Enquanto Bolsonaro participava de treinamento militar com as Forças Armadas em Formosa (GO), família era resgatada de trabalho escravo em fazenda próxima. Homem, mulher e cinco filhos viviam entre escorpiões, cobras, sem água e luz e sob a poeira da mineração de calcário
Leonardo Sakamoto, em seu blog
Um homem foi resgatado do trabalho análogo ao de escravo em uma fazenda de gado durante uma operação de fiscalização, em Formosa (GO), após mais de oito anos de serviço. Ele vivia com sua esposa e cinco filhos dormindo entre escorpiões e cobras, sem água e luz, com pouca comida e sob a poeira da mineração de calcário que ocorria perto de seu alojamento. Enquanto isso, no mesmo município, as Forças Armadas realizavam um treinamento militar que contou com a presença do presidente da República.
“Escorpião era demais, tinha muito. Um me picou e fiquei seis meses com a perna dormente. Já acordei com cobra no pescoço. Tinha coral, papa-pinto… Se não forrasse o chão e tapasse os buracos da casa todos os dias, os escorpiões picariam meus meninos. Dormia todo mundo no mesmo lugar. Assim eu ficava de olho nos bichos.”
O relato é de Marilene da Costa, esposa de Itamar, trabalhador que foi resgatado na operação iniciada no dia 11, em Formosa. Todos passaram anos usando o mato como banheiro, sem energia elétrica e consumindo água salobra de um poço.
Certamente você ouviu falar no município. Enquanto auditores fiscais do Ministério do Trabalho, um procurador do Ministério Público do Trabalho, um advogado da Defensoria Pública da União e policiais federais retiravam o trabalhador e sua família da propriedade, a Marinha fazia uma operação de treinamento militar em Formosa, com a participação do Exército e da Força Aérea.
Foram os blindados fumacentos da Operação Formosa que atravessaram a Esplanada dos Ministérios na “demonstração de força” de Jair Bolsonaro no dia da derrota do voto impresso na Câmara dos Deputados.
Tão alheia à existência das tropas quanto às tropas estavam alheias à sua existência, a família esperava a visita do poder público. “Fiquei oito anos sofrendo que nem cachorro. Só no finalzinho, vieram o Conselho Tutelar e a Assistência Social. E, com isso, chegou água e luz“, explicou a esposa do trabalhador à coluna.
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Ironicamente, após mais de oito anos sob velas, as lâmpadas chegaram uma semana antes da operação de fiscalização chegar e constatar o trabalho degradante. A denúncia partiu de um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
O proprietário da fazenda Muzungo, Meroveu José Caixeta, informou através de seu advogado Ítalo Xavier que, até o momento, não teve acesso integral aos autos do procedimento de inspeção. O representante afirmou que “o cliente colaborou com os trabalhos da fiscalização, firmando Termo de Ajuste de Conduta com o Ministério Público do Trabalho, para atender todas as exigências que entenderam pertinentes“.
Um pó branco cobria roupas, comidas e pessoas
Além dos bichos peçonhentos, da falta de comida, da água salgada e da escuridão, havia o pó. Muito pó.
A precária casa, em que caberia apenas uma pessoa, ficava a menos de 100 metros de uma empresa de mineração, vizinha à fazenda, e a 200 metros do canteiro de extração de calcário. A produção, que seguia barulhenta dia e noite, levantava uma nuvem de pó branco, que cobria comidas, roupas, pessoas.
“A quantidade de pó era impressionante”, afirma a auditora fiscal Andréia Donin, coordenadora da operação. A filha de 14 anos do casal tem bronquite asmática e sofria com a poeira intensa – os outros filhos têm 16, 8, 7 e 4 anos.
A situação da saúde da família está sendo investigada por conta da exposição prolongada do produto.
“Toda hora você tinha que limpar a casa e ficar com pano no nariz porque era pó demais”, afirma Marilene. “Eu tô com caroço no pescoço, perdendo a voz. Fui ao medico e ele disse que isso foi causado pela poeira. Tenho que ir pra Goiânia para operar, mas quem vai ficar com as crianças?”
O procurador do trabalho Tiago Cabral, que acompanhou a ação, diz que tem constatado uma piora nas condições oferecidas aos trabalhadores. Segundo ele, há patrões que acreditam que, para os trabalhadores, basta a replicação da miséria.
“Eles não conhecem seus direitos, são vítimas fáceis do trabalho escravo. O pai da família havia sido vítima de trabalho infantil. É a receita da superexploração. O empregador sabendo dessa situação colocou o trabalhador próximo de um local com extração mineral, aspergindo poeira sílica“, afirma.
Marilene considera que a pior coisa foi ver o sofrimento dos filhos.
“Tenho dois filhos que nem sabem o que é uma televisão. Olhava para eles e chorava muito. No tempo da chuva, a gente tinha que ficar enrolado num canto porque a goteiragem era demais. Muita muriçoca, muito inseto. O fogão de lenha era dentro, tinha fumaça demais. Pó da firma [de mineração] e a fumaça do fogão… Sempre pedíamos uma casa melhor, e não faziam nada“, afirma.
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“Se o senhor visse a casa, ia ficar besta. Eu mandava meus filhos pra escola com roupa de goteira.”
Uma casa nova para a família como indenização por danos morais
De acordo com Andréia Donin, quando a fiscalização chegou ao barraco, a única carne disponível estava secando ao sol, com pó, pois não havia geladeira. Apesar de ser uma fazenda de gado, a família conseguiu o produto através de uma doação na feira.
Outro trabalhador morava com sua família na fazenda, mas em uma casa com boas condições e longe do pó da mineradora. Ele não estava em condição de escravidão.
Itamar recebia R$ 50 por diária de serviço, mas não tinha carteira assinada, nem contrato de trabalho apesar do longo relacionamento com o empregador. Segundo a fiscalização, havia um acordo fraudulento de quitação de verbas trabalhistas, que foi desprezado para o cálculo das verbas rescisórias e direitos devidos. Ele recebeu R$ 24.921,84.
Ele também terá direito a três meses de seguro-desemprego concedido a resgatados da escravidão.
Somado a isso, o Ministério Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União fecharam um acordo para uma indenização por danos morais que garantirá uma casa no valor de, pelo menos, R$ 100 mil trabalhador a ser comprada ou construída no município em um prazo de seis meses.
“Se não entregarem em seis meses, o acordo estipula uma multa diária de R$ 1 mil até a entrega do bem com o valor revertido ao trabalhador“, afirma Tiago Cabral.
O título de propriedade ficará no nome dos cinco filhos do casal. “Como o trabalhador muda com a família, a família sofre com a degradação e a negação dos direitos básicos, como uma moradia com a mínima condição de habitabilidade“, explica o procurador.
*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo
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