Caso de racismo na UFRGS expõe histórico nefasto do agressor
O episódio é mais um no rol de denúncias de racismo e misoginia feitas contra Álvaro Hauschild. Ele é escritor e faz sucesso entre conservadores radicais de direita. Nas últimas horas, a editora Kotter anunciou que tiraria de seu catálogo publicações escritas pelo doutorando
Agência Globo
“Que vergonha“. A frase, acompanhada de um emoji vomitando, foi o início de um pesadelo para a psicóloga Amanda Klimick, de 23 anos, moradora de Porto Alegre. A mensagem do que seria um caso de assédio deflagrou uma série de ataques racistas a seu namorado, o estudante de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Sérgio Renato da Silva, conhecido como Jota Júnior.
Amanda é loura e tem olhos verdes. Jota é negro. O estranho que a abordou é um doutorando de Filosofia, que estuda na mesma universidade de Jota, o que levou o caso para a polícia, mas sobretudo para dentro do debate acadêmico.
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O episódio é, na verdade, mais um no rol de denúncias de racismo e misoginia feitas contra Álvaro Hauschild, apontado como assediador. No inquérito que corre na Polícia Civil do estado, está anexado um dossiê feito por alunos da universidade, que foi entregue em agosto à UFRGS, mas não resultou em qualquer ação contra o estudante.
Universidade tem cotas
Entre outras frases para ilustrar sua perplexidade pelo fato de Amanda se relacionar com Jota, Hauschild escreveu que negro “exala um cheiro típico”, que “tem um cérebro programado para fazer o máximo de filhos que puder” e “consegue harmonizar bem na savana”.
O doutorando também abordou, de acordo com os relatos da moça, fundamentos supostamente genéticos para defender que o povo europeu — aparentemente em alusão a ele e a Amanda em contraposição a Jota — “precisou ser guerreiro” e se defender dos invasores para se “purificar”.
“Não foi só racismo. Foi uma quantidade gigantesca de absurdos, de crueldade, de machismo, de misoginia, de preconceito contra casais inter-raciais. É muito doloroso tudo que aconteceu. E imaginar que uma pessoa como ele está dentro de uma universidade, é um formador de opinião”, rebate Amanda, afirmando acreditar que Hauschild a viu com Jota e passou a agir como stalker, já que mora perto de seu trabalho.
Hauschild é escritor e faz sucesso entre conservadores. Ontem, a editora Kotter anunciou que tiraria de seu catálogo e recolheria o livro Anamnesine, uma seleção de contos, escrito pelo doutorando. Com 29 anos, Hauschild promove ideias associadas a radicalismos de direita. Ele é tradutor do filósofo ultranacionalista russo Aleksandr Dugin. Dugin e o ideólogo brasileiro Olavo de Carvalho escreveram juntos o livro-debate “Os EUA e a nova ordem mundial”.
“A gente tem receio de tomar uma atitude e ser injusto com o autor, mas verificamos outras questões, como um blog que ele mantinha, e solicitamos que fossem recolhidos os exemplares de todas as livrarias”, afirmou Sálvio Kotter, coordenador da editora, anunciando o distrato judicial com o autor. “O livro é um romance. Não é política, essas coisas. Pode ser que agora que a gente sabe encontre algo que aponte no sentido das convicções dele, que tenha passado como uma metáfora e que não fosse”.
O total de estudantes negros em universidades brasileiras já ultrapassou o de brancos: 50,3% do total da rede pública. A última Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios do IBGE mostra que o Brasil, em 2019, já tinha cerca de 4 milhões de pretos ou pardos no ensino superior. Desses, 1,4 milhão no Sudeste e 1,3 milhão no Nordeste. A Região Sul tem a mais baixa representatividade da população negra em universidades com 254 mil alunos para mais de 1 milhão de brancos. A UFRGS foi uma das primeiras do x país, em 2008, a adotar o sistema de cotas.
Jota, de 23 anos, que se declara “liberal ambientalista” em suas redes sociais, vai sustentar a acusação de racismo contra Hauschild, não apenas de injúria racial, caso mais comum, quando o ataque tem um alvo específico. Para ele, o que aconteceu foi uma afronta a toda uma raça:
“Além do que aconteceu comigo, as novas denúncias contra ele colocam uma responsabilidade muito grande sobre a universidade, porque, a se confirmar a veracidade das informações, ela terá que expulsar o aluno”.
