Após ser vítima de estupro coletivo, menina indígena da etnia Kaiowá foi jogada de um penhasco de 20 metros ainda com vida
Vinicius Konchinski, TAB
O capitão Gaudêncio Benites, 41, indígena da etnia Guarani Kaiowá, foi alertado com um telefonema ao amanhecer de 9 de agosto de que algo havia ocorrido com Raíssa da Silva Cabreira, 11. Assim que despertou, viu inúmeras mensagens em seu telefone avisando que a menina, também indígena, havia sido jogada de um penhasco nos limites da Aldeia Bororó, localizada dentro da Reserva Indígena de Dourados (MS).
Benites mal tinha conseguido dormir. Tinha passado a noite de domingo tentando encontrar um outro indígena habitante da reserva que havia se desentendido com a ex-mulher e, bêbado, invadiu e quebrou a casa dela.
Mesmo cansado, ao ser avisado sobre o que havia acontecido com Raíssa, o capitão saiu rápido. Enquanto dirigia, já buscava consigo mesmo entender o que pode levar uma pessoa a cometer um crime tão bárbaro contra uma criança.
“A gente acompanhava a situação da Raíssa, que morava num barraco, sem móveis, sem comida, com familiares que bebiam muito“, disse Benites. “Infelizmente é a nossa rotina na aldeia: sem perspectiva, o pessoal bebe e acaba cometendo desde atos de violência, agressões, até os piores crimes.”
Segundo a Polícia Civil de Mato Grosso do Sul, Raíssa foi vítima de um estupro coletivo cometido por cinco pessoas, incluindo o tio da menina, que morreu na prisão dias depois. Após o abuso sexual, os estupradores teriam jogado Raíssa do penhasco.
Vanilda da Silva, 50, mãe de Raíssa, disse que a menina iria trabalhar catando milho na segunda-feira, quando seu corpo foi encontrado. Na noite anterior, a filha foi convidada a beber e não voltou mais para casa. “Saí para procurar e a encontrei quase morta“, contou Vanilda, em língua nativa traduzida simultaneamente por Benites.
Para o capitão Benites, eleito por duas vezes para representar politicamente a Aldeia Bororó, o caso de Raíssa é emblemático. Mas não é único nem provavelmente será o último na Reserva de Dourados. Enquanto falta água, trabalho e moradia digna para os indígenas locais, sobram álcool e drogas. E, neste cenário, prevalece a violência.
De acordo com dados oficiais tabulados pelo MPF-MS (Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul), entre 2012 e 2014, o Brasil teve taxa média de 29 homicídios por 100 mil habitantes. Entre os indígenas da reserva, essa taxa é de 101. Isso quer dizer que, se você é um indígena e mora na reserva, tem aproximadamente quatro vezes mais chances de morrer assassinado do que um brasileiro médio.
“Em 99% dos casos de briga, agressão ou abuso, os envolvidos estão drogados ou bêbados“, complementou a defensora pública Neyla Ferreira Mendes, coordenadora do Nupiir (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e de Igualdade Racial e Étnica) da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul.
Aldeia urbana com estrutura de favela
A Reserva Indígena de Dourados é uma das mais antigas do país. Foi criada em 1914, tem cerca de 30 quilômetros quadrados e é morada de aproximadamente 20 mil pessoas. A maioria delas é indígena da etnia Guarani Kaiowá (ou simplesmente Kaiowá) e outra parte significativa é Terena. Há também indígenas de outras etnias, mestiços e até brancos.
Existem duas aldeias dentro da reserva: a Bororó, cuja população é quase toda Kaiowá, e a Jaguapiru, com população mais diversa. Ambas são consideradas “aldeias urbanas” por conta de sua proximidade com a cidade de Dourados, que fica 235 km ao sul da capital Campo Grande, numa região que é polo agropecuário sul-mato-grossense.
Saindo de carro do centro de Dourados, em dez minutos, qualquer motorista acessa a área da reserva. A Aldeia Jaguapiru fica logo à beira da rodovia MS-156. É mais desenvolvida. Poderia ser chamada de bairro se não estivesse dentro de uma reserva. Já para chegar a Bororó é preciso tomar estradas vicinais. Lá, barracos de lona preta abrigam parte dos indígenas. O cenário, às vezes, lembra o de uma favela, mas mais espalhada. E, como em favelas, a falta de serviços públicos é um problema.
A água é escassa. Não chega à casa de todos. É comum que indígenas tenham que lavar suas roupas em rios que passam perto da reserva e até bebam dessa água — que não é tratada.
Há escolas, mas elas não atendem a todas as crianças. Projeções baseadas em dados oficiais de 2014 indicavam que mais de 800 crianças da reserva não estudavam.
Falta também segurança pública. A polícia até faz um patrulhamento preventivo na reserva durante o dia. Contudo, durante a noite, policiais só entram nas aldeias para atender ocorrências específicas. Fica, então, a cargo dos próprios indígenas a prevenção de crimes, como o que vitimou Raíssa.
Viatura improvisada
Em maio do ano passado, a Sejusp-MS (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul) resolveu colaborar com o policiamento comunitário. Doou aos indígenas das aldeias Bororó e Jaguapiru duas caminhonetes modelo Blazer, ano 2008, que já haviam sido aposentadas pela Polícia Militar e seriam leiloadas.
