profundas nos joelhos. Chegando em São Paulo, sentiu muita falta de ar e foi levada para o Hospital das Clínicas. Tinha sofrido um pneumotórax. Um de seus pulmões estava imóvel e o outro só funcionaria por mais quatro horas, segundo o pneumologista que a atendeu. Escapou da morte, mas sua recuperação foi lenta. Demorou seis meses para voltar a andar.
Ao receber a reportagem do TAB em seu apartamento, na Vila Mariana, numa manhã fria de segunda-feira, Valéria avisa que esse não é um assunto que faz parte de suas conversas, embora a experiência de quase morte a acompanhe o tempo inteiro — mesmo depois de 30 anos. Algo tão íntimo e secreto, que ela só descobriu que era uma EQM em 2010, quando fez um curso de tanatologia (estudo científico da morte). À medida que começa a relatar o que viveu, o desconforto inicial vai embora.
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De família católica, Valéria não interpreta a experiência como sendo religiosa, mas sim espiritual, por não ser desse mundo. Não sabe onde esteve, mas abre um sorriso quando diz que era maravilhoso. “Na hora, tive a percepção de que ali era a origem da vida. A morte parecia ser a origem de tudo. É dali que tudo nasce. Portanto, é para lá que tudo vai“, acredita. Continua convivendo com o fim, já que há alguns anos foi voluntária na área de cuidados paliativos e no momento é terapeuta do luto. Não acha esse trabalho pesado ou difícil. Mesmo porque, para ela, é natural partir.
Espectador do próprio fim
Alex Ribeiro do Prado, 65, exala arte. Pesquisador da obra do pintor e escultor Amedeo Modigliani, o ator, cantor, escritor, locutor e mestre de cerimônias carimba essa paixão em vários cantos de sua casa na Vila Formosa, zona leste de São Paulo. Como no quadro pregado na parede ou em seu livro, que repousa num suporte em cima de uma mesinha da sala. É nesse ambiente que ele conta o acontecimento mais surreal de sua vida, experimentado aos 17 anos. Alex fazia terapia na época, mas continuava mergulhado num mar de conflitos. Por isso, procurou uma psiquiatra. Saiu do consultório com uma receita para tomar Somaplus.
Um dia, ao sair do Teatro de Bolso, onde era um dos atores da peça “Um sonho maravilhoso”, foi a um restaurante com os colegas. Acabou exagerando na dose de uísque e ficou mais acelerado que o normal. Com uma forte sensação de estar perdido na vida, ao chegar em casa, no início da noite, tomou alguns comprimidos do medicamento para ansiedade. Queria dormir por vários dias seguidos. A mistura fez com que sua pressão arterial e batimentos cardíacos fossem ficando lentos. Foi o tempo da esposa se aproximar para Alex desabar. “Ele não estava inconsciente. Estava morto. Caiu nos meus braços“, afirma a ex-mulher de Alex.
Cleide Maria Ribeiro tirou alguns comprimidos da boca de Alex e chamou a sogra aos gritos, que desceu a escada correndo. Chacoalhou o filho e nada. Decidiram chamar a ambulância. A caminho do hospital João XXIII, tentavam explicar para o socorrista o que tinha acontecido. Mesmo apagado, do teto, Alex acompanhava a cena. Olhando para baixo, observava seu corpo inerte, o choro da esposa, o desespero da mãe, o paramédico tentando fazer uma massagem cardíaca, cada palavra dita. “É muito louco. Eu via tudo como espectador. Como se eu fosse uma câmera. Era a minha consciência“, descreve, com sua voz encorpada.
Chegando ao hospital, as duas mulheres responderam outra bateria de perguntas. Alex seguiu tranquilo, testemunhando tudo: a intubação, os acessos para medicamentos sendo colocados em seu braço e todos os demais procedimentos. Com os sentidos muito aguçados, podia estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. Conseguiu ver, por exemplo, um médico ir para outra sala conversar com sua mãe e sua esposa, e dizer que a equipe estava tentando trazê-lo de volta à vida, pois ele havia tido uma parada cardiorrespiratória. Paralelamente, enxergava médicos não-humanos.
Dois deles eram contornados por uma espécie de aura branca, enquanto o terceiro era delineado por uma luz violeta. Tinham uma imagem embaçada, como se estivessem atrás de um espelho salpicado de vapor depois de um banho quente. Sem emitir qualquer som, diziam que Alex ia voltar porque tinha muitas histórias para viver. Acordou tomado pela agonia. Começou a arrancar os aparatos médicos, levantou-se e procurou a saída. Apagou de novo e foi amarrado. Quando tudo passou, comentou o que viu com a esposa. “O que ele falou foi exatamente o que aconteceu. Estava com o corpo morto, mas espiritualmente vivo“, assegura Cleide.
