Luis Gustavo Reis
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Colunistas 30/Ago/2021 às 14:48 COMENTÁRIOS
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Enedina Alves Marques, a primeira engenheira negra do Brasil

Luis Gustavo Reis Luis Gustavo Reis
Publicado em 30 Ago, 2021 às 14h48
Fotografia de Enedina Alves Marques.

Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político

Faz 41 anos que Enedina Alves Marques faleceu de infarto. Sozinha em seu apartamento, localizado na Rua Emerlino Leão, no centro de Curitiba, foi encontrada caída no chão frio e azulejado da cozinha. Aos 68 anos, a saúde debilitada e o corpo desgastado pela ação do tempo, terminou seus dias tragada pelo anonimato e pela invisibilidade a que são submetidos milhares de seres humanos, especialmente as mulheres.

O apagamento de seus feitos em vida pouco contrasta com as homenagens póstumas, incapazes de projetá-la para fora do labirinto do descaso. Mas as homenagens, cabe reconhecer, são esforços salutares na tentativa de inscrever a história da personagem nos anais da memória nacional.

Enedina faleceu em agosto de 1981, durante o rigoroso inverno paranaense. Foi preciso descer a sepultura para que traços de sua trajetória fossem recompostos e alguns agraciamentos pipocassem na cidade que ajudou a construir. No bairro do Cajuru, em Curitiba, uma rua foi batizada em sua homenagem. O Memorial da Mulher, também na capital paranaense, outorgou seu nome entre as 53 mulheres “notáveis” – todas elas brasileiras. Maringá, cidade vizinha, não ficou à deriva e inaugurou o Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques, reverenciando a personagem.

Ora, estimada leitora, ante a listagem dos tributos, cabe a pergunta: quem foi Enedina Alves Marques? Qual sua contribuição para história do Paraná, que a laureou em distintos espaços públicos e instituições privadas?

Nascida em 13 de janeiro de 1913, em Curitiba, Enedina era filha de negros imigrantes que chegaram à cidade em busca de melhores condições de vida. Numa Curitiba majoritariamente rural, marcada pelo mandonismo e que ensaiava um processo de urbanização, a família de Enedina, cuja procedência desconhecemos, somava-se às centenas de brasileiros e imigrantes europeus estabelecidos na região. Sua mãe, Virgília Alves Marques, provia o sustento da prole trabalhando em casas de família e lavando roupas daqueles que a contratavam. Enquanto isso, seu pai, Paulo Marques, prestava pequenos serviços de reparos em moradias e chácaras para custear as demais despesas familiares.

O matrimônio de Virgília e Paulo sucumbiu ao desgaste originado das brigas do casal, algo que empurrou a matriarca, junto com os filhos, a irem morar na casa onde Virgília trabalhava. Agora, num cômodo apertado e pouco ventilado, viviam na propriedade de Domingos Nascimento, importante intelectual republicano paranaense.

Os anos de Enedina na nova casa foi marcado pelo trabalho doméstico, brincadeiras com os filhos do republicano e por leituras esporádicas nos momentos de descanso. O acesso aos livros que circulavam pela moradia despertou o interesse da personagem pelos estudos, alfabetizada aos 12 anos numa cidade em que a maioria dos habitantes eram iletrados. O empenho nos estudos resultou em sua diplomação no ensino primário e, tempos depois, na conclusão do “ensino complementar” que a credenciava como “professora normalista”. Outorgado seu novo status, passou a lecionar em diferentes escolas do interior paranaense.

Enedina Alves Marques (à esquerda) e suas colegas “professoras normalista”. Curitiba, Paraná, década de 1930.

Com o ingresso no serviço público, Enedina substituiu a vassoura pelos livros e os serviços como empregada doméstica foram temporariamente interrompidos. Agora se dedicava a cuidar de sua própria casa, adquirida com recursos obtidos na docência, bem como no letramento dos estudantes.

