Polícia Militar

Avó de motoboy assassinado pela PM morre de ‘tristeza’

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“Ela não aguentou o sofrimento”. Motoboy era tido como exemplo pelos irmãos e deixa dois filhos pequenos. “Tentei questionar o policial e ele dava risada com sarcasmo, ironia, batendo no peito orgulhoso por ter matado”

Lelis levou um tiro no peito e morreu (Imagem: reprodução)

Jeniffer Mendonça, Ponte

A cabeleireira Renata Gadioli, 49, não consegue falar do filho sem chorar. A voz embarga mais ainda quando lembra da mãe, Ana Aparecida Amorim, 74, que teve um infarto e não resistiu uma semana depois que o mobotoy Lelis Henrique Gadioli dos Santos, 28, foi morto por um policial militar em 12 de agosto, na cidade de São José dos Campos, no interior de São Paulo.

Ela não aguentou o sofrimento, ver como eu estava. Eu perdi minha mãe e meu filho de uma forma cruel”, lamenta Renata. “Tem hora que a minha pressão abaixa, tem hora que sobe, eu não sei mais o que fazer, estou jogando nas mãos de Deus porque Ele está vendo a verdade: meu filho nunca teve arma como eles [policiais] disseram que tinha”.

Marcelo Felipe Gadioli dos Santos, 31, irmão mais velho e montador em construção civil, lembra que Lelis queria ser arquiteto. “Ele desenhava muito bem, qualquer coisa assim que você colocava para ele, ele reproduzia muito bem, mas agora estava difícil para ele entrar em uma faculdade porque tem dois filhos pequenos para sustentar”, conta. “Era uma pessoa boa, carinhosa, todo mundo do bairro o conhecia”.

Caçula de três irmãos, o motoboy Leandro Honório Gadioli dos Santos, 21, conta que sempre teve Lelis, que é mais velho que ele, como inspiração. “Ele trabalhava muito para conseguir as coisas dele, para sustentar os filhos, sempre incentivou a buscar o que a gente queria pelo trabalho, nunca se envolveu com nada”, lembra.

Ele relata que os dois faziam entregas para estabelecimentos diferentes: enquanto o irmão prestava serviço para um comércio de bebidas, Leandro trabalhava para um restaurante. “O horário que a gente chegava em casa do serviço era sempre esse: umas 23h, às vezes mais tarde. Naquele dia, ele chegou um pouco mais cedo e eu cheguei logo em seguida”, afirma.

Eles ficaram jogando “Free Fire” no celular e, depois, Lelis disse ao irmão que iria passar na casa de um amigo, vizinho deles, e Leandro iria em seguida, mas decidiu carregar o celular antes. “Não deu tempo de chegar na esquina [da rua], apareceu a viatura de frente, puxaram o freio de mão, não teve abordagem, nada. O policial de dentro do carro deu o disparo no peito do meu irmão. Ele caiu de costas e fui correndo logo em seguida”, lembra.

Leandro afirma que ainda viu o irmão com vida. “Na hora que eu levantei a cabeça dele, ele queria dizer alguma coisa, mas não conseguia, ele segurou no meu braço e começou a engasgar, e amoleceu”. O motoboy aponta que tentou questionar o policial. “Eu falei ‘você deu um tiro no meu irmão’ e ele dava risada com sarcasmo, ironia, batendo no peito falando ‘eu mesmo que dei o tiro’“.

Renata também escutou os gritos de Leandro, que ainda teria sido puxado pelo policial. “Ele sacou a arma e eu já me coloquei na frente [questionando] ‘vai fazer isso com meu outro filho também?’ e ele batia no peito dizendo que matou”, lembra e que foi acudida por moradores da rua que também saíram das casas após o barulho. “No bolso do meu filho só tinha um maço de cigarro e umas balas de Yakult que ele pegou em casa”. A cabeleireira ainda relata que a viatura dos PMs deixou o local e que não viram nenhuma arma perto de Lelis.

