Meio Ambiente

COP26: as soluções climáticas são possíveis através do ‘capitalismo verde’?

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O que realmente necessitamos é uma mudança de sistema; isso não será fácil e nem virá das mutações ‘verdes’ do capitalismo: nossa atuação precisa ser política

Imagem: Yves Herman | Reuters

Mariana Noviello, Opera Mundi

Cheguei ao Reino Unido em 1979. Junto com Margaret Thatcher. O Reino Unido que encontrei no final da década de 70 era um país completamente diferente do que conhecemos hoje: uma nação ainda industrial e, poderíamos dizer, mais poluente, mecânica e analógica, onde a fuligem negra do carvão pintava as paredes dos edifícios. Uma nação cuja democracia ainda não estava tão dilacerada pelos barões da imprensa, financistas e multibilionários de toda espécie, onde – pelo menos na minha memória traiçoeira – a democracia comportava a divergência de ideias a tal ponto que a guerra das Malvinas era veementemente combatida pela oposição e o republicanismo era aceito como possibilidade política – o que me marcou profundamente.

Capital de um império já decaído, o Reino Unido se confrontava com as consequências de uns poucos séculos de dominação capitalista e relutava (como ainda reluta) em aceitar a chegada legítima de seus súditos colonizados à metrópole. Mas ainda sim, talvez pela vigência da União Soviética e a experiência da guerra, a social-democracia ainda prevalecia, projetos alternativos não dependiam somente do mercado para a sua sobrevivência e o sindicalismo, ainda forte, lutava bravamente contra uma nova era que viria a reduzi-lo a mero guardião da saúde e segurança, sem espaço na mesa de poder e pouca voz.

E o que isso teria a ver com a COP26 e os (des)caminhos do mundo? As consequências ambientais da 26º Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26) foram descritas como o fim do mundo nos moldes conhecidos e, quem sabe, o fim não só da biodiversidade, mas da humanidade, por completo ou parcialmente. Entretanto, a falta de ambição do acordo chegado pelos países não condiz com a magnitude da tarefa, se formos tentar limitar o aumento da temperatura terrestre dentro dos 1,5°C.

Este é um problema que não só é a culpa de magnatas e bilionários que primeiro tentaram esconder[1], e agora buscam adiar soluções para as mudanças climáticas, mas é a consequência de um sistema, para o qual ainda não encontramos soluções definitivas: o capitalismo e sua total necessidade de produtores e consumidores e, principalmente, lucro. Sabemos todos que não podemos continuar assim, falta achar soluções que abracem uma multitude de questões complexas que, se encaradas individualmente, só exacerbarão os problemas que enfrentamos. O que descrevo abaixo é talvez o clima, o ambiente do país anfitrião desta conferência e sua intrínseca ligação com o capitalismo e o pós-neoliberalismo que experimentamos que, na minha opinião, é em parte culpado pela falta de substância do acordo chegado pelas partes.

Glasgow, centro importante da expansão colonialista britânica e, em seu auge, grande base industrial e poluidora, foi o palco das conversas, que ironicamente começaram num final de semana de grandes tempestades que fecharam ambas as ferrovias principais interligando Londres à Escócia. As linhas leste e oeste, bloqueadas por árvores caídas (uma ocorrência normal em nossos países tropicais), deixaram cientistas, ativistas, observadores e trabalhadores à mercê do degradado e privatizado sistema de transporte público britânico, enquanto dignatários e outros militantes menos radicais chegavam à Escócia de avião e helicópteros.

Durante a COP, as estatísticas abundavam, entre elas um relatório da Oxfam que diz que o 1% mais rico do planeta produz duas vezes mais emissões de CO2 que os 50% mais pobres[2]. Ouvidos moucos, diplomatas, presidentes e premiês se hospedaram em Gleneagles (mais de 70km da conferência) ou Edimburgo, enquanto ativistas, políticos de oposição ou delegados países menos ricos e mais vulneráveis se dobravam para encontrar acomodação a preço decente. A ganância oportunista pós-pandemia, num Reino Unido desregulamentado pelo neoliberalismo, numa Glasgow que ainda sente as consequências de sua desindustrialização thatcherista, fez com que duas semanas antes da abertura da COP – quando finalmente boa parte dos países do sul global foram retirados da chamada ‘lista vermelha’ do Covid – o quarto mais barato, num hotel 3 estrelas, chegasse a mais de £ 3000 (R$ 20.000) por semana e um quarto no Airbnb custasse mais de £ 150 (R$ 1000) por dia. Não fosse a chamada ‘hospedagem solidária’, organizada pela COP26 Coalition ou a simples generosidade de simpatizantes, muitas delegações e ativistas não teriam onde ficar. Mesmo assim, as viagens diárias a Glasgow de lugares distantes se tornaram, ironicamente, uma rotina comum para muitos, causando mais poluição, atrapalhando planos e encurtando a presença destas pessoas nos eventos.

