Direita

Nelson Piquet paparica Bolsonaro para não perder negócio com o governo federal

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Piquet bajula Bolsonaro em meio a risco de perder negócio milionário. Condenação de empresa do ex-piloto em processo tributário coloca em perigo contrato com o governo

O Rolls Royce presidencial, com Piquet ao volante, no 7 de setembro: episódio mais recente da bajulação explícita do ex-piloto ao presidente de extrema direita (Imagem: Alan Santos | PR)

Alexandre Aragão, The Intercept

O ex-piloto Nelson Piquet, tricampeão mundial de automobilismo na década de 1980, se tornou mais conhecido nos últimos tempos pelas manifestações toscas em defesa do governo e das pautas de Jair Bolsonaro. O ápice do alinhamento de Piquet ocorreu em 7 de setembro passado, quando ele se prestou ao papel de chofer no passeio no Rolls-Royce presidencial com que Bolsonaro abriu o dia de manifestações contra a democracia, em Brasília.

Piquet é eleitor de Bolsonaro desde o primeiro turno, em 2018. Naquele ano, foi aplaudido e chamado de “mito” durante uma reunião da área comercial da empresa que preside, a Autotrac, quando disse, para risos da plateia: “Quem é o viado aqui que vai votar nesse PT?”.

Ele também gravou vídeos de apoio para candidatos bolsonaristas. “Tereza Cristina, nós estamos esperando você aqui em Brasília para ajudar o Bolsonaro a botar esse país em ordem, viu?”, ele pediu, se dirigindo à política do DEM de Mato Grosso do Sul que se elegeu deputada federal, mas nem assumiu o cargo — foi convocada a ser ministra da Agricultura ainda em fins de 2018.

Tido como um piloto cerebral e disposto a atitudes antidesportivas para vencer nas pistas, Piquet, atualmente empresário, tem bons motivos para paparicar Bolsonaro. Uma de suas empresas, a Autotrac, travou uma batalha legal contra a União ao longo de mais de uma década. Ela terminou em maio passado, e a Autotrac perdeu: o Superior Tribunal de Justiça, o STJ, a condenou a pagar contribuições previdenciárias que deixou de recolher. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a PGFN, então, enviou ofício à Receita Federal informando sobre a decisão e determinando que o órgão, subordinado ao Ministério da Economia, cobrasse a dívida da Autotrac.

Sem esperanças nos tribunais, a Autotrac, uma fornecedora de serviços de rastreamento via satélite de caminhões de que Piquet é presidente e garoto-propaganda, se vê ameaçada não apenas de ter que arcar com uma dívida grande, como também de perder um contrato de R$ 3,5 milhões anuais com o governo federal, firmado sem licitação em 2019, no início do governo Bolsonaro. Mais especificamente, com o Instituto Nacional de Meteorologia, o Inmet, subordinado ao ministério comandado por Tereza Cristina.

A dívida tributária da Autotrac é mantida em sigilo pelas autoridades, mas é razoável estimar que é grande: a empresa deixou de pagar contribuição previdenciária sobre uma série de direitos de seus funcionários (são mais de 300, atualmente) ao menos desde 2011.

Após a condenação, o STJ enviou intimação à Receita Federal. Com isso, o órgão irá enviar carta-cobrança à empresa, na qual irão constar o valor da dívida e as condições de pagamento. Caso a Autotrac não pague ou opte por negociar, a Receita Federal inicia um processo de execução fiscal e inclui o débito na Dívida Ativa da União. Se isso ocorrer, a empresa de Piquet não poderá renovar nenhum dos contratos que mantém com entes públicos, inclusive o que tem com o Inmet — o único, atualmente, com o governo federal.

Por ser uma sociedade anônima, a Autotrac é obrigada a publicar balanços e divulgar seu faturamento, auditados pela consultoria Deloitte. Na mais recente assembleia geral, em março, a companhia informou que o lucro líquido apurado em 2020 foi de R$ 61,7 milhões. Por ser dono de 75,8% das ações da Autotrac, Piquet receberá da empresa a maior parte dos dividendos distribuídos por ela, que esse ano somam R$ 50 milhões.

Mas o contrato com o Inmet certamente não é desprezível: garante pagamentos de R$ 295 mil todo mês à empresa e prevê renovações seguidas e anuais até 2026. A próxima será discutida no vencimento do acordo, em 29 de novembro — ou seja, em menos de 60 dias.

Dá para entender a angústia de Piquet.

Contrato sigiloso, dívida monumental

A inexigibilidade de licitação é permitida pela lei em casos específicos — por exemplo, quando a empresa contratada não tem concorrentes no mercado. Seguramente, esse não é o caso da Autotrac. Mas não é possível saber o motivo da dispensa de concorrência. O processo foi classificado como restrito no sistema do Ministério da Agricultura e, por isso, os documentos que embasam a dispensa de licitação não são públicos.

Os contratos até estão disponíveis na página de transparência do site do Inmet, mas omitem os nomes dos representantes da Autotrac. Mesmo assim, não é difícil achar as digitais de Piquet no mais recente deles, assinado em Brasília em novembro de 2020. Um trecho da assinatura que escapou da tarja preta da censura revela partes de um N e de um P de caligrafia conhecida: é o autógrafo do tricampeão Nelson Piquet.