Enedina era incansável. Conciliava as muitas aulas nas escolas regulares com serviços voluntários prestados aos desassistidos – crianças e adultos. E aqui serviço tem uma conotação objetiva: significa “servir ao outro”, “servir ao humano”. Por isso, recebia pessoas em sua casa, promovia cursos de alfabetização, atendia populações vivendo em rincões pouco visitados, inclusive pelo governo local, pouco interessante em suprir as demandas básicas dos desafortunados.

O parco salário de professora a impossibilitava de bancar um curso universitário em Engenharia Civil, algo com o qual sonhava desde a formação no magistério. Naquele período, meados de 1930, havia uma determinação legislativa aos postulantes do curso de Engenharia: precisavam fazer uma capacitação profissional de três anos, desembolsando recursos próprios, numa etapa chamada “Curso complementar”. Somente após o fim da jornada, ratificada a “aptidão”, estavam autorizados a seguirem para Universidade.

Com o intuito de viabilizar a formação superior, decidiu conciliar as aulas na escola com trabalhos em casa de família – a falta de recursos, portanto, e a determinação da graduação, fizeram Enedina relembrar os anos trabalhando como empregada doméstica. Na nova empreitada, escolheu a casa de Iracena e Mathias Caron, família curitibana de muitas posses e com inserção nos altos escalões hierárquicos da Curitiba novecentista. A família, inclusive, ciente das habilidades da contratada, aproveitava tanto suas habilidades no cuidado com a casa como a facilidade no trato das letras e dos números. Nesse sentido, pediam à professora que alfabetizasse seus filhos nos intervalos das faxinas e demais cuidados da moradia. Uma mulher negra e pobre, vejam só, letrando as crianças ricas de uma cidade até hoje manchada pelo racismo.

A dupla jornada de trabalho regular (professora – empregada doméstica) possibilitou que Enedina juntasse recursos, ingressasse no curso complementar e saísse dele diplomada – isso nos idos de 1939. No mesmo ano, redigiu um requerimento endereçado ao diretor da Faculdade de Engenharia do Paraná (FEP) solicitando sua inscrição nos exames de habilitação para graduação em engenharia civil. O pedido foi deferido e a data do exame foi marcada.

Após ser aprovada nos exames, apresentar a documentação exigida e fazer o pagamento da matrícula, Enedina ingressou como caloura no curso de engenharia civil destinado a formar a elite paranaense. Única mulher da turma, única negra, única trabalhadora de origem pobre, Enedina Marques dinamitou as barreiras impostas por àqueles que tentaram interditar seu sonho.

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A jornada no curso de engenharia foi repleta de sobressaltos. Eram recorrentes os desgastes entre nossa personagem e a burocracia universitária, que dificultava sua formação exigindo documentos em prazos curtos, alterando horários de cursos e prazos de entrega sem comunicar a estudante. Além disso, os embates entre Enedina e os colegas de turma eram frequentes, bem como o desentendimento dela com professores preconceituosos que suspeitavam da capacidade intelectual de uma mulher negra num curso hegemonicamente masculino, elitista e de pessoas brancas.

A Faculdade de Engenharia do Paraná espelhava o ordenamento social, marcado pela exclusão, pelo alijamento de determinados grupos e pelo racismo enraizado no cotidiano. Lidar com to-dos esses elementos nos espaços públicos e nas instituições privadas era condição sine qua non dos negros da cidade sulista. O curso de engenharia civil, por exemplo, contabilizava discentes de famílias influentes na cidade, com trajetória acadêmica consolidada e que não precisam trabalhar para bancar os estudos – essa moldura, evidentemente, não enquadra nossa biografada.

As vicissitudes de Enedina Marques ao longo da graduação extrapolaram os preconceitos de gênero, etnia e condição social. Além deles, convivia com reiterados comentários acerca de seu temperamento, que diziam ser “explosivos” e “desproporcionado”, toda vez que tomava posição sobre determinado assunto. Somado a isso, a estudante amargou a reprovação em algumas disciplinas, o que retardou sua formatura em 1 ano – dado relevante considerando o dispendioso valor da mensalidade numa época em que não existia ensino superior gratuito. Concluir a graduação, ademais, era expediente penoso, visto que o curso apresentava alto índice de reprovação e evasão escolar – menos da metade dos matriculados chegavam à formatura.

As intermináveis horas de estudo, a dedicação diligente, a persistência obstinada somada a outras particularidades desembocou na formatura de Enedina. Numa manhã ensolarada de sábado, dia 16 de dezembro de 1945, quando o país ainda discutia a renúncia de Getúlio Vargas, Enedina Alves Marques caminha até rua XV de Novembro, sobe as escadarias do Palácio Avenida, passa pelo saguão do edifício, cumprimenta alguns convivas e chega ao majestoso auditório. Pouco tempo depois, em sessão solene e abarrotada, o mestre de cerimônias anuncia o nome dos 33 formandos, sendo 32 deles homens. Emocionada, trêmula e com coração acelerado, Enedina Alves Marques ouve seu nome e se levanta para buscar o diploma. Observada pela multidão em murmúrio, caminha até a tribuna para pegar o canudo e deixar suas impressões digitais na história brasileira.

Dona Virgília Alves Marques, sua mãe, morrera anos antes e não estava presente para aplaudi-la, tão pouco seu pai, Paulo Marques, cujo paradeiro desconhecemos. Talvez alguns amigos próximos e seus irmãos, orgulhosos da caçula de 32 anos, celebram jubilosos o feito memorável. Naquele dezembro de 1945, o país conheceria a primeira mulher negra formada em engenharia no Brasil e a primeira mulher engenheira do Paraná.

Pouco tempo depois, Enedina começou a trabalhar na Secretaria de Estado de Viação e Obras Públicas. O respeito profissional nas obras foi conquistado pela competência e qualidade de seu trabalho, mas também pelo revólver que portava na cintura – artefato que desencorajava a iniciativa de dezenas de homens que tentavam pisoteá-la devido ao gênero e cor da pele.

A qualidade de seu trabalho fez com que o próprio governador, Moisés Lupion, pedisse sua transferência para o Plano Hidrelétrico do Paraná, onde trabalhou nas obras de aproveitamento de água dos rios Capivari, Cachoeira e Iguaçu. A Usina Capivari-Cachoeira, inclusive, que em 1970 foi batizada de Usina Parigot de Souza, existe até hoje e está localizada no munício de Antonina (PR). Esse projeto está entre os mais importantes da carreira profissional de Endina. Outras obras ainda contaram com sua participação, como o Colégio Estadual do Paraná (CEP) e a Fundação Casa do Estudante Universitário do Paraná (CEU), que ainda hoje atende estudantes de diferentes regiões brasileiras.

O trabalho de engenheira caminhava pari passu ao engajamento de Enedina em organizações empenhadas nas questões da mulher em Curitiba, entre elas a Sociedade Soroptimista e o Centro Paranaense Feminino de Cultura. Essas organizações realizavam atividades de diferentes naturezas e pressionavam o poder público para construir políticas de superação das desigualdades entre homens e mulheres, especialmente no estado paranaense.

Em 1962, após longos serviços prestados, Enedina conquista a aposentadoria e passa a dedicar mais tempo aos serviços voluntários que jamais abandonara. Além disso, realizou viagens para diferentes regiões do mundo e conheceu a realidade da discriminação racial e de gênero que assolam a humanidade. Teria vivenciado nesses lugares as mesmas situações lastimáveis protagonizadas em seu país natal? Teria conhecido a história de milhares de seres humanos suplantados por uma estrutura patriarcal e racista? Teria catalogado os feitos de outras mulheres anônimas que contribuíram peremptoriamente para suas realidades locais? Infelizmente não sabemos.

O que sabemos, porém, é que a engenheira passou os últimos dias de vida caminhando pelas ruas de Curitiba, conversando com vizinhos e amigos, observando o movimento dos transeuntes, refletindo sobre as contradições e as mudanças da cidade construída também pelos seus esforços. Desconhecida pela maioria de seus concidadãos, tragada pela invisibilidade, Enedina Alves Marques merece ter parte de sua trajetória recomposta para que seus feitos sejam reconhecidos pela nossa e pelas próximas gerações.

*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros escolares e coautor do livro “Ensaios incendiários sobre um mundo normatizado”

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