Racismo não

Bióloga cotista é exonerada de concurso da UFPE após ação de candidata branca

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"Foi extremamente violento. Eu tinha todo um planejamento de vida baseado na estabilidade que um concurso público proporciona". Exoneração de bióloga teve repercussão e mobilizou a comunidade universitária. O Sindicato dos Trabalhadores da UFPE lançou nota de repúdio

Imagens: reprodução

Carlos Madeiro, Universa

Aprovada por meio de cota racial no concurso de 2016 da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a bióloga Nívia Tamires Souza Cruz, de 34 anos, foi nomeada e tomou posse em outubro de 2018.

Três anos após criar sua rotina no Departamento de Oceanografia, ela foi exonerada para dar lugar a uma outra candidata branca que foi à Justiça questionar não ter sido ela a chamada para o cargo.

Como as cotas devem reservar 20% das vagas, os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) decidiram que, como no caso da disputa havia apenas duas vagas previstas, o critério para o terceiro colocado (chamado após a desistência do segundo) deveria ter sido da ampla concorrência. Para eles, as cotas só deveriam ser aplicadas no caso de uma quarta posição.

A decisão em segunda instância foi dada em grau de recurso pelo TRF-5, que entendeu que a nomeação de Nívia ocorreu no lugar de outra candidata, que ficou em terceiro lugar na ampla concorrência. Inicialmente destinaram duas vagas para o cargo no campus do Recife, e como um dos aprovados desistiu, não havia menção no edital de quem ficaria com a terceira vaga.

A decisão do TRF-5 foi cumprida por meio de uma portaria da UFPE, na qual o reitor Alfredo Gomes também exonerou Nívia alegando que a decisão judicial obrigava a instituição a nomear outra bióloga, aprovada em ampla concorrência, para o cargo.

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Nívia recorreu com um mandado de segurança e espera a definição para voltar ao cargo. Para a defesa da servidora, a decisão do TRF-5 obriga a UFPE a nomear a outra candidata, mas não determina a exoneração de Nívia. A outra bióloga que entrou na Justiça já está no cargo por força da decisão judicial.

Eu já estava como servidora estável, visto o cumprimento do estágio probatório. No dia 16 de setembro recebi um e-mail da universidade informando que minha nomeação seria cancelada e uma candidata seria nomeada por ganhar uma ação na justiça. Não faz sentido e foi extremamente violento“, disse Nívia.

Advogado de defesa diz que edital foi omisso

Nívia conta que, ao receber e-mail da universidade, buscou o Sindicato dos Trabalhadores da UFPE e um advogado para a auxiliar. “O sindicato provocou uma reunião com o reitor, mas a conversa se deu com a assessoria do gabinete e o setor jurídico. Nessa reunião, meu advogado expôs que não há, na decisão, o pedido da minha exoneração, e sim a nomeação da candidata“, alega.

O advogado de defesa de Nívia, Rodrigo Almendra, afirma que como o edital foi omisso para o caso em questão, e houve uma nomeação dela, não há sentido em tirar a vaga dela. “A decisão de anular o ato de nomeação não compôs o pedido da apelação, não foi apreciado pelo TRF-5 e não constou do pleito de execução“, alega.

Se a UFPE errou ao proceder a nomeação em detrimento da outra candidata, deveria ser ela a arcar com as consequências de seu erro. Nívia Tamires é terceira de boa-fé, obedeceu ao chamado de nomeação, pediu afastamento dos vínculos estatutários outrora ocupados, e se dedicou intensamente ao novo trabalho. O fato é que ela foi enganada e depois enxotada do cargo ocupado“, disse Almenda.

A demissão de Nívia também teve repercussão e mobilizou a comunidade universitária. O Sindicato dos Trabalhadores da UFPE lançou nota de repúdio à exoneração.

A deputada estadual Teresa Leitão (PT) também defendeu a reinclusão dela no cargo no plenário da Assembleia Legislativa no último dia 16. Um abaixo-assinado também foi lançado cobrando que ela seja readmitida no cargo.

“Foi extremamente violento”, diz

A exoneração inesperada causou indignação e dor a Nívia. “Eu tinha todo um planejamento de vida baseado na estabilidade que um concurso público proporciona. A exoneração não apenas me tira de espaços, historicamente, negados a negros e negras desse Brasil profundamente racista: me coloca em situação de vulnerabilidade socioeconômica, não tenho outro meio de renda”, diz.

É uma situação clara, para todo mundo, de injustiça. Foi algo extremamente violento. Mas a questão é maior que uma candidata que questiona a vaga: é sobre a estrutura e como as pessoas negras são lesadas.

Desde a pandemia, Nívia foi morar com a mãe, em Ipojuca (na Grande Recife), e manteve a casa alugada na Várzea, no Recife. Ela tem dois filhos, que passam semana com ela, semana com o pai. Ela conta que, sem recursos, precisou usar economias guardadas para pagar as contas desse mês.

Antes da UFPE, Nívia conta que tinha dois vínculos públicos. “Fui obrigada a pedir exoneração para assumir o cargo de bióloga e tinha, também, uma rotina de estudo e poderia, inclusive, estar em outro cargo federal. É um apagamento total da minha trajetória. São vários os sentimentos, o mais forte é de indignação“, afirma.

UFPE solidariza

Em nota, a UFPE disse que é “solidária” a Nívia Tamires Sousa e “lamenta profundamente” a decisão judicial. “A instituição reafirma que recorreu da ordem da justiça, apresentando todos os recursos cabíveis na defesa da legalidade do ato de nomeação de Nívia. A primeira instância da justiça concordou com a legalidade da nomeação, mas a segunda instância não“, diz a instituição.

Ao contrário do que alega a defesa de Nívia, a UFPE diz que foi obrigada a cumprir a determinação do TRF-5, “conforme parecer de força executória da Advocacia Geral da União (AGU).”

A UFPE informa que já foi notificada pela Justiça Federal de que Nívia entrou com um mandado de segurança, pedindo sua readmissão na primeira instância. “O processo está em análise na Procuradoria Federal junto à UFPE”, diz.

A Universidade atuou, desde o primeiro momento em que foi informada judicialmente sobre o processo, no sentido de defender a manutenção de Nívia na vaga. Ela foi citada pela Justiça Federal, no processo, em maio de 2019, e foi informada pela UFPE do teor da decisão final do processo assim que houve a notificação do caso, em julho de 2021. A instituição buscou ainda evitar a exoneração de forma administrativa, mas precisou cumprir a decisão da Justiça“, diz.

A UFPE só poderia manter as duas como servidoras da Universidade se a decisão judicial determinasse isso. A questão não é política e nem administrativa, mas se trata de cumprimento de decisão judicial“.

Por fim, a instituição defende as cotas e diz que “as ações afirmativas são uma das prioridades da atual gestão da Universidade, que tem atuado com protagonismo na efetivação de políticas de promoção da igualdade étnico-racial.”

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