É numa delas que o capitão Benites e outras lideranças da Bororó tentam manter a ordem na aldeia. Isso quando eles têm recursos para pagar o combustível ou quando o veículo não está quebrado. “A gente sai atrás dos barzinhos, das casas onde o pessoal está com o som muito alto, com cachaça na mão, e procura pedir para maneirarem na bebida”, conta o capitão.
Na Bororó, até há discussões internas sobre uma proibição de venda de bebidas alcoólicas. Hoje, ela está disponível por toda aldeia. A venda de bebidas para menores de 18 anos e de drogas é proibida por lei, mas não é efetiva por lá.
Quando Benites e seus colegas de patrulha deparam-se com o tráfico ou com menores embriagados, eles intervêm. Em caso de brigas ou crimes também, mesmo não tendo poder formal de polícia e respaldo legal para isso. “Vamos na cara e coragem, pondo em risco a própria vida. Só levo um pau comigo — yvyra pará, em Guarani Kaiowá — para caso de emergência mesmo”, diz. “Um dia desses, meteram o pé no vidro da camionete e quebraram. Agora, precisamos juntar dinheiro com a comunidade para consertar.”
Terra no centro do problema
Benites admite que não existe solução simples para os problemas que afligem seu povo. Ele mesmo nem consegue enumerar todas as causas da situação em que se encontram os indígenas de Dourados. O capitão, no entanto, ressalta que há uma questão fundamental para tudo o que se passa, principalmente com os Kaiowá: a falta de terra.
“A gente não tem espaço para plantar uma rama de mandioca”, reclama. “É complicado.”
Segundo o MPF-MS, a Reserva de Dourados tem a maior concentração de indígenas do país. De acordo com o órgão, com a colonização de Mato Grosso do Sul após a Guerra do Paraguai (1864-1870), terra tradicionais indígenas foram expropriadas e os próprios indígenas acabaram “confinados”, sem espaço suficiente para manter seu modo de vida.
O professor e pesquisador da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) Neimar Machado de Sousa diz que a desconexão dos indígenas com suas tradições contribui com o alcoolismo e dependência química. Há, contudo, outros fatores envolvidos.
“Um dia uma indígena, bêbada, perguntou para um agente de saúde: ‘você bebe?’. A agente disse que não, e a indígena replicou: ‘você não sente fome?’“, contou Sousa.
De quem é a responsabilidade?
Procurada pelo TAB, a Funai (Fundação Nacional do Índio) informou que atua para a garantia da segurança alimentar, proteção territorial e promoção da autonomia dos indígenas de Dourados. Em agosto, a fundação entregou 9 mil cestas básicas às famílias residentes nas aldeias Jaguapiru e Bororó.
A Funai informou que questões relativas à saúde dos indígenas e ao abuso de álcool e drogas são competência do Ministério da Saúde. Já a educação é responsabilidade do Ministério da Educação, governo de Mato Grosso do Sul e prefeitura de Dourados.
Sobre a morte de Raíssa e a violência na Reserva de Dourados, a Funai declarou que acompanha os casos e subsidia tecnicamente os órgãos de segurança pública.
O governo de Mato Grosso do Sul informou que tem diversas ações direcionadas a indígenas: Vale Universidade Indígena, distribuição de 18 mil cestas básicas por mês, melhorias em estradas que dão acesso a aldeias, entre outras.
Já a prefeitura de Dourados lamentou profundamente a morte de Raíssa e declarou que, “dentro das limitadas atribuições que lhe cabe, tem atendido a comunidade indígena”.
“O município mantém projetos na área de educação, assistência social e saúde dentro das reservas. Porém, cabe ressaltar que, por se tratar de uma área federal, com índios tutelados pela União, a grande maioria das atribuições estruturantes, políticas públicas e investimentos é de competência do governo federal”, informou a prefeitura, em nota.
Em 2017, o MPF e as Defensorias Públicas da União e de Mato Grosso do Sul ajuizaram uma ação civil pública para que os governos federal, estadual e municipal fossem obrigados a implementar políticas de enfrentamento ao uso de drogas na Reserva de Dourados. A ação tramita até hoje e aponta que governos têm sido “omissos quanto aos deveres constitucionais e legais de tutela à vida e à saúde da população indígena”.
MPF e Defensorias chegaram a propor, em 2019, um acordo extrajudicial aos governos. O acordo não chegou a ser homologado porque o governo de Mato Grosso do Sul informou que não podia executar ações contra o suicídio de indígenas em Dourados sem a aprovação de uma lei na Assembleia Legislativa. Não há projeto neste sentido tramitando no parlamento de Mato Grosso do Sul.
No dia 26 de agosto, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, foi a Dourados participar de uma audiência pública com indígenas da Reserva de Dourados e prometeu que o governo agirá para combater a violência e o abuso de álcool e drogas no local. Não foi, entretanto, anunciada nenhuma ação de efeito imediato.
A comitiva de Damares, aliás, passou pouco menos de 12 horas no Mato Grosso do Sul. Não visitou nem a Aldeia Bororó nem a Jaguapiru por questões de segurança, segundo anfitriões da ministra.
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