"A geração Z não quer as mesmas coisas que queria a geração que está neste momento planejando a escola. Precisamos trazer os jovens para a discussão. E garantir que todos tenham voz - não apenas os mais extrovertidos. (...)"
Paula Adamo Idoeta, BBC
Quando falava sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) com seus alunos adolescentes, a professora Márcia Maia muitas vezes notava a faísca de interesse deles em prestar a prova que, hoje, é a principal porta de entrada para a educação universitária no Brasil.
Mas ela percebia que parte dos alunos de baixa renda não se sentia pertencente ao universo do ensino superior ou que não tinha repertório o bastante.
“Tinha os estudantes que até queriam prestar o Enem, mas se sentiam constrangidos por suas desigualdades, pelo seu acúmulo de deficiências que vêm desde a alfabetização nas escolas públicas. ‘Sou bom aluno, mas não li esses 20 livros, não tenho como participar desses debates‘”, conta Maia, professora de português no Instituto Federal da Bahia, na região de Ilhéus.
Ela então criou um projeto de leitura para seus alunos, dedicado à redação do Enem — um dos pontos mais temidos para muitos estudantes que se preparam para o exame.
Maia usa como motivador sua própria história de vida, de estudante da zona rural baiana que passou na faculdade e ascendeu por meio da educação. “Sempre digo a eles que sou resultado de ter acreditado em estudar, algo que me situa em qualquer lugar que eu for“, conta.
Os alunos do grupo de estudos de Maia passaram a escrever uma redação por semana, que ela corrigia em detalhes, para ensinar-lhes a estrutura do texto exigida pelo Enem.
No ano passado, com a pandemia, o esforço precisou ser redobrado para manter o grupo engajado, mesmo sem as sessões presenciais.
“O volume de atenção caiu, os alunos ficaram mais dispersos”, relata Maia. “Fizemos aulões, lives de redação, mas 2020 foi um ano assustador. Tivemos uma abstenção histórica, porque o aluno sabia o quanto estava desconectado de tudo.”
Maia celebra os estudantes que persistiram, prestaram o Enem e conseguiram vagas em universidades. Mas lamenta o “abismo que aumentou em quilômetros de profundidade” entre os jovens que cursam o ensino privado e os que cursam o ensino público no Brasil.
“Para o aluno que já vivencia a exclusão, que não tem dinheiro para pagar cursinho e se vê solto nesse período (de fechamento das escolas), o que acontece?”
Queda no número de inscritos no Enem
O relato de Márcia Maia coincide com o de estudantes, professores, ativistas e especialistas em educação ouvidos pela BBC a respeito de uma perigosa desconexão dos jovens com a escola e com o Enem — e uma aparente descrença, entre uma parcela crescente dos estudantes, no poder dos estudos como forma de ascensão social.
Um exemplo disso é o número de inscritos (3,1 milhões) no Enem 2021, índice mais baixo dos últimos 16 anos. O exame chegou a ter 8,7 milhões de inscritos em 2014.
O desalento nessa faixa etária se reflete em outros dados.
Segundo relatório do Unicef (braço da ONU para a infância), em novembro do ano passado, havia cerca de 1,5 milhão de jovens de 15 a 17 anos sem qualquer tipo de acesso à educação no Brasil.
Em maio deste ano, pesquisa do Datafolha para fundações educacionais apontou que 46% dos pais de 1,5 mil alunos dos ensinos fundamental e médio entrevistados diziam não ver motivação nos seus filhos com os estudos.
Ao mesmo tempo, a proporção de jovens nem-nem (que nem trabalham, nem estudam) na faixa etária de 15 a 19 anos atingiu seu maior patamar — 25,5% no último trimestre de 2020 — nos oito anos em que o segmento é analisado pela pesquisa Pnad Contínua, segundo levantamento da consultoria iDados cedido ao jornal Valor Econômico.
“Sem trabalhar e sem estudar, esses indivíduos não estão acumulando capital humano, o que pode levar a perdas de rendimentos significativas e persistentes que comprometem suas trajetórias laborais ao longo da vida“, diz estudo recém-lançado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) sobre esse tema. “Para os jovens, o legado da crise sanitária pode durar décadas.”
“Muitos jovens aqui da região tiveram que parar os estudos durante a pandemia, e aumentou o número de jovens nas favelas que viraram chefes de família” porque seus pais perderam o emprego, diz à BBC News Brasil a arquiteta Ester Carro, ativista social na comunidade de Jardim Colombo, zona Sul de São Paulo.
