Os ‘alquimistas’ novo-desenvolvimentistas estão chegando!
Anos de críticas à gestão econômica dos governos Lula-Dilma, ao conservadorismo da política monetária e à supervalorização cambial continuada deram ao novo-desenvolvimentismo a dignidade da ‘rota ainda não tentada’
Nathan Caixeta*, Brasil Debate
Durante quase duas décadas, a escola de economia autodenominada “novo-desenvolvimentista” tem produzido uma enciclopédica literatura, pretendendo renovar as interpretações sobre o desenvolvimento econômico brasileiro à luz das tendências recentes do capitalismo contemporâneo: a globalização, o neoliberalismo e a financeirização da riqueza. Liderados por Bresser-Pereira, Nelson Marconi e José Luís Oreiro, entre outros, tem enfrentado a labuta digna dos bons economistas: colar as retinas na realidade para ver se ela corrobora suas suposições teóricas.
Anos a fio de críticas à gestão econômica dos governos Lula–Dilma, ao conservadorismo da política monetária e à supervalorização cambial continuada, deram a essa teoria a dignidade da “rota ainda não tentada”, à qual Ciro Gomes se apegou para desenhar seu modelo econômico, enquanto eterno candidato presidenciável de terceira via.
Contudo, depois de passar anos com pedregulhos nas mãos para atirar contra a política dos preços macroeconômicos “fora do lugar”, o melhor dos mundos foi apresentado aos novo-desenvolvimentistas quando a crise econômica de 2014, acompanhada da mudança no cenário externo a partir de 2016, fizeram, um a um, os preços-chave da economia irem para o lugar.
Primeiro, a taxa de câmbio disparou e nos píncaros permaneceu. Depois, a taxa de salários se rendeu ao cenário de elevado desemprego, reduzindo-se em termos médios, acompanhada pela precarização das relações de trabalho. A inflação, que havia fugido de seu lugar, logo retornou à estabilidade, colando-se à meta e nela permanecendo, como quem dorme esperando qualquer surto dos preços básicos.
As taxas de lucros das empresas apresentaram dois movimentos: ou dispararam com o enxugamento dos custos operacionais – leiam-se demissões – ou “micaram” pela queda das receitas. Mas, na média, respeitaram o bom e velho princípio da grande empresa moderna: “o que vale é distribuir dividendos e fazer caixa para gerar valor ao acionista”.
O fluxo de caixa ao acionista é, este sim, o parâmetro da taxa de lucro. Os balanços contábeis são apenas para os fiscais não “encherem a paciência”. Finalmente, a taxa de juros, a grande capitã do time do novo-desenvolvimentismo – que travará o crescimento econômico, trocado a preço compromissado pelo rentismo das elites – rumou a uma queda histórica, chegando aos menores patamares desde a instauração do Real como moeda. Os preços da economia estavam no lugar. O crescimento não veio, o desenvolvimento tampouco. E agora, como explicar?
Dizem os novo-desenvolvimentistas: “a taxa de investimentos é muito baixa, a oscilação na conta de capitais é um absurdo”, e completam: “a pandemia atrapalhou tudo, a inflação voltou, o câmbio subiu mais do que deveria, o presidente do Banco central voltou a soprar os ventos da taxa de juros”.
Desvios da realidade, infiel aos teóricos que a ela tanto dedicaram atenção ao remexê-la em todas as suas faces, tornando fatos sociais e políticos alvos de calistenias economicistas. Não podendo, em poucas linhas, desafiar milhares de páginas dos novo-desenvolvimentistas, trago Jorge Ben Jor para me auxiliar. Não para revogar a validade da pedra filosofal dos “preços-básicos” – que, se respeitada, levaria o Brasil à terra prometida do desenvolvimento. Mas, somente, para pedir o auxílio da poesia, quando o economês é incapaz de bem explicar.
