Uma imagem que entrará para a história e representará a humilhação do Ocidente diante de mais uma tentativa fracassada de "exportar a liberdade". Os 2 trilhões de dólares despejados sobre o Afeganistão superaram o Plano Marshall de reconstrução da Europa. Nos corredores da ONU, a resposta ecoa: "nunca foi pelo povo afegão e sua liberdade"
Jamil Chade, em sua coluna
Uma imagem que entrará para a história. Mas uma imagem que representará a humilhação do Ocidente diante de mais uma tentativa fracassada de “exportar a liberdade”. Às 23h59 de segunda-feira, o último soldado americano deixou Cabul, encerrando a guerra mais longa dos EUA e colocando um fim a uma desastrada tentativa de implementar um governo aliado na região.
A “honra” coube ao militar americano Chris Donahue, o último a subir no último avião deixando o aeroporto de Cabul, um espelho do sangue e caos derramado sobre o Afeganistão. Por uma câmera noturna, o que se vê é uma espécie de fantasma da arrogância do Ocidente, transformado em naufrágio.
Tão histórica como essa imagem é a dos nazistas desfilando por Paris, da garota queimada fugindo de bombas no Vietnã, o solitário chinês diante de tanques em 1989 ou a queda do Muro de Berlim. Mas ela entra na classificação das grandes humilhações, ao lado da retirada de Saigon em 1975 ou o êxodo dos soviéticos do mesmo Afeganistão.
Ao sair do Afeganistão – conhecido como cemitério de impérios – americanos e europeus deixam um país longe da ideia de estabilização, democracia e direitos, mesmo que certos avanços tenham sido conquistados.
Hoje, são 2,5 milhões de afegãos vivendo como refugiados. Os 20 anos geraram pelo menos 47 mil mortos entre civis e milhares de feridos e traumatizados.
Apesar de ter despejado mais de 2 trilhões de dólares sobre o país, o Ocidente não conseguiu promover a revolução que esperava. O Afeganistão continua sendo um dos 30 países mais pobres do mundo, um dos mais corruptos e maior produtor de heroína no planeta.
Metade das crianças está desnutrida, apenas um terço das mulheres sabe ler e escrever e, agora, 85 bilhões de dólares em armas estão nas mãos de um grupo medieval.
Muitos hoje se perguntam: para onde foi tanto dinheiro e como uma estratégia que superou o Plano Marshall de reconstrução da Europa não conseguiu atingir suas metas. Nos corredores da ONU, a resposta ecoa: “nunca foi pelo povo afegão e sua liberdade”.
Se os discursos de direitos humanos permearam as justificativas da ocupação, a realidade é que apenas bolsões de avanços foram identificados. E, ainda assim, apenas em poucas cidades. Não por acaso, os diferentes presidentes do Afeganistão nos últimos 20 anos eram, ironicamente, chamados de “prefeitos de Cabul”. Hipocritamente, eram recebidos pelo mundo como líderes de um país que eles mesmos sequer podiam visitar em sua totalidade.
Hipocrisia também não faltará nesta terça-feira, quando ministros europeus se reúnem em caráter de emergência para tratar da crise afegã. Mas, na agenda em Bruxelas, não está a situação da população, entregue ao destino do Talibã. A meta do bloco é a de encontrar uma estratégia comum para impedir que haja um fluxo migratório para a Europa.
Ou seja: ocupamos teu país, não conseguimos reconstruí-lo, armamos de forma inesperada o Talibã e abandonamos todos quando fica claro que fracassamos. Mas fechamos nossas fronteiras para quem tentar escapar da morte.
Enquanto isso, na ONU, a paralisia é total. A entidade conta com apenas 37% do orçamento que solicitou para sair ao resgate da população, enquanto resoluções são aguadas para, justamente, impedir qualquer possibilidade de uma ação coordenada internacional.
No Conselho de Direitos Humanos da ONU, as vítimas afegãs foram alvo de um escárnio quando os membros do órgão aprovaram uma decisão pela qual instruíam as Nações Unidas a monitorar a situação do país, sem sequer criar um mecanismo para tal investigação ou inspeção. Na resolução, de fato, não houve sequer um ato de “condenação” contra as violações de direitos humanos cometidas pelo Talibã.
Dias depois, no Conselho de Segurança da ONU, uma vez mais uma resolução é aprovada. E, uma vez mais, sem qualquer significado real para a população local. O documento aprovado pelas potências pede que o grupo fundamentalista acate o direito internacional. Mas não prevê qualquer tipo de punição, ação ou medida caso um massacre ocorra.
Enquanto o Ocidente vê o retrato de seu fracasso por lentes especiais e a comunidade internacional se divide sobre como lidar com um grupo criminoso, uma nova era começa em Cabul. E a música silencia.