“Percebo cada vez mais jovens de 16 ou 17 anos que tiveram que começar a trabalhar. Muitos também estão cada vez mais expostos ao tráfico de drogas nas ruas“, complementa seu colega Erik Luan Santos, também morador do bairro. “E na época de se inscrever nas universidades eu perguntava a eles ‘e aí, vai prestar?’ a resposta era ‘ah, não, tô trabalhando, preciso ganhar dinheiro agora’.”
O problema, porém, vem de antes da pandemia, dizem ambos os ativistas — que, por sinal, desafiaram prognósticos e entraram na USP (Ester Carro já concluiu seu mestrado em Arquitetura; Erik está concluindo a graduação em Saúde Pública).
“A questão é que nem se fala muito no Enem por aqui“, diz Ester Carro sobre o Jardim Colombo.
“Não se discutem os sonhos dos moradores e o que de fato eles podem fazer para alcançá-los. A maioria dos pais não fala ‘precisa ir pra faculdade’; fala ‘precisa trabalhar’. É diferente do incentivo que os jovens de classe mais alta têm. Não há essa clareza de mostrar que eles (jovens de baixa renda) são capazes, e de mostrar o quanto vão crescer no longo prazo e o que podem conquistar com uma faculdade.”
‘Ninguém fala que você pode ser médico, advogado’
Na verdade, o que Carro ouviu quando decidiu que queria estudar Arquitetura foi o contrário. “Me diziam que eu não seria arquiteta. Que não era para uma mulher negra de periferia (como eu). Ninguém fala que você pode ser médico, advogado. Falam só dos trabalhos medianos.”
É uma experiência parecida à vivida por Matheus de Araújo Moreira Silva, 26, morador de Feira de Santana (BA), que começou a cursar Medicina na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia tendo estudado por conta própria, em condições adversas (conheça em detalhes a história de Matheus aqui: ‘Não há meritocracia sem direitos iguais‘: o desabafo do jovem que ficou famoso ao passar em Medicina estudando sem luz elétrica).
“Os meninos aqui, quando terminam (o ensino médio), vão trabalhar no comércio. Não conseguem imaginar que podem ser algo grande, como médico, empresário — não é ‘para eles’. É complicado sonhar grande na situação em que você vive. Eu fui exceção. (…) Quando eu falava que queria ser médico, o pessoal zombava. Quando você sai desse eixo, vê que a escola pública é fomentada para esse ciclo mesmo: terminar o colégio e trabalhar“, relata.
E, novamente, o cenário piorou com a pandemia e com o fechamento das escolas.
“O que era difícil se tornou quase impossível na mente deles (estudantes)”, prossegue Matheus. “O convívio com os colegas é legal, aquele ambiente de estudos te incentiva a estudar. E quando você vai pra tela do celular (estudar à distância), sem contato físico, te desmotiva demais.”
Mas existem iniciativas — de cursinhos populares a projetos de motivação nas escolas – que tentam fazer com que histórias como a de Matheus, Erik ou Ester deixem de ser exceção.
Em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, Vinícius de Andrade criou em 2017 o projeto Salvaguarda, com o objetivo de aproximar os jovens da rede pública do ambiente do ensino superior — desde ajudá-los no processo decisório de qual curso buscar até mantê-los motivados para as provas e desmistificar a percepção de que “só quem tem o perfil nerd passa” em vestibulares, explica Andrade.
O projeto, que começou atendendo jovens da região de Ribeirão, hoje conta com mais 15 mil alunos do Brasil inteiro, acompanhados por 1,3 mil voluntários (estudantes universitários que oferecem mentoria aos adolescentes).
Uma das propostas é transformar a ideia abstrata de “estudar é importante” em passos concretos, como aprender o estilo das provas e da redação do Enem, monitorar os vestibulares que tenham os cursos que cada jovem deseja e oferecer conteúdo preparatório para deixá-los afiados para as provas.
Na pandemia, Andrade viu crescer o medo, a sobrecarga e a sensação de “não dar conta” entre os estudantes.
Para alguns, “o desalento está maior do que a esperança de ‘e se der certo e eu passar no Enem?’. Daí eles não acham que vale a pena a energia gasta nisso“, lamenta Andrade.
Em julho, na reta final das inscrições para o Enem 2021, celebridades e movimentos sociais se mobilizaram para pagar as inscrições de R$ 85 para jovens de baixa renda, como um empurrão final para quem queria prestar a prova mas não havia conseguido isenção na taxa.