Vai lá, Jorge Ben, em “Os alquimistas estão chegando”:
“Salve
Não, não, senta,
Senta, não, não, senta, não, não,
Você é ilegal, senta,
Então tem que dançar, dançando
Dançando”
Convidados para dançar, os novo-desenvolvimentistas de pronto embalam na festa. Afinal, por que não? Depois de tanto trabalho duro, tantos papers publicados, livros bem falados no estrangeiro, uma dança não faz mal, talvez até faça bem. Como bem os definiria Jorge:
“Eles são discretos e silenciosos
Moram bem longe dos homens
Escolhem com carinho a hora e o tempo
Do seu precioso trabalho
São pacientes, assíduos e perseverantes
Executam segundo as regras herméticas
Desde a trituração, a fixação
A destilação e a coagulação
Trazem consigo cadinhos
Vasos de vidro, potes de louça
Todos bem iluminados
Evitam qualquer relação com pessoas
De temperamento sórdido
De temperamento sórdido”
O trabalho de remexer a História e observar os dados da realidade para confeccionar a teoria do novo-desenvolvimentismo é de dar inveja a qualquer Nicolau Flamel. Ao misturarem dados empíricos e supostos teóricos, conceitos novos aos já experimentados; ao trafegarem entre a crítica e a bênção política, a depender de quem está disposto a comprar seu peixe. Segundo Bresser-Pereira, em um esforço de síntese de sua teoria:
“A economia política do novo-desenvolvimentismo estuda o desenvolvimentismo realmente existente, busca entender o Estado e as coalizões de classes desenvolvimentistas, as formas que o Capitalismo assumiu a partir do século XVI. No plano econômico, o Capitalismo revelou-se até hoje insubstituível porque o mercado é um sistema superior ao Estado na coordenação das ações de empresas competitivas. Mas em toda sociedade moderna existe um amplo setor não-competitivo no qual a coordenação do Estado é essencial. Por isso nos sistemas capitalistas temos dois setores: um competitivo, coordenado pelo mercado, e outro monopolista, coordenado pelo Estado. Prevalece aqui o princípio da subsidiariedade: no que o mercado faz bem, o Estado se abstém de interferir. Isto, no plano microeconômico. Já no plano macroeconômico, o mercado, definitivamente, não tem condições de garantir que os cinco preços macroeconômicos permaneçam certos: as taxas de lucro, de juros, de câmbio, de salários e de inflação. Por isso o papel do Estado é também fundamental na política macroeconômica.” (Pereira, p. 147, 2016)
Enquanto alquimista de mão cheia, recortar os planos de realidade entre econômico, político e social; e os planos de atuação dos fatores econômicos em macro e microeconômicos, novamente recortados em “preços-certos”, são feitos que se assemelham à produção de uma pedra filosofal que dá a vida eterna a quem a detiver. Enquanto viver, a teoria novo-desenvolvimentista acompanhará os preços-chave, apontando a todo tempo se estão no lugar ou não. Quando sim, opa, ouro na Terra Brasilis, diria BorbaGato! Quando não, malditos políticos, dividiram o Brasil em dois: de um lado, preços-certos, de outro, preços “fora do lugar”. Tratado torto, destino? Tordesilhas!
Chegamos às portas de uma nova eleição. A quem será oferecido o peixe? O mapa da mina de ouro? Quem será o culpado por cortar a realidade ao meio, deixando os preços-chave fora de seus lugares? Aguardemos, até porque:
“Os alquimistas estão chegando
Estão chegando os alquimistas
Os alquimistas estão chegando
Estão chegando os alquimistas”
Em tom final, valendo-me de tons alquímicos, lançarei alguns faróis sobre o novo-desenvolvimentismo. Desculpem o desaforo, mas, como alquimia, essa teoria é ouro de tolo. Ornamento dourado, bonito por fora, mas oco por dentro: Não existe separação histórica e nem teórica possível entre os planos da realidade. Todos atuam em contradição pulsante: o social, o cultural, o religioso-moral, o político e o econômico, nesta ordem, pois desta ordem pulsam as forças do concreto ao abstrato;
– A separação entre planos macro e microeconômico é uma formalidade tão ultrapassada que admira ainda habitar os currículos de ensino de Economia, que dirá uma teoria que se pretende “geral” a respeito do desenvolvimento econômico;
– Até o leiloeiro de Léon Walras ficaria constrangido ao determinar o preço-certo de qualquer coisa, quando tudo o mais é mantido constante. Equivaleria ao mundo econômico permanecer em equilíbrio geral pela eternidade.
