Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Eis uma receita dum jantar prático e barato para a noite da próxima sexta-feira, dia primeiro de outubro. Ah, e romântico, que estamos precisando de romantismo.
Quando digo romantismo, não estou falando em mandar flores, fazer declaração de amor, abrir a porta do carro, embora isso possa ser feito. Mas quando me refiro a romantismo, estou falando duma troca de energias franca e intensa; um romantismo que se sente, não precisa ser escrito, pois sua demonstração é intrínseca e energética.
Mas tergiverso. Ao jantar.
Macarrão à bolonhesa.
Você vai precisar de quinhentos gramas de carne moída, meio pacote de macarrão (250g), um vinho tinto de qualidade e uma mulher também de qualidade. Além de temperos. Mas vou detalhar cada item.
A massa opte pela penne. É aquela em forma de tubo. E é por isso, por causa do tubo, que você deve optar por ela. Dentro do tubo o molho escorregará, deixando o prato suculento.
A carne moída deve pode ser de segunda. Primeiro, por causa do preço absurdo da carne; segundo, porque não devemos ter preconceitos com carnes em tese não tão nobres. O guisado de segunda, por ter mais gordura, fica mais tenro.
Leia aqui todos os textos de Delmar Bertuol
Ao vinho
.
Deve ser um vinho tinto bom. E aqui vamos ter preconceito com vinhos embalados em garrafas pet. Fica esteticamente feio. E essa é uma noite para cultuar a beleza, como os gregos faziam. Falo dos gregos não por pedantismo gratuito. É que eles criaram até um deus em homenagem à bebida, Dionísio. E outra: há, hoje, vinhos sem rolha. A tampa é de rosquear. Esqueça esses. Eles foram criados para perseguir nossa masculinidade. Cabe ao homem abrir a rolha do vinho. Sem deixar cair uma só gota do religioso líquido.
Então, essa noite será dionísica. Nada de Coca-Cola Zero, suco, cerveja ou que for. Vinho. Nessa noite tomarão vinho em homenagem a Dionísio. Amém.
À mulher.
Pode ser uma ficante, namorada, esposa ou pretendente. Mas tem que ser com o padrão de virtuosidade dos gregos, já que o citamos: bonita de corpo e alma. Eu não preciso explicar o que é uma mulher bonita de corpo e alma. Uma pessoa bonita. Sabe aquela pessoa lindíssima? Assim deve ser sua convidada.
Pois bem, ao jantar.
Certifique-se de que a casa esteja limpa e arrumada. Claro que é necessário você estar sozinho. De preferência, até mesmo sem animais de estimação. Caso você tenha animal de estimação, depois reflita da necessidade de tê-lo. Se gosta tanto de bicho como diz, por que ter um e o deixar preso em casa o dia todo? Será mesmo que você gosta dos animais ou os tem para suprir uma carência sua, não deles?
Mas fugi do assunto.
Ao jantar, novamente.
Faxinada a casa, é preparar o ambiente. A luz não pode ser muito forte, obviamente. E a música é também outro cuidado. Eu não sou como os roqueiros que acham que têm o monopólio do bom gosto, criticando músicas populares enquanto cantarolam Iron Maiden a plenos pulmões mesmo sem entender nada de inglês. Mas, definitivamente, não é o momento de ouvir Barões da Pisadinha.
Que tal Maria Bethânia, que sei que faz trocentos anos que não a ouve? Ou a gata Marisa Monte, que tá com trabalho novo? Ah, e tem que ser uma cantora. Seja a única voz masculina no recinto.
Ajeitados o som e a luz, é recebê-la.
Se ela oferecer ajuda, incumbe-a de arrumar a mesa.
Abra o vinho e sirva ambas as taças. Veja bem, abra o vinho e a sirva. Não pergunte se ela quer, não ofereça, nem mesmo comente que comprou vinho. Apenas sirva e entregue a ela.
Erga levemente a taça propondo um brinde.
“Ao quê?”, ela talvez pergunte.
“À noite”, responda fitando os olhos dela até ela, e não você, desviar.
Vamos cozinhar.
Coloque numa panela de fundo grosso a carne. Não precisa óleo ou gordura, apenas a carne na panela em fogo alto.
Descasque uma cebola pequena e pique. Descasque dois dentes de alho e pique. Sim, coloque alho. Dona Flor, do Dona Flor e Seus Dois Maridos, lembrava com nostalgia e arrepios do cheiro de alho que Vadinho exalava depois de comer sua comida promíscua de tão boa.
Exageros das paixões de Jorge Amada à parte, não queremos ficar com cheiro de alho, mas uma comida saborosa realmente nos desperta sentimentos dúbios. Coloque cebola e alho picados a fritar nessa cama redonda como as de motel que é a panela. Deixe os três ingredientes lá se relacionando ao calor do fogo.
Mexa. Mexa sempre. Na panela e no cabelo cheiroso dela.
Salgue a carne.
Sirva mais vinho à convidada.
Faça-a provar a carne. Prove um beijo dela.
Apimente as coisas. Refiro-me à carne no fogo, seu apressadinho. Pimenta do reino moído cai bem.
Agora, jogue umas quatro ou cinco folhas de alecrim fresco na panela. Sim, tem que ser alecrim fresco recém-colhido. E se você não tem pelo menos dois ou três vasos com temperos plantados mesmo morando em apartamento, sugiro que você repense sua vida, sua existência, suas prioridades, seus princípios. Sim, alecrim fresco.
Cuide para a carne não secar. Coloque sempre um pouco de água. Carne e beijo devem estar devidamente molhados.
Pique três tomates bem maduros e coloque junto. Se você cogitar de usar molho ou extrato de tomates prontos, eu desisto de ti. Já não basta não ter temperos plantados em casa?
Tomates, um pouco mais de água, se necessário, e mexer. Agora tampe. E baixe o fogo. Não é uma noite de pressas.
É hora de um pouco de beijo no pescoço. Pode ser substituído por um punhado de mordida gentil na orelha. Ou, dependendo da fome, utilize os dois.
Você hoje tem que cuidar dos tempos, dos momentos exatos de fazer. O cozimento da massa deve estar conectado, tal casal apaixonado, com o da carne. Portanto, quando ela estiver quase pronta, a água para o preparo do macarrão deve estar como você: fervendo.
Coloque uma pitada de sal e um fio de azeite de oliva. Depois, derrame o macarrão. Tão logo isso, coloque um golinho de vodca na panela, nada mais do que uma colher de sopa. A bebida alcoólica na medida certa faz nos alimentos o mesmo que faz com nós, desinibe. A vodca tirará qualquer resquício de timidez do macarrão, fazendo ele se envolver imprudentemente com aquele molho de carne que cozinha ali do lado. Paixão antiga.
Falar nisso, não a deixou com a taça vazia, né?
Não deixe a massa passar do ponto. Quando estiver al dente, escorra-a e a coloque numa travessa grande como leito de casal. É lá, deitada e desnuda, que ela esperará por aquele que sem demora virá a cobrir toda, o molho avermelhado de gostosura.
Participa, ainda, um pouco de queijo ralado por cima, como pétalas a adornar esse momento.
Sirva a sua convidada.
Depois, à sobremesa.
Tenham uma excelente noite. Descansem bem, pois, no outro dia, no sábado, 02 de outubro, ambos irão à manifestação contra o Bolsonaro.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
Acompanhe Pragmatismo Político no Instagram, Twitter e no Facebook