Multa contra equipe da Noruega por não usar biquíni reacende debate sobre uniformes femininos. Mulheres são forçadas a destacar a aparência física em detrimento do conforto para satisfazer patrocinadores e dirigentes esportivos
DW
Por usar shorts em vez de biquíni na disputa pela medalha de prata contra a Espanha no Campeonato Europeu de Handebol de Praia feminino, em julho, a equipe da Noruega foi multada em 1.500 euros (R$ 9.200) pela Federação Europeia de Handebol (EHF, na sigla em inglês).
Segundo o órgão, a penalização se deveu aos trajes “não estarem de acordo com os regulamentos de uniformes de atletas definidos nas regras do jogo de handebol de praia da IHF [Federação Internacional de Handebol]”.
Antes do campeonato, a Noruega solicitara à federação europeia a permissão de usar shorts, o que foi negado, com a advertência de que as violações das regras seriam punidas com multas.
“Tínhamos medo de ser expulsas do torneio”, disse a goleira da equipe, Tonje Lerstad, à DW. “Mas, na última partida, já estávamos dispostas a pagar se fôssemos multadas. O que poderia acontecer de pior?”
O que acabou acontecendo foi, nas palavras de Lerstad, “uma loucura”. O fato ganhou atenção mundial e a cantora americana Pink ofereceu-se para pagar a multa. O debate sobre as regras de vestuário para atletas do sexo feminino ganhou impulso. “Espero que tenhamos começado uma tendência”, disse a jogadora.
Jogos de Tóquio como nova plataforma
As atletas femininas de muitos esportes há muito reclamam do que consideram regras sexistas e duplicidade de padrões, em comparação com seus colegas de modalidade masculinos. O assunto voltou à tona nos Jogos Olímpicos em Tóquio.
Mary Harvey, CEO do Centro de Esportes e Direitos Humanos, de Genebra, diz que as mulheres são frequentemente forçadas a destacar a aparência física em detrimento do conforto, para satisfazer patrocinadores e dirigentes esportivos.
“Antes de tudo, se você é uma atleta de [alto] nível, quer ser avaliada pelo seu desempenho. Uma coisa é a função do que você está vestindo e como isso a ajuda fisiologicamente. A outra é mental: se se sente bem, você vai obter bons resultados.”
O caso do handebol de praia não é único. Em Tóquio, as ginastas alemãs tomaram posição contra a sexualização de seu esporte ao se apresentarem nos chamados unitards, uma roupa de corpo inteiro que elas haviam usado pela primeira vez em competições em abril.
Na época, uma das ginastas, Elisabeth Seitz, disse à DW que gostaria que cada atleta do sexo feminino “tivesse a oportunidade de decidir sozinha o que quer vestir”. Já em 2017, no Brasil, a equipe de handebol de areia CopaBeach/Cepraea, do Rio de Janeiro, foi ameaçada de perder uma partida por W.O., porque as atletas se recusaram a jogar de biquíni, colocando um shorts por baixo.
Medo de atletas masculinas
Os obstáculos variam de esporte para esporte. A ginástica permite a roupa de corpo inteiro, e é o que a maioria usa. Para o handebol de praia feminino, entretanto, as regras dizem que o uniforme consiste “em tops e biquíni, além de eventuais acessórios”.
Na esteira do protesto da equipe norueguesa, a Federação Internacional de Handebol, que estabelece as regras do esporte, provavelmente vai reconsiderar seu código de vestuário. “Não consigo pensar em nenhum outro resultado”, disse Lerstad.
Segundo ela, ninguém, inclusive a própria federação, parecem convencidos da razão de tais regras de vestuário ainda existirem. Em alguns casos, diz a historiadora esportiva Johanna Mellis, as regras são necessárias para garantir que os esportes sejam justos e seguros. Mas em outros, diz ela, trata-se de controlar a aparência das mulheres e como elas são percebidas.
“Historiadores do uniforme mostraram que havia tanto medo de as atletas femininas parecerem masculinas que [os cartolas] quiseram garantir que os uniformes as deixassem femininas, sedutoras e atraentes para os homens.”
Afinal, quem pode esquecer como Sepp Blatter, ex-presidente da Fifa, a entidade máxima do futebol, sugeriu certa vez que as jogadoras deveriam usar “calções mais apertados” para aumentar a popularidade do futebol feminino? A ideia não entrou em prática, mas a insinuação era clara.
Raízes na cultura branca masculina ocidental
Segundo Mellis, além da sexualização, é preciso considerar questões de raça e religião. Ela considera que, no caso do handebol de praia, houve um “resultado positivo”, mas não o vê necessariamente como um ponto de virada, porque a sexualização é parte de uma questão mais ampla.
“A questão é que essas organizações relutam em fazer qualquer mudança que dê a impressão de que tiveram que abrir mão de algum poder. Em grande parte, são homens que dirigem essas organizações. Todas estão enraizadas na cultura branca masculina ocidental.”
Mellis aponta como exemplo o fato de que em Tóquio Alice Dearing, a primeira nadadora negra a representar o Reino Unido em Jogos Olímpicos, foi proibida de usar uma touca afro para proteger os cabelos. Trata-se de uma touca de banho maior, para se adequar ao volume de cabelos com dreadlocks, tranças, encaracolados e crespos. Mas segundo a Fina, o órgão internacional dirigente do esporte, elas não seguem “a forma natural da cabeça”.
“Isso traz ecos de uma frenologia racista”, analisa a também co-apresentadora de um podcast sobre os riscos dos esportes. “A natação é uma verdadeira preocupação para a saúde pública. Se as pessoas não souberem nadar devido ao racismo sistêmico ou outras formas de discriminação, isso pode resultar em horríveis taxas de afogamento – como, de fato, tem ocorrido.”
Apesar de terem sido eliminadas as restrições em alguns esportes, como o boxe, em outros as muçulmanas ainda podem ser multadas ou mesmo banidas por usarem hijab.
“Em algumas sociedades, a cultura dita o que se pode e não pode usar”, aponta Harvey. “Por exemplo, se você proibir o hijab[designação genérica para todos os tipos de véus usados por muçulmanas] numa competição internacional, então muitas mulheres não poderão participar. O vestuário é também uma questão de acesso em algumas culturas.”
Mais diversidade na tomada de decisões
Para resolver o problema, tanto Mellis quanto Harvey concordam que os órgãos esportivos precisam de mais mulheres e mais diversidade em seus processos de tomada de decisão. “Fundamental para tudo isso, é a voz dos atletas”, observa Harvey. “Para estar bem fundamentado, não basta falar com apenas um atleta. É preciso falar com vários, especialmente com as mulheres, em todo o mundo.”
Há aspectos de sociedades mais conservadoras que devem ser levados em conta a fim de não resultar em exclusão. “As mulheres podem influenciar as decisões, mas não são elas que as tomam. Quanto mais diversidade se trouxer para a tomada de decisões, melhores elas serão. Se são dez suíços tomando decisões sobre o que as mulheres podem usar ou não, esse não é o processo que queremos.”
Segundo a jogadora norueguesa Lerstad, não há momento melhor para repensar o assunto: “Mostramos que, ao fazer o que fizemos, tivemos um monte de apoio. Qualquer outro time ou atleta terá também. Agora que colocamos esse tópico no ar, há muito foco nele. É realmente o momento de se fazer uma mudança.”