Armas de Fogo

Armas e motel

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Delmar Bertuol*

Saindo do motel, às sete da manhã, depois duma noite mal dormida, se é que me entendem, eu aguardava a chance de entrar na avenida.

Era uma dessas vias largas, duplicada. A uns cem metros e sem ninguém atrás, vinha uma moto, já no meio da pista e se insinuando a pegar mais pra esquerda. Calculei que dava. Entrei na via fechando bem pela direita. O motoqueiro só teria que continuar inercialmente virando mais dois metros pra esquerda. Ao meu lado passaria um caminhão frigorífico levando carne a preços absurdos. E foi o que ele fez.

Porém, ao me passar, buzinou sua buzina aguda e me mostrou o dedo do meio.

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Eu realmente não tinha a intenção de lhe cortar a frente. E, de verdade, não ocorreu. Obedeço a preferencial. Não só no trânsito. É um princípio de vida. Respeito o espaço alheio.

Na hora pensei: inveja! Ele passou a noite sozinho, ao contrário do que concluiu de mim, que saía dum motel depois duma noite em que, digamos, não dormi o tempo todo.

Imagens publicadas por participantes do grupo ‘Armas apontadas para bolas’

Ocorre que se enganara. Assim como ele, eu também passei a noite sozinho. E pior, paguei pra isso. Sim, durmo sozinho em motel. Já tive melhor, eu sei. Hoje estou como aquele motociclista equivocadamente invejoso, dormindo sozinho nas quintas-feiras. Mas isso, ao contrário do que ocorre com ele, não afeta meu (bom) humor.

Eu só não fiz o que o protocolo de trânsito manda, buzinar enraivecido de volta, por dois motivos. Primeiro, a minha buzina está estragada; segundo, sou calmo no trânsito. Mesmo depois duma noite mal dormida por conta do barulho da máquina de lavar roupas industrial (cês pensaram que era por quê?), não é qualquer avanço imprudente de sinal vermelho dum colega de transversal que faz eu querer bancar o macho-brigão. Minha autoafirmação não precisa disso. Prefiro guardar minhas energias pro amor. Ainda tenho esperança de conseguir alguém pra dividir o pernoite com direito a café da manhã.

Mas minha reflexão é: e se o motoqueiro apressado e mal amado estivesse armado, será que ao invés do dedo, ele não me apontaria uma arma? E se eu acreditasse mais na violência do que no amor e estivesse também portando um revólver, qual seria o resultado desse imbróglio?

O trânsito é só um dos vários exemplos de que a nossa civilização (ou falta dela) talvez não esteja preparada para permitir que andemos com algo cujo resultado do uso, muitas vezes em situações de irracionalidade emocional, é quase sempre irreversível.

Aliás, queremos mesmo andar armados para prevenir crimes, ou para intimidar desafetos, nos sentirmos mais machos ou mesmo para suprir alguma carência?

*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”

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