Enquanto donos de hotéis e proprietários mal conseguiam estofar seus bolsos com quantias inéditas de libras esterlinas, os trabalhadores, na maioria invisíveis, mal viam a cor do dinheiro: camareiras, faxineiras, seguranças, motoristas e até profissionais classe média como eu, intérprete, vimos nossas diárias serem espremidas por oportunistas e atravessadores.

De acordo com o Guardian, os guardas terceirizados que fizeram a segurança dos nossos excelentíssimos líderes mundiais no cinco estrelas Gleneagles [3] [4], eram hospedados em dormitórios de até 40 pessoas em barracas improvisadas, onde dormiam em turnos na mesma cama e faziam suas refeições no mesmo ambiente. E se isso já não fosse suficiente, seus contratos foram cortados de sete para cinco dias sem nenhum aviso prévio.

Na interpretação, fora as cabines oficiais contratadas diretamente pela ONU, as melhores intérpretes de português e espanhol do Reino Unido não participaram da COP. Uma colega amiga, também militante vinda da França, não conhecia um só intérprete trabalhando na conferência. Uma mistura da ‘revolução digital’, apressada pela pandemia e o câmbio exorbitante, fez que delegações, como a brasileira, contratassem intérpretes remotamente, enquanto que as agências locais, sem infraestrutura ou experiência de grandes eventos, chamavam os raríssimos intérpretes locais, utilizavam pessoas inexperientes e não treinadas, quando não contratavam intérpretes inescrupulosos sem o devido conhecimento dos idiomas, reduzindo por vezes em mais da metade o preço da interpretação. Isso sem pensar na invasão de ávidos voluntários jovens querendo também marcar presença na COP, generalizando o senso comum do ‘conheço duas línguas, portanto sou intérprete’.

Trabalhadores da hotelaria, impossibilitados de fazer greve, apoiavam de longe as manifestações de outras categorias como os dos garis, sabendo que nem as migalhas das diárias de £ 10.000 (mais de R$ 73.000) recebidas por seus patrões, chegariam em suas mãos. Os trabalhadores ferroviários, mais forte e organizados que muitos setores, conseguiram concluir negociações e não entraram em greve.

A organização britânica da COP26 foi caótica e elitista. Vi delegações estrangeiras passarem mais tempo conversando entre si e marcando reunião com seus compatriotas que conseguindo fechar agendas internacionais. A remoção tardia de vários países da lista vermelha, preços altíssimos e compromissos em seus próprios países, impossibilitaram agendas mais amplas, com exceção das delegações indígenas reconhecidamente festejadas como guardiões de nossos ecossistemas. Para além das dificuldades logísticas, as reclamações de falta de acesso ao acompanhamento das negociações eram generalizadas.

De minha parte, presenciei reiteradamente líderes dos países mais pobres salientando o fato de que sem dinheiro e assistência técnica seus países não poderiam cumprir com os elaborados planos de NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas) para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas e lidar com os efeitos nefastos de furações e secas. Vi empresas ‘high tech’ festejando governos e governantes com duvidosos passados em questões ambientais e de direitos humanos, buscando vender suas tecnologias estado da arte como a salvação dourada contra o desmatamento. Entidades financeiras sediadas em paraísos fiscais como os Bahamas, arquipélago devastado em 2019 pelo Furação Dorian, oferecendo seus empréstimos e facilidades para a compra de tecnologias remotas concebidas em países ricos.

Esta COP mais parecia uma feira de produtos vendidos como a salvação criativa e inovadora – mais uma celebração do sempre mutante capitalismo. O carro elétrico individual talvez fosse o símbolo mais icônico desta COP: vitrine no centro do centro de convenções, pano de fundo de muitas fotos. O automóvel elétrico, monstro silencioso, alimentado por uma mangueira energética piscando luz azul ou verde, não emite poluição nas cidades. Fica fácil assim esquecer a fonte energética para esta frota substituta tão alardeada, sem pensar nas grandes cavações de cavernas cancerosas deixadas pela mineração do silício e outros elementos e a condição dos trabalhadores em países, alguns dos quais, como a República Democrática do Congo, coberta em florestas e afetada por intermináveis guerras, financiadas por estes mesmos recursos minerais.