No boletim de ocorrência, os soldados Felipe da Silva Della Rosa e Fábio Henrique Rivelo Simião, do 46º BPM/I (Batalhão de Polícia Militar do Interior), dão outra versão. O registro é confuso. Simião é apontado como autor/vítima e Della Rosa como testemunha. O histórico, no entanto, é relatado por Della Rosa e há um erro indicando que ele patrulhava com Felipe, ou seja, consigo mesmo*.

Ele narra que estavam de patrulhamento por volta da 1h20, na região da Praça Padre José Carlos Passe, próximo a uma escola infantil, quando teriam visto “um indivíduo debruçado na janela da porta de um veículo, de cor escura”, mas não sabiam modelo ou placa. Disseram que o local seria conhecido como “ponto recorrente de tráfico de drogas” e que o tal indivíduo estaria em “atitude suspeita como se estivesse vendendo drogas” e que decidiram abordá-lo.

Os PMs alegam que o indivíduo, ao ver a viatura, teria corrido “segurando algo na cintura” em direção à Rua Maria Carolina de Jesus. A dupla passou a perseguí-lo e o emparelharam na rua, declarando que deram “voz de comando de parada”, mas ele não teria obedecido e teria voltado correndo em direção à praça com as mãos na cintura, segundo eles, “sugerindo” que estaria segurando algo. Ainda teriam tentado encurralá-lo novamente, mas não conseguiram, e, depois, Della Rosa afirma que viu uma arma na cintura do rapaz e que mandou que ele a largasse e levantasse as mãos. Segundo ele, o homem tentou sacar a arma, momento em que o soldado atirou sob a justificativa de defender a si e o colega. Porém, como apontamos, quem é indicado como autor do disparo é Simião, mas o histórico narrado indica ser Della Rosa.

Della Rosa afirma que Lelis parecia estar “sob efeito de drogas” porque, após o disparo, o rapaz tirou as mãos da cintura, foi em sua direção, “parou, se agachou e deitou ao solo, levantando as mãos”. A família do motoboy nega que o jovem usava entorpecentes. O soldado disse que, ao revistá-lo, encontrou na cintura um revólver calibre 32, com cabo de madeira, com uma munição deflagrada, duas picotadas e três intactas. Ao abrir a jaqueta de Lelis, o PM disse que viu que ele foi baleado no tórax e acionou o resgate.

No boletim de ocorrência, o delegado Fernando Pinheiro dos Santos registrou que, quando chegou ao local, a perícia já havia sido realizada. O documento não deixa claro se a arma apreendida para perícia foi apresentada pelos policiais na delegacia ou se foi recolhida pela Polícia Científica no local. As pistolas dos PMs também foram apreendidas e o delegado requisitou exames necroscópico, toxicológico e residuográfico (para detectar pólvora). Duas testemunhas protegidas também foram ouvidas, mas os relatos não constam no BO. O caso foi remetido ao 6º DP da cidade para investigar o caso.

A reportagem tentou telefonar para a delegacia durante toda a sexta-feira (10) a fim de questionar sobre a apreensão da arma atribuída a Lelis, mas o atendente disse que o delegado não se encontrava. A reportagem também não conseguiu ter acesso aos laudos da perícia.

Em 31 de agosto, a família formalizou um requerimento sobre a versão dos PMs e também de possíveis intimidações que estariam sofrendo à Ouvidoria das Polícias. Segundo Leandro e Renata, durante o velório de Lelis, uma viatura ficou passando em frente à casa, policiais ficavam observando a residência. “A gente teve que instalar câmeras porque tem medo de forjarem alguma coisa”, diz Leandro.

De acordo com a cabeleireira, abordagens truculentas da polícia são comuns na região. “Não respeitam ninguém, os policiais oprimem os meninos daqui, vieram até a minha casa dizer que era ponto de tráfico de droga, na minha casa em que a gente trabalha, é honesto e nunca fez nada para ninguém”, desabafa.

“Eu choro porque eu sei que outras mães vão passar por isso porque a polícia está tirando a vida de trabalhador, de gente honesta. Eles deveriam proteger, mas eu não acredito mais nisso. Eu sou evangélica, a gente tenta proteger os filhos, só que eles precisam sair para rua para trabalhar. Eu não coloquei um filho no mundo para abandoná-lo, para ser morto pela polícia.”

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