A Autotrac foi condenada a pagar contribuições previdenciárias sobre o décimo-terceiro salário proporcional, aviso prévio indenizado, horas extras, adicionais noturno, de periculosidade, de insalubridade e de transferência. A empresa deixou de recolher esses tributos em 2011, quando ajuizou a primeira ação esperando escapar do pagamento deles.

Com o passar do tempo — e dos recursos judiciais — o caso chegou ao STJ, que o julgou em maio. Decisões monocráticas como a do ministro Gurgel de Faria nesse caso só são habituais, no STJ, em questões sobre as quais exista jurisprudência pacificada — ou seja, em que a corte tenha um entendimento sólido e convergente sobre a questão.

Os advogados da Autotrac podem questionar a decisão do STJ no Supremo Tribunal Federal. Mas, para isso, seria necessária uma nova ação judicial que questione a contribuição previdenciária em si. Ela não teria, contudo, o efeito de suspender os débitos que já existem. Um integrante do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o Carf, tribunal administrativo ligado ao Ministério da Economia, comentou o assunto sob a condição de sigilo e me explicou que o cálculo de uma dívida do tipo depende basicamente de dois fatores: o tempo decorrido sem recolhimento e o tamanho da folha de pagamento da empresa.

O valor da dívida pode chegar às centenas de milhares de reais, uma vez que a Autotrac possui mais de 300 funcionários e ficou sem recolher as contribuições durante quase 11 anos. Questionei a PGFN, que me respondeu apenas que “tal valor será calculado pela Receita Federal e discriminado no momento do lançamento”.

A Receita irá retomar a cobrança agora que foi intimada da decisão judicial, abrindo prazo de 30 dias para pagamento ou parcelamento da dívida. No entanto, o ofício da PGFN enviado à Receita Federal em 18 de agosto — três meses após a decisão do STJ — indica que a retomada da cobrança ainda não havia ocorrido. Amparada no artigo 198 do Código Tributário Nacional, que prevê o sigilo fiscal do contribuinte, a Receita Federal não informou o valor da dívida e me disse que não comenta casos específicos.

Para estar apta a renovar o contrato com o Inmet em novembro, a Autotrac precisará apresentar uma certidão negativa de débitos relativos aos tributos federais e à Dívida Ativa da União, atestando que a empresa não deve impostos ao governo federal. Durante os anos em que questionou os débitos tributários na justiça, a Autotrac assinou contratos públicos apresentando uma certidão positiva com efeitos de negativa, o que significa que ela tinha uma dívida com a União sob disputa judicial. Agora que o caso foi encerrado e a empresa foi condenada, não será mais possível enquadrá-la nessa categoria.

No meio tempo, uma esperança surgiu no horizonte. Mesmo que a Autotrac seja inscrita na Dívida Ativa da União, contará com condições favoráveis para quitar o débito. Em 22 de setembro, o Diário Oficial da União publicou portaria da PGFN reabrindo o prazo para adesão ao Programa de Retomada Fiscal, instituído em setembro de 2020 como forma de estimular empresas afetadas pela pandemia a quitarem suas dívidas com o governo.

A modalidade de transação extraordinária, acessível mesmo a empresas que não sofreram com a pandemia, prevê o pagamento de uma entrada correspondente a apenas 1% do total da dívida, dividida em até três vezes. O restante do valor — no caso de débitos previdenciários — pode ser parcelado em até 60 vezes, ou seja, em cinco anos. Conforme as regras definidas na Portaria 11.496, empresas inscritas na Dívida Ativa da União até 30 de novembro deste ano poderão aderir ao programa até 29 de dezembro.

Ter a Receita Federal sob controle, convém lembrar, está entre as prioridades de Jair Bolsonaro. O órgão é parte relevante nas investigações sobre transações suspeitas envolvendo os filhos parlamentares Flávio e Carlos, as ex-mulheres Ana Cristina Valle e Rogéria Bolsonaro e ex-funcionários dos gabinetes da família.

Em agosto, Bolsonaro publicou um decreto em que afrouxou os critérios para a nomeação de corregedor do órgão, abrindo espaço para a indicação de um auditor fiscal aposentado que é o preferido do senador Flávio Bolsonaro, do Patriota do Rio, para o cargo. Segundo o Valor, Dagoberto da Silva Lemos participou em julho de uma reunião com Flávio e Jair Bolsonaro para discutir sua futura atuação como corregedor da Receita.

Piquet, também ansioso por uma solução da Receita para os problemas da Autotrac, certamente teve tempo para explicá-los ao presidente — não apenas em 7 de setembro, mas já desde abril, quando o empresário Luciano Hang, dono das lojas Havan, o levou para uma visita dominical ao Palácio da Alvorada.

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Procurei Piquet e a Autotrac desde 27 de setembro para que dessem explicações sobre o caso narrado nesta reportagem. Enviei três e-mails e falei ao telefone três vezes com a assessoria de comunicação, mas não tive qualquer resposta. Enquanto isso, Piquet se tornou alvo de memes na internet, que o compararam até a motorista do Uber presidencial. Mas que importa aparecer como lacaio do presidente, afinal, se isso pode valer a solução de um grande pepino tributário e a renovação de um contrato polpudo?

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