Durante a COP26 abundava também na internet os gráficos mostrando as emissões históricas e não-históricas de cada país, fazendo da China o grande ogro (“E a China?” perguntavam incessantemente a BBC e Boris Johnson). Certamente, o que os olhos não veem, o coração não sente. O premiê britânico e seu governo se autoparabenizaram por manter o país dentro de algumas metas climáticas, esquecendo que o consumismo exacerbado britânico tem que ser produzido em algum lugar (na China, na Índia) e que o fechamento das minas de carvão e fábricas de aço que puseram milhares de trabalhadores e seus descendentes na pobreza continuam a existir e a poluir o mundo. Só não mais às vistas do povo da metrópole, que lavam suas mãos desta responsabilidade.

Durante a conferência, os intermináveis debates sobre o Brexit persistiram. E a brilhante BBC falava uns minutos sobre a necessidade de conter as emissões de gases de efeito estufa e depois sobre o acordo comercial feito entre o Reino Unido e a Nova Zelândia. O governo patrocinador da COP26 deixou de comprar manteiga da França para trazer o mesmo produto de milhares de milhas de distância. Qualquer conexão entre estes dois eventos fica por conta dos telespectadores mais perspicazes. E num momento ainda mais surreal, notícias sobre a COP26 nos jornais britânicos foram suplantadas por casos de corrupção no governo Conservador, a tal ponto que a única, e muito atuante, parlamentar do Partido Verde, Caroline Lucas, começou a dar mais tempo no seu Twitter para estes escândalos que para a própria COP.

Resta saber, agora que a 26ª Conferência das Partes chegou ao seu fim, se a crise climática continuará nas notícias. Isto é, até as próximas enchentes na Europa ou incêndio na Austrália ou California, ou a crise ficar tão drástica que retirará Boris Johnson e suas palhaçadas de novo das manchetes, e se BBC começará dar espaço para as reivindicações dos rebeldes da “Insulate Britain”, um grupo de ativistas que demandam o isolamento do estoque de habitações do país para reduzir as emissões de carbono, ou se continuará a cobrir seus atos como “distúrbios da paz e do trânsito”.

O que realmente necessitamos é uma mudança de sistema. Isso não será fácil e nem virá das mutações ‘verdes’ do capitalismo. Nossa atuação precisa ser política e não através de mais reciclagem ou a não utilização de canudos plásticos. Precisamos estar atentos, porque o desmatamento das florestas da Amazônia, tal como o crescimento da produção de soja, que arranca os indígenas de suas terras, têm como motor principal o sistema capitalista, a necessidade de produzir para consumir e manter o sistema rodando e os lucros acumulando. É politicamente também que teremos que enfrentar o nosso desejo de ter mais e mais. Queremos todos trocar o celular, ligar o ar-condicionado no calor, ter o direito de ir e vir em nossos carrinhos, mesmo quando as vias estão congestionadas e poluídas, e ter a possibilidade de adquirir um pedacinho de terra, só nosso, um pouquinho maior e mais equipado.

Não adianta falar em ‘consumir menos’, se não tivermos soluções realistas e se não conseguirmos quebrar o vínculo trabalho-produção material-consumo-lucro. Quem trabalha nas minas, nas fábricas de carro, nas termoelétricas precisa ter emprego, ou precisamos seriamente repensar este sistema para incluir a todos de maneira alternativa. E a tão falada transição verde? Ela é realística? É concretamente capaz de substituir os ‘empregos sujos’ com outros da mesma qualidade, mesmo número de horas, para o mesmo número de trabalhadores (ou mais) e com os mesmos direitos? A quantidade imensa de trabalhadores informais, de aplicativos e temporários nos diz que não. As soluções não são fáceis. Portanto, não adianta grupos como o Extinction Rebellion sair às ruas para reivindicar o veganismo e depois se ausentar durante as eleições ‘porque a questão climática vai além da política’. Não vai. Só através da nossa atuação política que somos capazes de encontrar uma transição para um novo sistema, que precisa incluir todos nós, cidadãos e trabalhadores, em pé de igualdade, não nos deixando ser manipulados por grandes corporações, milionários ou barões da mídia.

Reerências

[1] https://www.bbc.com/news/stories-53640382, https://stories.uea.ac.uk/the-story-behind-the-trick

[2] https://www.oxfam.org/en/press-releases/carbon-emissions-richest-1-percent-more-double-emissions-poorest-half-humanity

[3] https://www.humanhotel.com/cop26/

[4] https://www.theguardian.com/environment/2021/nov/12/cop26-guards-slept-in-40-person-dorm-at-gleneagles-despite-covid-fears

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