Mulheres violadas

A traída, a amante: silenciadas, elas atuaram na independência do Brasil

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Pintura mostra Leopoldina presidindo reunião do Conselho de Ministros, em 02/09/1822 (Imagem: Wikimedia Commons)

Lilia Moritz Schwarcz, Universa

Maria Leopoldina foi conselheira política de dom Pedro 1º e articuladora da independência do Brasil. Ficou historicamente conhecida como uma mulher traída ou a cunhada de Napoleão Bonaparte.

E qual foi o destino da Marquesa de Santos? Domitila de Castro do Canto e Melo era conhecida no Primeiro Reinado por ter encantado o primeiro imperador do Brasil não só por seus dotes físicos, mas também por sua inteligência. Dizia-se que ela sabia, como ninguém, administrar e negociar influências dentro da corte. Já na história nacional, porém, ela não passou de “amante de rei”.

Mulheres nunca ganham protagonismo na história do Brasil. Basta reparar como, num país de maioria feminina, quase não existem protagonistas na nossa história oficial. E o mesmo processo de silenciamento ocorre com a história da independência do Brasil.

Leia também: A história das mulheres brasileiras que foram à luta por seus direitos

As poucas figurantes mencionadas surgem sempre caracterizadas a partir de seus laços familiares.

A Princesa Isabel é constantemente lembrada como “a filha de dom Pedro 2º” que lhe concedeu “a honra de promulgar a Lei Áurea”. Como se ela não tivesse vontade própria e agisse apenas sob a égide do pai e do marido: o conde D’Eu.

Outro caso: Carlota Joaquina, que tinha grande autonomia política e pessoal –chegou inclusive a tramar a favor do reino de Espanha –, aparece quase que exclusivamente como a “mulher traiçoeira de dom João 6º”.

Fingiu ser homem e entrou no exército

E se a história tratou de apagar e subordinar as mulheres da elite, o que dizer das personagens femininas pertencentes ao povo? Aí o silenciamento foi ainda mais radical: tratou-se basicamente de um enterramento.

Maria Quitéria de Jesus, por exemplo, destacou-se nas guerras de independência do Brasil, lutando como combatente na Bahia. Aliás, fingiu ser homem para poder entrar no exército, uma vez que a instituição só admitia integrantes do sexo masculino.

A jovem juntou-se então às tropas que lutavam contra os portugueses, em 1822, e utilizou o nome de seu cunhado: era o soldado Medeiros, já que somente homens faziam parte do exército brasileiro. Semanas depois de entrar nos conflitos, Maria Quitéria teve sua identidade revelada. Mesmo assim, permaneceu no exército, por conta de sua habilidade com o manejo de armas.

Maria Felipa é outra protagonista baiana, negra e natural da Ilha de Itaparica. Tomou parte das batalhas pela independência do Brasil, na Bahia, comandando cerca de 40 mulheres que foram responsáveis por queimar 42 embarcações portuguesas.

Ela também ficou conhecida a partir de um episódio lendário da “surra de cansanção” (vegetal que provoca urticária e sensação de queimadura) usada para derrotar os soldados portugueses.

Vale a pena se lembrar de Joana Angélica que se destacou, também na Bahia, por conta da coragem com que enfrentou as tropas portuguesas dispostas a invadir o Convento da Lapa, localizado no centro da cidade de Salvador. Joana Angélica de Jesus morreu em 1822, assassinada por tropas portuguesas.

“Independência ou morte”?

Hora de perguntar: que “7 de setembro” você pretende celebrar?

Vamos lembrar apenas do famoso episódio do “Independência ou Morte” bradado às margens do Ipiranga –um evento majoritariamente colonial, europeu e masculino, protagonizado pelo príncipe português Pedro 1º? Ou vamos começar a olhar para outras experiências, trajetórias e, no limite, independências?

Pois elas são muitas e bem mais inclusivas, pois lideradas por negros e negras, indígenas e muitas mulheres.

A pergunta não é retórica, sobretudo diante desse 7 de setembro de 2021, com o governo procurando sequestrar símbolos, palavras de ordem e eventos. Independência e liberdade sempre foram conceitos em litígio no Brasil: difíceis de conquistar e ainda mais complicados de manter.

Proponho, então, uma nova convocação cívica para imaginar um Brasil diferente, muito menos polarizado e armado (literal e metaforicamente), e, na via oposta, bem mais generoso pois referido ao que é de todas, todes e todos nós, e faz parte do espaço cívico que precisamos, com urgência, reconquistar e pactuar.

*Lilia Moritz Schwarcz é antropóloga, historiadora, professora da USP (Universidade de São Paulo) e de Princeton e curadora-adjunta para histórias e narrativas do Masp (Museu de Arte de São Paulo); é autora, com Flávio dos Santos Gomes e Jaime Lauriano, do recém-lançado “Enciclopédia Negra: Biografias Afro-Brasileiras” (ed. Companhia das Letras)

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