Relatório final da CPI ajuda a olhar a tragédia, que já ceifou 605 mil vidas, em perspectiva. Você pode não gostar do relator, mas não pode dizer que os capítulos ali narrados foram inventados
Matheus Pichonelli, Yahoo
Quem acompanha o noticiário político lembra-se com facilidade da última bobagem dita por Jair Bolsonaro. Mas mesmo o observador mais atento terá dificuldade de recordar o que o presidente disse na semana passada. E na anterior.
A sucessão de bobagens passam como carros acelerados. Mal desviamos de um, vem outro. E outro. O foco na lataria seguinte, vindo em nossa direção, leva ao esquecimento o atentado do carro anterior e do outro.
A profícua capacidade do presidente e sua equipe em produzir assunto novo é seu grande triunfo. A passagem do tempo amortece e nos anestesia.
Por isso serve como documento para a História, com H maiúsculo, o relatório da CPI do Senado, que amarrou numa linha temporal a sucessão de falas, ações e omissões esquecidas ou encobertas na memória de quem engoliu tudo sem tempo de digerir e não reage por pura desorientação.
Falo como cidadão.
E, como cidadão, penso ser dever de cada um guardar o relatório, ou ao menos o resumo dele feito pelos jornais, com recursos gráficos, quase didáticos, para os julgamentos. Não os dos tribunais penais internacionais, para onde podem e devem seguir. Mas para os julgamentos particulares de cada pessoa que ainda não perdeu a capacidade de sentir e se indignar.
Por mais que acompanhe diariamente as patacoadas produzidas pelo atual governo, a memória de fatos recentes, reativada pelo relatório, serve como gatilho —principalmente quando lembramos de parentes, vizinhos, amigos e parentes de vizinhos e amigos que perderam a vida enquanto o presidente mandava ficar tranquilo porque o tal coronavírus não faria mais vítimas do que uma gripe comum e não merecia alarde nem histeria. Ou quando ele apostava em voz alta que a covid-19 não faria estragos na região norte do país porque lá encontraria uma barreira de contenção chamada cloroquina, já usada como “vacina” pelos locais no combate da malária.
Era tudo mentira.
O relatório ajuda a olhar a tragédia, que já ceifou 605 mil vidas no país, em perspectiva. Você pode não gostar do relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), mas não pode dizer que os capítulos ali narrados foram inventados.
No trecho dedicado à imunidade de rebanho, o material recolhido, e amplamente divulgado pelos agora acusados, é prova inequívoca da estratégia que se mostrou desastrosa. O parecer reuniu declarações de conselheiros presidenciais, como Osmar Terra —que por alguns momentos agiu como ministro informal da Saúde, e segundo quem “não é a vacina que vai acabar com a pandemia”, e sim a “imunidade de rebanho”. O próprio presidente disse em diversas ocasiões que a “melhor vacina” era se contaminar, como ele fez. Está tudo registrado.
A oposição às medidas sanitárias, com ataques às recomendações da Organização Mundial de Saúde para evitar a propagação do vírus, também está mais do que documentada. Basta lembrar, como faz o relatório, o dia em que o presidente se pronunciou em rede nacional conclamando a população a “voltar à normalidade” — para que assim, quem tivesse de se contaminar se contaminasse logo e quem tivesse de morrer fosse logo enterrado.
O que não falta são fotos de Bolsonaro provocando aglomeração quando era consenso a necessidade de ficar em casa ou provas de ações tomadas por seu governo para derrubar as medidas restritivas de prefeitos e governadores —inclusive com ameaça de uso das Forças Armadas.
Está documentada também a demora do governo para agir na crise de Manaus, que entrou em colapso após a pressão de aliados de Bolsonaro para derrubar a única medida possível naquele momento: o lockdown (medida impopular e dolorosa, certamente, mas inevitável para salvar vidas naquele momento). Lá sobraram pacientes e faltaram leitos com oxigênio. Foi lá que o agora ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello desfilou sem máscaras e perguntou onde comprava ao ser chamado a dar o exemplo.
Vale mencionar também o capítulo dedicado à profusão de fake news durante a pandemia, com uma rede montada para desacreditar as vacinas, as medidas de restrição e o uso de máscaras. O que o relatório fez foi reunir os inúmeros episódios em que Bolsonaro e sua equipe agiram em público e sem corar para espalhar confusões e inverdades na esperança de que o vírus atingisse o maior número de pessoas no menor tempo possível.
Nas primeiras sessões da CPI, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta falou sobre a existência de um certo aconselhamento paralelo a fazer a cabeça do presidente e compartilhou uma carta com o alerta de que, se medidas não fossem tomadas, o país chegaria ao fim de 2020 com cerca de 200 mil mortos. Foi o que aconteceu.
O alerta, como se sabe, foi ignorado. Bolsonaro preferiu ouvir os terraplanistas sanitários que apostavam em voz alta que a pandemia mataria por aqui no máximo 800 compatriotas. Tudo ao “arrepio das orientações técnicas” do próprio Ministério da Saúde —que trocou de mãos quatro vezes na maior crise sanitária da história.
Sobre a obsessão com o tal tratamento precoce, hoje parece clara a estratégia de “priorizar a cura via medicamentos, e não vacinação, e expor a população ao vírus, para quem fosse atingida mais rapidamente a imunidade de rebanho pela contaminação natural”.
Estão no documento a demora para a compra da vacina da Pfizer, os rolos para adquirir a Covaxin em condições que só beneficiariam seus intermediários, e a dobradinha com a Prevent Senior, que espalhou por aí um estudo mais mal feito do que trabalho preguiçoso de quarta série e serviu como atestado para entupir pacientes de medicamentos ineficazes e deixá-los morrer longe dali — com a suspeita ainda de alterar prontuários e atestados de óbito para não dar bandeira do grande erro cometido.
Por fim, Bolsonaro escapou da acusação genocídio. Isso porque os integrantes da CPI não chegaram a um acordo sobre se as ações e omissões do presidente tinham como fundo a perseguição consciente de grupos étnicos. É verdade que, por um tempo, quilombolas e grupos indígenas, os mais vulneráveis na crise, ficaram sem água potável e foram, como tantos, transformados em cobaias de kits ineficazes. O carinho do presidente e seus amigos com estes grupos está disponível para consulta em qualquer buscador ou aplicativo de vídeo. Mas é verdade também que eles foram os primeiros a serem vacinados quando a pressão para a compra de imunizantes fizeram o governo ceder.
O comandante-em-chefe da tragédia “monstruosa”, conforme classificou o relator, segue boicotando o próprio programa dizendo que não vai se vacinar, influenciando e levando a ação de grupos descerebrados a fazerem o mesmo, como ocorreu na Câmara de Porto Alegre no mesmo dia em que o relatório foi entregue. Até ali, naquelas agressões de base neonazista, veem-se as digitais do capitão. Como presidente, Bolsonaro é o maior influencer do país. Diferentemente de um descerebrado que fala o que quer nos ambientes privados dos churrascos de família, o que um presidente fala e pensa tem consequência e reverbera.
Sem o indiciamento de genocídio colado à testa, reverbera contra Bolsonaro agora “apenas” as acusações de ter promovido epidemia com resultado de morte, charlatanismo, infração de medida sanitária preventiva, emprego irregular de verbas públicas, incitação ao crime, falsificação de documento particular, prevaricação, crime de responsabilidade e crime contra a humanidade. Ali estão os elementos para a biografia oficial do presidente e seu governo.
A não ser que alguém tenha passado os últimos 20 meses em coma, não será difícil juntar os cacos da memória para concluir que todas essas acusações têm dois pés e meio na realidade. Uma realidade encoberta pelas fumaças produzidas pelos mesmos gabinetes agora acusados.
O presidente prefere rir dos pedidos de responsabilização, garante seu filho, senador Flávio Bolsonaro, que soltou uma gargalhada de vilão de novela ao comentar as acusações contra ele e sua turma.
Nos julgamentos particulares de quem viu tudo e ainda não foi soterrado pela memória, até essa risada estará na conta.
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