O Movimento Amplia Enem, por exemplo, relata ter conseguido mobilizar 1,4 mil pessoas para para pagar a inscrição de 835 estudantes, sendo 80% deles negros.
De volta a Ilhéus, a professora Márcia Maia conta que, ao longo dos anos, já pagou (ou criou vaquinhas para pagar) aos seus alunos inscrições, almoços, passagens de ônibus, “tudo em nome da permanência deles na escola“, conta.
Foi uma ação dessas que fez diferença em sua própria trajetória, quando Maia ainda era estudante de cursinho e estava sem dinheiro para prestar o vestibular em Letras.
“Me inscrevi porque um amigo me emprestou um dinheiro – se não fosse ele, eu ia deixar o vestibular passar. E acabei passando em primeiro lugar”, conta. “Como é legal alguém acreditar, dizer ‘você vai conseguir, sim’.”
Agora, com seu grupo de estudos em redação para o Enem, Maia também dedica energia a cuidar “do emocional dos alunos, dizendo ‘você pode, sim. Você é capaz‘”.
“Mostramos que é possível, sim, que eles se saiam bem na redação do Enem”, diz Maia. “Os alunos que conseguem manter o ritmo no grupo de estudos saem do nível mediano e vão para os 80% (de excelência). Alguns chegaram a fazer 960 pontos na redação (perto do máximo de mil).”
Motivação: ‘jovem quer ser acolhido’
Em um momento em que as redes públicas se preparam para a volta às aulas — algumas ainda no ensino remoto ou híbrido; outras, já no presencial —, os problemas a serem enfrentados são grandes: de segurança sanitária e ventilação adequada nas escolas até os atrasos de aprendizagem que se acumularam na pandemia.
Um estudo divulgado em 23 de julho pela Rede de Pesquisa Solidária aponta que, embora as redes públicas de ensino tenham conseguido estruturar melhor seus planos no primeiro semestre de 2021, a nota média dos pesquisadores para o ensino à distância do país foi de 5,1 (de um máximo de 10), levando-se em conta os meios de transmissão, a capacidade de acesso dos estudantes, a cobertura das aulas e a existência ou não de supervisão dos adultos sobre o processo de aprendizado.
Além disso, há problemas financeiros graves: em um momento de descoordenação por parte do Ministério da Educação, as despesas dos Estados com educação caiu 9,1% no ano passado em comparação com 2019.
Tudo isso vai se traduzir em dificuldades persistentes ao longo de 2021 e além.
Mas em meio a tudo isso é preciso prestar atenção também à motivação e à individualidade de cada aluno que vai voltar (ou não) à escola, diz à BBC Tatiana Filgueiras, vice-presidente de educação, inovação e estratégia do Instituto Ayrton Senna.
“O que a gente vê nas pesquisas é que os jovens estão pedindo acolhimento”, afirma. “Não é apenas um cérebro ‘aprendedor’, é uma pessoa, e ele quer ser tratado assim para voltar à escola.”
A pesquisa ConVid Adolescentes, lançada pela Fiocruz no final de 2020, apontava que quase a metade dos jovens entrevistados dizia sentir-se preocupado, nervoso ou mal-humorado, na maioria das vezes ou sempre. Esses sentimentos eram mais fortes justamente na faixa etária de 16 a 17 anos.
Filgueiras diz que a motivação dos estudantes passa por resgatar o espírito de curiosidade e criatividade, que, de modo geral, costuma decair à medida que os anos escolares avançam. De certa forma, é como se a própria escola fosse “matando as competências que são a base para o aprendizado todo” – competências essas que, por sinal, serão cada vez mais importantes para os trabalhos do futuro.
Em contrapartida, já existem muitas iniciativas para engajar os alunos no aprendizado e ajudá-los a planejar seu futuro na educação — incluindo algumas das iniciativas descritas nesta reportagem. O importante, agora, é fazer isso ganhar escala e se tornar parte formal do funcionamento das escolas, prossegue Filgueiras.
“Tem muita coisa (voltada à motivação) em curso, só que sendo feita de forma desarticulada e sem intencionalidade (ou seja, informalmente)”, opina.
“E o truque, agora, é dar voz aos estudantes. A geração Z não quer as mesmas coisas que queria a geração que está neste momento planejando a escola. Precisamos trazer os jovens para a discussão. E garantir que todos tenham voz – não apenas os mais extrovertidos. (…) A escola vai precisar ser cada vez mais personalizada para que os alunos não a abandonem.”
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