A vida de Alex, que é espírita, nunca mais foi a mesma. “Mudou absolutamente tudo. Principalmente a questão do que é a vida, pois ela pode passar num segundo“, reflete. Essa certeza da continuidade faz com que ele não tenha medo de morrer ou de perder quem ama. Tanto que não sofreu quando a mãe faleceu, embora fosse muito ligado a ela.
O mesmo aconteceu na partida das irmãs, inclusive a que sucumbiu à covid em março. “Choca, né?“, comenta Maurício Mesquita, atual companheiro do pesquisador de artes, durante a entrevista. Ele o interrompe dizendo que não é frieza. “Sei que é tudo cíclico. Sei que daqui a pouco a gente vai estar junto de novo“, acredita.
O médico e o físico
Até ouvir as EQMS de três de seus pacientes, o neurologista e neurocirurgião Edson Amâncio, 73, não tinha muito interesse nelas. Mas com as histórias deles, sua descrença inicial foi dando lugar à curiosidade.
A postura do médico mudou de vez quando ele leu um estudo do pesquisador holandês Pim Van Lommel, publicado na revista científica The Lancet, em 2005. Estranhando o tema discutível na publicação, resolveu se debruçar sobre o assunto. Descobriu até uma EQM descrita no livro “A República”, de Platão, outra vivida pelo apóstolo Paulo e outra pelo psiquiatra e psicoterapeuta Carl Gustav Jung.
Homem da ciência, Edson se despe de preconceitos ao lidar com o tema. “Não estou atrás de provar nada. É um fenômeno universal que vale a pena ser investigado porque a medicina o deixou de lado”, ressalta.
Vive à procura de evidências, como as que publicou recentemente em seu livro “Experiências de quase morte (EQMs): ciência, mente e cérebro” (Summus Editorial). E jamais contesta as explicações místicas muitas vezes dadas por quem viveu a experiência. É um cético tolerante, como se define.
Mineiro de Uberaba, Edson foi professor de medicina por mais de 25 anos. Ele desmonta os argumentos que levam cientistas a acreditar que EQM é fantasia, imaginação, sonho ou efeito de droga. Menos um, que é a presença de dimetiltriptamina no corpo — uma substância altamente alucinógena – que aumenta na hora da morte ou da quase morte. Mas nada foi provado ainda.
“Quando falo nos médicos que são resistentes, não os critico. O ceticismo deles tem razão. Somos ensinados assim. A subjetividade para nós é uma coisa absurda“, diz. Não cogitam a ideia de que exista consciência sem atividade cerebral.
Edson está em seu consultório, no bairro Indianópolis, acompanhado do físico Carlos Moura Ribeiro Mendes, 65, que procura respostas para a morte desde os 12 anos. Em 1968, o garoto mandou cartas para a NASA na tentativa de acabar com suas dúvidas. Teve retorno de todas as missivas e até comida desidratada, usada para a alimentação dos astronautas, recebeu. Quando cresceu, tornou-se ateu, fez faculdade de física e foi bolsista da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Mas desistiu de ser pesquisador quando perdeu um irmão.
Carlos então decidiu ser músico e chegou a lançar um disco em 1984, mas abandonou a carreira musical para ser publicitário. Os anos se passaram. Uma noite, ele foi jantar na casa de Edson, pois seu pai era amigo do médico. No meio do papo, surgiram as EQMs. Ao ouvir a riqueza de informações do neurocirurgião, não teve dúvidas. “Opa! Tem como a ciência olhar para isso. Como eu entro nisso?“, perguntou-se. Foi o pontapé para uma reunião com outros dois pesquisadores, que decidiram colher histórias de quem teve a experiência.
A intenção era exibir os depoimentos num programa de televisão. Como não deu certo, Carlos teve a ideia de postá-los no canal “Afinal, o que somos nós?”, que atualmente reúne mais de 100 relatos.
Primeiro, Edson aplica o protocolo do cientista Bruce Greyson para checar se são realmente EQMs. Depois, ele e Carlos entrevistam as pessoas e colocam os vídeos no YouTube. “A gente criou um ponto de acolhimento para pessoas que passavam por isso e não contavam pra ninguém. Porque quando contavam, eram chamadas de loucas“, diz. Perguntado se acredita que há algo além dessa vida, o físico não titubeia. “Óbvio que existe. Só não vê quem não quer.”
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