Quanto aos preços:
1) A taxa de lucro macroeconômica é determinada pelo nível de investimento capitalista e este, por sua vez, é determinado pela contraposição da demanda esperada (o que se espera vender) – descontados os custos de produção – e a remuneração para se desfazer, ou contratar, o dinheiro necessário para o investimento, isto é, as condições de financiamento.Tais componentes apresentam instabilidade cíclica, pois são termos contraditórios de uma mesma coisa: o capital ARBITRANDO sobre a própria massa de lucros que recolherá em todas as órbitas – comercial, produtiva e financeira. Portanto, determinando ex-ante as taxas de lucro, ciclicamente oscilantes e INSTÁVEIS, porque respeitadoras do conceito de capital: dinheiro que quer virar mais dinheiro, e nada respeitosa à meta estabelecida pelos alquimistas da ciência econômica;
2) Desde Marx, sabe-se que a taxa de salários corresponde a uma ilusão da classe capitalista – como anotou no capítulo 52 do volume III d’O Capital – pois em nada tem relação com a demanda e oferta de trabalho, mas é determinada, duplamente, pelo barateamento dos meios de produção e da mão de obra, isto é, pelo barateamento das mercadorias consumidas pelos trabalhadores. Os chineses, ao que parece, leram Marx com a devida atenção e vêm há duas décadas impondo por sua pulsante avalanche de oferta de bens de todos os gêneros (de capital, duráveis e não duráveis) o barateamento dos meios de produção e o “super-barateamento” dos bens de consumo importados por todos os países do globo, do qual o Brasil faz parte. Ou fez até outro dia, antes que os terraplanistas juntassem seus esforços aos dos alquimistas novo-desenvolvimentistas para suporem uma determinada taxa de salários alinhada ao horizonte mortal!
3) Quanto à taxa de inflação, já vamos do reino alquímico para o alinhamento cósmico das estrelas, compondo o saber dos horóscopos e alinhando-o ao compasso do homem vitruviano, de tão ensaboada é a questão. Vamos nós no tom de Raul Seixas, ao exercício de “desdizer” o que disseram antes: a inflação no Brasil tem raros impulsos causados pela demanda, isto é, pela verve consumista em um país pobre cuja propensão a comprar (ou consumir) é total para mais de 90% da população, em sintonia com os estoques das empresas.
Contudo, historicamente, a inflação brasileira tem duas raízes: a taxa de câmbio, que afeta os preços dos insumos e bens básicos, portanto, o nível geral de preços internos; e os preços internacionais das commodities, negociadas internacionalmente. Que vez por outra rebatem nos preços internos, como nos famosos casos do arroz, da carne e do tomate. O regime de metas de inflação, engenhoca tão útil quanto um relógio parado, tem obtido sucesso em trazer a inflação para a meta ao submeter a política monetária à regra: “a inflação mexeu, vamos subtrair laranjas dos limões e mexer a taxa de juros no sentido inverso!”.
Isso tudo sem que nossas autoridades monetárias, bem como nossos alquimistas da ciência econômica, suspeitem que a nossa inflação é tão declinante (no longo prazo) quanto em quase todas as demais economias avançadas ou em desenvolvimento do mundo, pela fraternidade tecnológico-comercial-produtiva-financeira entre a indústria chinesa e o mercado consumidor norte-americano. Ainda que esta relação esteja sujeita a chuvas e trovoadas, a acomodação da queda dos preços relativos tem mantido as taxas de inflação baixas a despeito de estarem certas, erradas, dentro ou fora das metas;
4) Vamos nós à paixão do atual ministro da Economia, as taxas de câmbio que, segundo ele, eram um absurdo, pois possibilitavam empregadas domésticas irem à Disney na época de supervalorização (2005-2013). Bresser-Pereira, antecipadamente, bradava contra o absurdo das taxas de câmbio tão valorizadas e do excessivo acúmulo de reservas. O que determina as taxas de câmbio em um país periférico cuja moeda não é conversível internacionalmente? Trocando em miúdos, o que determina o preço em real do dólar, se ao tentar comprar pipoca em NovaYork com reais, nenhum pipoqueiro aceitaria?!
Essa resposta ninguém sabe, senão os que negociam dólares nos mercados futuros, formando os preços no presente, sob duas condições: o movimento da taxa de juros dos EUA e as oportunidades de pegar dinheiro barato em algum lugar do mundo às 11h, aplicar em outra praça financeira e realizar lucros às 11:05h – diga-se de passagem, em economês, isto chama-se “arbitragem”. O Banco Central brasileiro pode, no máximo, atuar no mercado futuro para evitar oscilações bruscas, pois se a taxa de juros norte-americana se move, o presidente do BC brasileiro atua como um goleiro tentando defender um pênalti do Messi, nada há que possa fazer!
