Aprovado no ITA é rejeitado após canabidiol em exame toxicológico
ITA desclassifica candidato por uso legalizado de cannabis medicinal. Substância que salva vidas ainda é vista com maus olhos em instituição de ensino gerida por militares. Outros aprovados perderam vaga em testes de peso e de cor da pele
Quem já prestou vestibular sabe que, por mais bem preparado que um candidato esteja, o fator psicológico tem um peso capaz de determinar se o desempenho do estudante na prova será de êxito ou de fracasso. Quando, então, o teste em questão é para o ingresso em uma das instituições de ensino mais concorridas do país, como é o caso do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), podemos elevar tudo isso a enésima potência.
Eduardo Zindani, hoje com 20 anos, convive com a exigência autoimposta por um excelente resultado escolar desde 2019, quando decidiu cursar Engenharia Aeroespacial no ITA, uma instituição que é referência nessa área não só no Brasil, mas também no mundo, uma vez que é de lá que sempre saíram os “cérebros” da Embraer.
Alfabetizado em inglês, traçou a meta ousada de ingressar no ITA, em São José dos Campos, São Paulo. Enquanto no MIT, em Cambridge, nos EUA, maior centro de estudos tecnológicos do mundo, apenas 9% dos candidatos passam, no ITA este índice é de menos de 2%.
Depois do 1º ano de cursinho, ele conseguiu passar na 1ª fase, mas não na 2ª. Então, retomou as aulas preparatórias na mesma época em que a covid-19 acometia as primeiras vítimas no Brasil.
Apesar de 80% da população brasileira sofrer de estresse e ansiedade desde que a pandemia começou, segundo pesquisa realizada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ambas as condições ainda são tratadas como males menores por parte dos médicos e da sociedade.
O espanto generalizado causado pela desistência de uma atleta da envergadura da ginasta americana Simone Biles de competir nas Olimpíadas em Tóquio para preservar sua saúde mental é uma grande prova de que ainda há muito o que evoluir nessa seara.
No 2º semestre de 2020, Zindani foi para Londres passar uns meses na casa dos pais, em busca de acolhimento na reta final dos esforços que o levaria a conquistar seu sonho de ingressar no ITA. Sua mãe, Claudia Zindani, sugeriu que ele provasse o canabidiol (CBD) utilizado por ela no combate à insônia –e que seu médico havia comentado ser útil também em casos de estresse e ansiedade.
Na volta ao Brasil, ele alcançou bons resultados nas duas fases classificatórias do ITA, deixando para trás dezenas de candidatos com quem disputava uma das 119 vagas disponíveis para não-militares. Eduardo conseguiu uma das 150 vagas do instituto disputadas por 9.725 alunos este ano.
Em janeiro deste ano, mudou-se para o alojamento do instituto, em São José dos Campos, animado por conhecer os colegas e viver a experiência do trote, que é uma espécie de rito de passagem nas universidades públicas.
Das 150 vagas que o ITA dispôs este ano, 31 foram destinadas aos candidatos que quisessem seguir carreira militar, e todos eles, até mesmo os que optaram pelo curso civil, são avaliados pela Junta Regular de Saúde da Aeronáutica em uma 3ª fase, descrita no edital do concurso como “inspeção de saúde”, determinando que “os alunos do ITA, […] realizarão o Curso de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) durante o primeiro ano fundamental, devendo, portanto, apresentar condições mínimas de saúde requeridas para o desempenho das atividades previstas”.
Ao receber o resultado da última fase de testes, aplicados pelo Centro de Preparação de Oficiais da Reserva da Aeronáutica de São José dos Campos (CPORAER-SJ), braço militar da instituição, um frio percorreu a espinha do estudante: inapto, dizia o papel.
No último exame, pela primeira vez, o ITA aplicou o teste toxicológico. É uma das novidades no processo de ingresso do instituto que mostra a preocupação com a realidade que vai além de seus muros. Mas as novas regras criar conflitos com hábitos e mudanças de comportamento.
A detecção de 0,39 ng/mg de CBD no seu exame toxicológico foi suficiente para que o ITA o considerasse incapaz por uso de drogas. Nem mesmo o fato de não ter sido encontrado nenhum vestígio de THC ou de qualquer outra substância presente na cannabis os fez considerar que talvez se tratasse do uso médico de uma substância lícita: “Eu não entendi nada. Por que eles estão olhando isso se é sabido que o canabidiol já não é considerado droga há vários anos?”
“Eu morava na Inglaterra, onde o uso do canabidiol é autorizado sem receita. Estava muito nervoso com a prova de redação e gramática e minha mãe me deu o calmante para controlar a ansiedade”, relata Eduardo.
A partir daí, iniciou-se uma via crucis para garantir o direito de Eduardo ingressar no ITA, já que mesmo com um resultado excepcional nas duas primeiras fases de teste e tendo sida constatada sua aptidão física para ocupar a vaga, tanto a instituição de ensino quanto a Aeronáutica contrariam o entendimento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que tem a responsabilidade de definir quais substâncias são consideradas lícitas ou não e, em 2015, retirou o CBD da lista de substâncias entorpecentes.
“Desde a resolução, o CBD não é mais considerado proibido e quem faz uso do medicamento não pode, sob hipótese alguma, ser classificado ou diagnosticado como usuário de drogas”, defendem os advogados do rapaz.
Eduardo rumou para São Paulo ao lado de outros estudantes tidos como “inaptos” para uma nova avaliação médica. No hospital da Força Aérea, foi atendido por um psiquiatra. “Expliquei tudo, disse que usei o CBD para aliviar o estresse do pré-vestibular e que na verdade acabou me causando mais estresse ainda”, conta ele, que chegou a mostrar ao médico um relatório da Wada, a agência mundial antidoping, que em 2018 excluiu o canabidiol da lista de substâncias proibidas, mas foi ignorado.
Na volta a São José dos Campos, Eduardo e os outros estudantes foram recebidos com aplausos pelos outros colegas de turma, com os quais, segundo ele, àquela altura, já havia estabelecido um vínculo “quase familiar”. Ainda assim, optou por deixar o alojamento e voltar para casa, em Ribeirão Preto, para esperar o resultado final da avaliação psiquiátrica.
Três dias depois, o resultado divulgado mantinha a decisão anterior e a instituição procedeu pelo seu desligamento. “Minha ficha demorou a cair, não fazia sentido. Na minha cabeça, exame toxicológico é para pegar alguma droga, não CBD, né?”, questiona-se.
Segundo Claudia, o filho mantinha uma dedicação aos estudos de 12 horas por dia, 7 dias por semana. “Vivemos uma emoção incrível e, depois de algumas semanas, tudo foi destruído por uma palavra horrível como ‘inapto’, pelo simples uso de uma substância liberada”, lamenta ela, que chorou durante semanas ao lado do marido por “tamanha injustiça”.
Mães e pais dos estudantes da turma de Eduardo fizeram uma vaquinha para bancar os advogados na defesa dos jovens considerados “inaptos” por problemas de visão, histórico de cirurgias, peito escavado e outros. Eduardo, o único desclassificado por uso de cannabis medicinal, precisou adentrar o território jurídico no intento de mudar paradigmas desatualizados em uma instituição centenária e militarizada.
À beira do desespero, Claudia buscou todas as alternativas em busca de justiça e, para isso, pediu ajuda a um dos maiores especialistas em antidoping do Brasil, o médico Fernando Solera, coordenador da comissão antidoping da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), para a construção da defesa do filho.
“Por estar prestando vestibular, ainda mais para o ITA, fica muito claro que ele estava passando por um período de ansiedade enorme. Imagina como estava a cabeça desse jovem, que precisava ser aprovado no exame mais difícil da vida dele?”, lembra Solera.
“O medicamento que ele tomava era de uma pureza muito grande, tanto que o resultado encontrado na amostra não tinha absolutamente nada de THC. Para mim, ficou muito claro defendê-lo e tentar mostrar um novo caminho para os colegas médicos do ITA”, conclui.
Correndo contra o tempo para não perder os ritos simbólicos de entrada na universidade, protocolou a defesa de seu caso com o apoio de Solera, além de outros médicos e advogados que contribuíram na construção de argumentações pertinentes, que envolveu chamar a atenção para o seu bom desempenho nas provas, seu histórico clínico e toxicológico e a evolução científica, esportiva e social do canabidiol.
No entanto, a 1ª Vara Federal de São José dos Campos deu uma resposta negativa ao seu pedido ordinário de tutela de urgência logo de cara (leia a íntegra aqui). Questionado, o Comando da Aeronáutica, que responde pelo ITA, afirmou que “não se pronuncia sobre processos judiciais em andamento”.
Apenas quando o recurso foi para a 2ª Instância, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região em São Paulo, o juiz responsável pelo caso acolheu e aceitou a argumentação do estudante (leia a decisão aqui), baseada na ciência e nas leis brasileiras, de que o CBD não é droga.
“Os desembargadores pediram um novo relatório, que excluísse o CBD, porque o CBD não tinha nem que estar ali”, lembra Eduardo.
A solicitação não foi prontamente acatada pela Junta Regular de Saúde da Aeronáutica, mesmo com o ano letivo já em curso. A decisão garantiu, por meio de liminar, a matrícula e o ingresso do estudante apenas em março, quase um mês depois dos seus colegas.
Vivenciando um 1º ano de universidade diferente daquilo que imaginava, Eduardo aguarda pela decisão final, que deve ser proferida ainda este ano. E, para ajudar a controlar a ansiedade da espera, ele tem optado por algo que, com certeza, não o fará correr o risco de ser considerado inapto segundo os olhos da Aeronáutica: meditação, que não por acaso intensificou durante os últimos meses.
Anita Krepp, Poder360 e Globo