Uma edição pulverizada e inexplicável para silenciar o escândalo da offshore do ministro da Economia; até igrejinha da Pampulha ganhou espaço
Eliara Santana*, em seu blog
Um monte de pautas geladas pra silenciar a pauta quente do dia. Assim pode ser resumida a edição da última segunda-feira, 4, do Jornal Nacional.
Uma edição vergonhosa, que escondeu descaradamente o fato de que o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem offshore num paraíso fiscal. Claro, nem de longe eu esperava ver um cano carcomido por onde escorre muito dinheiro, mas desconhecer completamente o assunto? Fingir que o escândalo não existe?
Esconder dos telespectadores a informação de que as decisões do ministro da Economia afetam seus negócios no paraíso fiscal? Esconder que o artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal proíbe que funcionários do alto escalão mantenham aplicações financeiras passíveis de serem afetadas por políticas governamentais? Esconder que Paulo Guedes pode ter lucrado muito com a alta do dólar?
É absolutamente inaceitável e indecorosa essa blindagem. Paulo Guedes pode ter lucrado milhões de dólares com a alta do dólar – o ministro comanda uma pasta que englobou as antigas pastas da Fazenda, do Planejamento e do Comércio Exterior, ou seja, é um super Ministério. E suas ações impactam diretamente a variação do dólar. Apenas para explicitar esse detalhe já se justificava uma reportagem de 4 minutos.
Além disso, o tema Pandora Papers foi fruto de uma investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos. Há veículos brasileiros que integram o grupo, e a Globo não é um deles. Mas a investigação é séria e foi notícia no mundo todo. Portanto, merecia destaque.
Mas não foi o que vimos. A edição foi totalmente fragmentada e pulverizada, com reportagens enormes sobre assuntos que não mereceriam nem um minuto de destaque. Pautas geladas, que podiam sair hoje, amanhã, daqui a três dias. E a pauta quente ficou de fora. O caso Pandora Papers, com o envolvimento do ministro da Economia, não foi sequer citado.
Foi uma edição tão absurda que o boletim do tempo teve três minutos, e não se mostrou praticamente nada dos temas política e economia. Parecia um folhetim mirabolante, algo do tipo “JN no País das Maravilhas”, tudo quase normal, até o futebol está voltando. O jornalismo mágico ressignificando a realidade.
Vamos aos detalhes.
O destaque da edição ficou por conta do bug geral do Facebook, WhatsApp e Instagram, e a reportagem foi a primeira, com 6 minutos, cheia de explicações bem detalhadas e mostrando a importância das redes sociais na vida das pessoas.
Houve destaque também para a abertura do processo de inspeção das urnas eletrônicas. Na reportagem de 4 minutos, o ministro Barroso estava bem protagonista e falando em combater desinformação – a palavra da moda, que todos usam ao bel prazer e ninguém de fato entende muito bem a dimensão.
Em outra reportagem, médicos acusaram a operadora Hapvida de pressioná-los para receitar o kit Covid e foram demitidos ao se negarem a receitar.
Depois, outra matéria de 3 minutos mostrou que a CPI estava entrando na fase final dos depoimentos, e Renan Calheiros apareceu para falar das datas de leitura e da votação do relatório.
A premiação do Nobel de Medicina ganhou matéria de 3 minutos, reportagem bem detalhada, leve, explicando as pesquisas e mostrando a história de superação dos agraciados
Tirando da edição essas reportagens, o restante é composto praticamente por pautas geladas, que podiam entrar a qualquer momento, ou pautas frias, que ganharam notoriedade apenas para tapar buraco. Foi o caso da reportagem sobre a igrejinha da Pampulha, em BH. Sim, ela é uma gracinha, fofa, todo mundo que vem a BH quer conhecer, hoje é dia de São Francisco, e a igrejinha se tornou um santuário. Uma graça, mas não era preciso uma reportagem de mais de três minutos pra isso, com imagens de dentro, do lado, do alto, dos jardins, pessoas falando como ela é uma graça.
E, ao lado da matéria da igrejinha, matérias sobre lava de vulcão na Espanha, mancha de óleo na costa norte-americana, a volta do público aos estádios pra ver futebol, a seleção brasileira na Colômbia, falta de chuva… tudo foi usado para encobrir o escândalo de um ministro da Economia, responsável por diretrizes de política econômica, e o presidente do Banco Central terem offshores em paraíso fiscal. Nem vou lembrar aqui o espaço que era dado às acusações contra o ex-ministro da Economia no governo Dilma, Guido Mantega. Era só pancada.
A blindagem contra Paulo Guedes ocorreu desde sempre, desde o primeiro momento do governo Bolsonaro. Por isso, nada na crise econômica que o país vive se liga a ele. O ministro nunca é cobrado de nada. Aliás, já disse aqui, não há ideia de crise sendo plantada, apenas problemas fragmentados são mostrados. Mas esta edição de hoje, repito, é vergonhosa e inadmissível. Nada justifica. Apenas o fato de que a desinformação é um projeto eminentemente político. Um projeto bem desenhado pelos grupos midiáticos, que encobre as relações de poder e os posicionamentos ideológicos.
E esse projeto de desinformação se ancora fortemente nessa estrutura midiática altamente concentrada. O campo midiático, não nos esqueçamos, ressignifica, remodela, redesenha o campo político, o campo econômico, o campo social, e por isso é essencial para o funcionamento democrático que haja PLURALIDADE.
Essa edição de hoje, porca, vergonhosa, absolutamente silenciadora como foi, me lembra um trecho de “Mídia, propaganda política e manipulação”, de Chomsky, que abre a minha tese:
“Considerando o papel que a mídia ocupa na política contemporânea, somos obrigados a perguntar: em que tipo de mundo e de sociedade queremos viver e, sobretudo, em que espécie de democracia estamos pensando quando desejamos que essa sociedade seja democrática” .
*Eliara Santana é jornalista, doutora em linguística e pesquisadora em desinformação e letramento midiático.
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