Se os especuladores internacionais resolvem pegar dinheiro em algum lugar do mundo e virem ao Brasil brincar de ganhar dinheiro com a taxa de câmbio, no máximo o BC pode atuar na contramão, comprando ou vendendo dólares, à vista ou a prazo, para evitar oscilações abruptas. Em suma: sem soberania monetária, como é o caso brasileiro, as taxas de câmbio giram de um lado para o outro, dão cambalhotas, e o BC brasileiro pode terou não a sensatez de atuar administrando as reservas de dólares e nada mais. Tenho a impressão de que se nossos alquimistas do novo-desenvolvimentismo fossem os policymakers teriam de duas opções, uma: ou rezar para os EUA não mexerem na taxa de juros fora de suas previsões; ou ajoelhar para que os especuladores internacionais prefiram a tequila mexicana à cachaça brasileira.
5) Finalmente, chegamos à pedra de toque – o chumbo transmutado em ouro – da literatura alquímicanovo-desenvolvimentista: as taxas de juros. O leitor deve ter percebido a centralidade que esta variável tem para a composição dos demais preços-chave da teoria novo-desenvolvimentista. Eis o porquê: a taxa de juros é o preço do dinheiro ou, pelo menos, o preço cobrado para que alguém se desfaça dele, em benefício de alguém que tomará emprestado.
O comércio de dinheiro é tão antigo quanto a troca de qualquer coisa, pois, sempre que algo é trocado, pensa-se em algo que represente uma forma geral de riqueza, para que seja estabelecida uma medida de valor que realize a equivalência entre dois bens, prazos e remunerações em contratos financeiros, opiniões, votos etc., tudo que possa (e tudo pode) ser comprado/vendido. A determinação da taxa de juros pelo Banco Central é uma sinalização para o sistema bancário, numa batalha constante pela subida ou queda das curvas de juros, que nada mais são do que a variação do valor de qualquer coisa no tempo.
De acordo com a teoria novo-desenvolvimentista, o manejo das taxas de juros pelo BC tem sido há décadas um instrumento político que favorece a elite rentista (0,1% da população) sob o pretexto de controlar a inflação, enquanto condena o crescimento econômico e dos empregos à semiestagnação. Em nada posso discordar dessa interpretação. Contudo, a ideia de existir uma taxa de juros “correta”, em equilíbrio com os demais preços-chave e, mais ainda, que atua como eixo de gravitação dos demais preços, é tão política quanto a atuação do BC nas décadas de ouro de inflação dentro da meta, elites de bolso cheio e crescimento mixuruca. De novo, Jorge Ben, para lembrar:
“Moro num país tropical, abençoado por Deus
E bonito por natureza (mas que beleza)
Em fevereiro (em fevereiro)
Tem carnaval (tem carnaval)”
Tão tropicais quanto a brasilidade carnavalesca são as nossas taxas de juros, formadas não pelas decisões do BC, mas pela relação de vassalagem entre o BC e os grandes bancos, os grandes senhores do Brasil. O que propõe o novo-desenvolvimentismo? Brigar com os bancos? Reduzir a fórceps seus spreads (a diferença entre o que o banco ganha ao emprestar dinheiro e o quanto paga para quem nele deposita, inclusive o BC)? De duas, uma: ou bravata, ou passe de mágica. Não há como supor um equilíbrio para as taxas de juros! Em primeiro lugar, porque, tal como o câmbio, movem-se ao sabor da especulação.
Em segundo lugar, porque quem define a trajetória da curva de juros de longo prazo são os banqueiros e não a autoridade monetária. A segunda condição pode ser mudada mediante um pacto entre Estado-Mercado-Sociedade por um governo Estadista. Veremos no ano que vem, nas eleições de 2022. Mas a primeira condição nem a alquimia é capaz de alterar, pois é atributo da “coisa-dinheiro” referir-se a si mesma, cegando os homens, que vão como peixes num cardume para o mesmo lugar: a segurança do dinheiro. Conclusão: ou os novo-desenvolvimentistas reinventam o Capitalismo, ou apostam na existência de um jogo de futebol com bola quadrada.
Um adeus, com a melodia de Jorge Ben:
“Alô, alô! W Brasil
Alô, alô! W Brasil
Alô, telefonista
Me desperte às 7:15, por favor
Rádio táxi, nove e meia
Senão o bicho pega
Eu também quero graves
Médios e agudos
Eu vou chamar
Jacarezinho! Avião!
Jacarezinho! Avião!
Cuidado com o disco voador
Tira essa escada daí
Essa escada é para ficar
Aqui fora
Eu vou chamar o síndico
Tim Maia! Tim Maia!”
*Nathan Caixeta é economista pela FACAMP, mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP).