Livro “Para onde vão as borboletas à noite”
Quem quiser se alistar à Guerra da Síria pelo “Para onde vão as borboletas à noite” entre em contato com a escritora. Haverá feridas que nos marcarão para a reflexão. Mas o leitor sobreviverá mais vivo do que antes
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Uma vez vi uma propaganda que achei muito criativa e espirituosa. Os técnicos que estavam desenvolvendo o produto discutiam que ele ainda não estava dificultando a vida dos clientes. Eles queriam que quem comprasse o anunciado tivesse muito trabalho, desafios. Era um comercial de videogame.
Lembrei dele ao ler “Para onde vão as borboletas à noite”, livro de estreias de Andreia Schefer. E faço questão de dizer que é um livro de estreia porque tenho assumida desconfiança com escritores iniciantes. Meu maior receio é que ocorra o que mais odeio em literatura: o receio do escritor, porque justamente inciante, de dizer o que deve ser dito, o que o leitor, inconscientemente, espera que seja dito. Mas Andreia, tal qual os ficcionais técnicos da marca de videogame, não nos poupa. Nos desafia a virar pra outra página, mesmo sabendo que haverá mais tragédia. É uma guerra, pois.
Só pelo título curioso, instigante e, por que não dizê-lo, com um quê de poético, já nos dá vontade de adquirir o livro e pelo menos exibir na prateleira às visitas. Mas claro que, leitores vorazes que somos, iríamos pelo menos iniciar a leitura. O término dela é facultativo, como em seguida defenderei.
A obra trata da história de um menino, Nagib, de doze anos (ele começa a história com essa idade) em meio à guerra na Síria. Melhor dizendo, sua luta para fugir e/ou sobreviver aos horrores da guerra. Sim, aos horrores. A palavra é essa. Como disse, Andreia não nos tem protocolar benevolência. É um livro sobre guerra, e a crueza dela nos é mostrada a cada página. A leitura não é facilitada.
O abri com o meu citado preconceito com iniciantes que, corajosos, assinam um livro e assumem o risco das críticas. Ou, pior, do ostracismo, num país em que a leitura deu lugar ao grupo de Whats da família. A ignorância hoje, ao que parece, é motivo de orgulho. Mas caso não fosse bom, eu o abandonaria. Não tenho melindres quanto a isso. Se a leitura dalgum livro se torna enfadonha, eu o largo ao inóspito do armário e abro outro. Mesmo que vivesse mil anos, sequer conseguiria ler os chamados clássicos. Vou contar um segredo: já iniciei sem terminar pelo menos umas três vezes o “Cem Anos de Solidão”. Me julguem. Um colega que passou por semelhante situação me deu uma dica. Fazer uma árvore genealógica e a ir consultando durante a leitura. Farei isso.
Mas fato é que a vida é muito curta pra insistir num livro ruim, pra votar na direita e pra não dizer praquela amiga ou colega da sua intenção de lhe provar o beijo. A vida também é muito curta pra insistir num relacionamento cujo beijo é insonso.
Falo em beijos e fujo do assunto… voltemos à guerra.
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Iniciei e leitura e não mais parei. Com poucas e objetivas personagens, a trama se desenvolve e nos instiga a continuar. A narração em primeira pessoa, do Nagib, nos causa ainda mais aflição. Sem a onisciência do narrador em terceira pessoa, acompanhamos com os olhos de Nagib a angústia da guerra. E não é a angústia dele que experimentamos. É a nossa! Andreia, sem pudor, convite ou cortesia, nos leva à Síria em guerra. Ouvimos o som dos tiros e sentimos o fétido dos corpos amontoados.
Ela poderia nos dizer do paradeiro de Hani, pai de Nagib. Se é que ele está vivo. Mas Andreia não nos tem compaixão, pois as guerras não tem compaixão. A guerra traz morte, fome, sofrimento e pessoas cujos destinos ninguém sabe. Nem os filhos e nem os leitores.
“Cutuquei Samir e mostrei a ele meus olhos fechados, para que ele fizesse a mesma coisa. Assim não veríamos aquelas cenas horríveis.” Essa passagem me marcou. A partir dela pude perceber que não me era facultado fechar os olhos. Eu teria muito sofrimento paradoxalmente desejado pela frente. A boa literatura por vezes nos dá essa satisfação incomodativa.
Andreia já avisou em entrevista que, embora as possibilidades abertas pelo enredo, ela não pretende fazer uma continuação. Acho que age bem. A história contada por ela não precisa outro desfecho que não o do não-desfecho mesmo. As dúvidas e inconstâncias são parte da vida. As angústias do porvir, no caso duma guerra, talvez seja a melhor ilustração desse tipo de conflito. Se há dúvidas, veja como a cada página acontece mais um fato novo e geralmente lamentoso.
Quem quiser se alistar à Guerra da Síria pelo “Para onde vão as borboletas à noite” entre em contato com a escritora. Haverá feridas que nos marcarão para a reflexão. Mas o leitor sobreviverá mais vivo do que antes.
Eis os contatos:
Whats (51) 9244 6664;
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Instagram @andreiascheferescritora
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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