“Ideologia nefasta”
No dossiê que alunos e ex-alunos da UFRGS submeteram à ouvidoria da instituição, um mês e meio antes de as acusações do casal virem à tona, há publicações de Hauschild coletadas em redes sociais e blogs. Nelas, ele diz coisas como “é nosso dever não aceitar e não levar em consideração acusações de racismo, privilégio ou afins”.
Também classifica o feminismo como “ideologia nefasta” e diz que “nossas filhas estão servindo de mão de obra para propagar Black Lives Matter em universidades”. Cita que características como orgulho, inteligência e virtude são inatas ao povo germânico, além de pregar uma “preservação étnico-racial”.
Ao tratar sobre o holocausto, Hauschild prega que o genocídio judeu na Segunda Guerra Mundial foi “Holoconto imposto goela abaixo sobre os povos”. Para ele, o tema é tratado com um discurso “ intensamente sentimental” e midiático para evitar que se coloque “em questão a verdade científica a respeito”. Os estudantes fizeram prints de imagens usadas pelo doutorando que hoje são associadas ao neonazismo e à supremacia branca.
Tudo foi entregue no dia 2 de agosto pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia ao Núcleo de Assuntos Disciplinares (NAD) da universidade, que recomendou ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas a abertura de um processo disciplinar. O diretor IFCH, Hélio Ricardo Alves, afirmou que duas denúncias estão sendo investigadas.
“Essas informações são públicas, estão nas mídias sociais (do Álvaro). O único trabalho que a gente teve foi de procurar os textos e enviar para a ouvidoria (da UFRGS)”, disse um dos denunciantes, sob a condição de anonimato.
Nota da UFRGS
Em razão de mensagens que circulam nas redes sociais envolvendo relatos de que um estudante de curso da UFRGS haveria feito manifestações ofensivas, a Secretaria de Comunicação Social esclarece que a Instituição repudia qualquer forma de discriminação. Ressalve-se que, no caso em questão e em toda situação congênere, esta tipificação somente poderá ser caracterizada após a avaliação pelas instâncias competentes, condicionada inicialmente à decisão da direção do curso ao qual o estudante esteja vinculado pela abertura ou não de procedimento investigatório.
Nota do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
A respeito de recentes denúncias de ataques racistas perpetrados por um membro de seu corpo discente, e diante do caráter pouco informativo das notas publicadas recentemente por outras instâncias da Universidade, o Programa de Pós-Graduação em Filosofia vem tornar públicas, não apenas suas posições, mas sobretudo as ações que vem tomando para ver punidas e coibidas quaisquer formas de discriminação, racismo, injúria racial, desrespeito e assédio, em ações ou palavras, no âmbito do Programa.
Já tivemos a oportunidade de explicitá-lo por ocasião do início do atual semestre letivo em nossa Carta à Comunidade do PPGFil e temos traduzido esse compromisso em ações concretas.
Em conformidade com seus deveres institucionais e observando as normas da UFRGS, a coordenação do PPGFil examinou de forma tempestiva – e não de agora – uma série de denúncias de discurso discriminatório e de ódio por parte de discente do Programa, recebidas em julho deste ano. Tendo constatado a gravidade dos fatos, o Programa encaminhou no último dia 12 de agosto tais denúncias ao Núcleo de Assuntos Disciplinares (NAD) da UFRGS, que emitiu um juízo de admissibilidade sobre as informações trazidas e recomendou à unidade responsável (no caso, o IFCH), a abertura de processo disciplinar.
Nesse sentido, o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRGS junta-se publicamente à pressão da comunidade universitária e da sociedade civil para que não haja complacência com infrações de nossos códigos disciplinares e, em especial, com violações dos direitos e garantias fundamentais protegidos por nossa Constituição.
Declaramos ainda nosso compromisso de continuar trabalhando para que eventos semelhantes não se repitam.
Porto Alegre, 04 de outubro de 2021